O presente artigo procura analisar do ponto de vista técnico, os impactos da Tempestade Erin nos bairros de lata de Mindelo e propõe metodologias técnicas validadas de recuperação, reconstrução e renovação sustentável com foco na drenagem pluvial integrada e na reutilização de água para rega comunitária.
1. Introdução
O crescimento urbano acelerado de Mindelo, dissociado de políticas consistentes de habitação e ordenamento do território, resultou na proliferação de bairros de autoconstrução precária, nos quais as casas de tambor, erguidas com chapas metálicas e materiais de baixa durabilidade, representam o grau máximo de vulnerabilidade habitacional (UN-Habitat, 2016). A Tempestade Erin atuou como evento catalisador, expondo de forma inequívoca a fragilidade construtiva, a ausência de drenagem estruturada e a elevada exposição ao risco climático. Tal como observado em favelas da América Latina e de África, os eventos extremos convertem a vulnerabilidade crónica em desastre agudo (Lavell et al., 2012).
Perante este quadro, sustenta-se que a reconstrução pós-Erin deve ultrapassar a simples reposição das perdas e afirmar-se como uma oportunidade estrutural de renovação urbana sustentável, ancorada em metodologias participativas já validadas no programa Outros Bairros. Este processo deverá basear-se numa análise SWOT aplicada a cada bairro afectado, ponderando população e vulnerabilidade sócio-ambiental para definir, com rigor, o faseamento estratégico da reconstrução. Defende-se, ainda, que as intervenções privilegiem sistematicamente a mão-de-obra local, promovendo emprego, fortalecendo a economia comunitária e assegurando a produção endógena de rendimentos de forma responsável e sustentável.
2. Casas de Tambor: Tipologia de Habitação de Alta Vulnerabilidade
Do ponto de vista técnico, as casas de tambor caracterizam-se por:
- Ausência total de fundações estruturais;
- Sistemas portantes improvisados e maioritariamente sub-dimensionados;
- Coberturas metálicas não ancoradas adequadamente;
- Inexistência de isolamento térmico e acústico;
- Implantação em áreas de risco hidrológico e geotécnico.
- Exígua salubridade e condições precárias de higiene.
Segundo (Vale e Campanella, 2005), assentamentos com estas características apresentam capacidade praticamente nula de absorção de choques climáticos. A combinação entre fraca resistência ao vento, elevada permeabilidade à água e instabilidade do solo cria um cenário de colapso progressivo em eventos de chuva intensa e rajadas fortes, como ocorreu durante a Tempestade Erin.
3. Impactos Técnicos e Sócio-económicos da Tempestade Erin
A Tempestade Erin revelou, de forma brutal, a fragilidade estrutural, hidrológica e social dos bairros afectados. No plano físico, provocou destelhamentos massivos, colapsos construtivos e instabilidade de taludes; no plano hidrológico, desencadeou inundações severas, assoreamento de infraestruturas e bloqueio de acessos essenciais; e, no plano socioeconómico, resultou no desalojamento de famílias, na perda de vidas, de bens e de meios de subsistência, agravando dramaticamente a insegurança habitacional, alimentar e energética. Estes impactos, combinados, expuseram não apenas os efeitos da tempestade, mas a profundidade estrutural da vulnerabilidade urbana existente.
Segundo (Wisner et al., 2004), desastres naturais só se transformam em tragédias humanas quando encontram vulnerabilidades sociais pré-existentes. “Sic Vita est”
4. O Programa Outros Bairros e o Caso do Alto de Bomba
O programa Outros Bairros introduziu em Cabo Verde os princípios do urbanismo social (CMSV, 2021) (MIOTH, 2019), (MIOTH, 2020) e (AKTC, 2022), alinhando-se às experiências de Medellín, Rio de Janeiro e Santiago do Chile (Aravena & Iacobelli, 2012). No Alto de Bomba, foram aplicadas soluções baseadas em:
- Requalificação do espaço público como infra-estrutura primária;
- Drenagem integrada ao desenho urbano;
- Muros de contenção em pedra local;
- Escadarias públicas multifuncionais;
- Formação profissional de moradores.
Estas soluções reduziram de maneira significativa os processos de erosão e melhoraram o acesso aos serviços urbanos, bem como a qualidade de vida dos habitantes. Conforme Gehl (2011), a qualidade do espaço público atua diretamente na coesão social e na segurança urbana. “Adde parvum parvo manus acervus erit”
5. Transferência Metodológica para os Bairros de Casas de Tambor
As áreas afetadas pela Tempestade Erin têm condições semelhantes às existentes no Alto de Bomba antes da intervenção: encostas íngremes, ruas estreitas, drenagem deficiente e elevada impermeabilização informal. Assim, é plenamente possível aplicar a mesma metodologia e reproduzir os ganhos palpáveis que se podem testemunhar.
6. Metodologias Técnicas de Recuperação, Reconstrução e Renovação Sustentável
6.1 Recuperação de Emergência (Curto Prazo - de 0 a 6 meses)
- Reparação estrutural de muros parcialmente colapsados;
- Ancoragem mecânica das coberturas ou re-betonagem mediante reforço estrutural;
- Valas provisórias de drenagem;
- Estabilização de taludes com gabiões;
- Reparação das redes de água e energia.
6.2 Reconstrução Estrutural de Baixo Custo (Médio Prazo – de 1 a 3 anos)
Proposta: alvenaria confinada conforme proposta em (Tomazevic, 2009) com:
- Sapatas rasas (sobre pegões onde solo seja sedimentar não consolidado);
- Pilares em betão armado;
- Cintas de amarração na base dos pilares e à altura dos lintéis;
- Paredes em blocos de betão com cobertura em telha ou pré-laje aligeirada.
6.3 Drenagem Pluvial Integrada com Reaproveitamento de Água: SUDS (Fletcher et al., 2015) e (Fewkes & Butler, 2000)
- Estruturação de patamares nas encostas para construção com cota definida;
- Canais integrados às escadas de acesso entre patamares;
- Caixas de retenção subterrâneas de 10 a 40 m³ nos pontos mais baixos da linha-de-água;
- Filtros em areia, brita e carvão à entrada das caixas e acessíveis para manutenção;
- Instalação de sistemas de rega comunitária e limpeza urbana.
6.4 Renovação Urbana e Ambiental (Longo Prazo – de 3 a 10 anos)
- Hortas comunitárias em espaços pré-definidos;
- Arborização adaptada ao clima e diques de retenção;
- Regularização fundiária e interactiva com a actualização do PDM (inexistente até esta);
- Micro-geração fotovoltaica associada a turbinas eólicas de pequeno e médio porte localizadas nos pontos altos de maior aproveitamento eólico.
7. Sustentabilidade como Ferramenta de Redução de Risco Climático
A sustentabilidade é hoje reconhecida, à escala global, como um instrumento estrutural de redução do risco climático em assentamentos informais. Evidências de programas urbanos na América Latina, África e Sudeste Asiático demonstram que drenagem adequada e infraestruturas verdes reduzem cheias e erosão, que o desenho urbano inclusivo reforça a coesão social e a segurança, e que o reaproveitamento de água da chuva e a micro-geração energética diminuem os custos domésticos e aumentam a autonomia das famílias (Newman, Beatley & Boyer, 2009; UN-Habitat, 2015; World Bank, 2017). Em síntese, sustentabilidade não é um complemento do planeamento urbano — é hoje um requisito técnico da resiliência urbana.
8. Planificação e Estimativa de Custos
As respostas pós-Erin não podem limitar-se a ações meramente emergenciais e pontuais, sob pena de se repetir, já na próxima época das chuvas, o mesmo ciclo de perda, reconstrução precária e nova destruição. A intervenção deve assumir um carácter estrutural, faseado e por territótio, integrando de forma articulada habitação, infraestruturas e espaço público. A experiência do Alto de Bomba, no âmbito do programa Outros Bairros, demonstra de forma concreta que é possível transformar contextos de elevada vulnerabilidade em territórios resilientes, por meio de métodos acessíveis, sustentáveis e participativos, com recurso a materiais locais, mão-de-obra comunitária e desenho urbano adaptado à topografia e ao clima.
Com base em estudos comparativos de reconstrução pós-catástrofe, habitação social incremental e requalificação de assentamentos informais em contextos de baixo e médio rendimento, bem como em dados recentes sobre custos de construção em Cabo Verde (World Bank, 2017; UN-Habitat, 2015; Housing Finance Africa, 2024), é possível estabelecer uma estimativa de custos base ajustada à realidade económica de São Vicente.
Pelos pressupostos em (Aravena & Iacobelli, 2012; Tomazevic, 2009), pode-se definir:
- tipologia habitacional incremental em alvenaria confinada
- área média entre 32 e 45 m²
- composta por sala/cozinha, um a dois quartos e instalação sanitária
- tempos médios de construção de 6 a 12 semanas por unidade com equipas locais,
- custos na ordem dos 8.950 a 14.900 euros por família (dados de 2025), incluindo emergência, habitação, drenagem com reservatório e melhoria do espaço público.
À escala de um bairro com 80 a 100 famílias, tal corresponde a um investimento global aproximado entre 0,95 e 1,2 milhões de euros, o que se mantém competitivo face aos custos de construção formal reportados para o país (Housing Finance Africa, 2024; BCV, 2023), especialmente se considerada a redução de 30–40 % proporcionada pela auto-construção assistida e pelo uso de mão-de-obra local.
A partir destes pressupostos técnicos, definem-se os seguintes custos médios estimados:
Tabela 1 - Custos médios estimados por família (habitação 32–45 m², 2025)
| Categoria | Descrição técnica resumida | Intervalo (€/família) | Intervalo (CVE/família, aprox.) |
| Emergência | Reparação imediata, fixação de coberturas, limpeza pós-cheia, restabelecimento mínimo | 350 – 700 € | 38.500 – 77.000 CVE |
| Casa nova incremental | 32–45 m² em alvenaria confinada, estrutura completa, acabamentos básicos | 7.000 – 11.500 € | 770.000 – 1.265.000 CVE |
| Drenagem + reservatório | Quota-parte por família de canais, caixas de retenção (10–30 m³) e filtração simples | 1.000 – 1.500 € | 110.000 – 165.000 CVE |
| Praças / muros | Quota-parte em muros de contenção em pedra, pavimentos, pequenos largos e mobiliário | 600 – 1.200 € | 66.000 – 132.000 CVE |
| TOTAL estimado | Somatório por família para intervenção estrutural completa | 8.950 – 14.900 € | 984.500 – 1.639.000 CVE |
Tabela 2 – Intervalos de custos médios por bairros de até 100 famílias
| Categoria | Base de cálculo | Intervalo para 80 famílias | Intervalo para 100 famílias |
| Emergência | ~ 525 €/família | 42.000 € | 52.500 € |
| Reconstrução habitacional | ~ 9.250 €/família (média 7.000–11.500) | 740.000 € | 925.000 € |
| Drenagem completa | ~ 1.250 €/família | 100.000 € | 125.000 € |
| Renovação urbana | ~ 900 €/família (praças, muros, percursos, mobiliário) | 72.000 € | 90.000 € |
| TOTAL estimado | Somatório por bairro | ~ 954.000 € | ~ 1.192.500 € |
9. Conclusão
As casas de tambor são hoje um dos principais focos de risco climático em São Vicente. A Tempestade Erin evidenciou a urgência de uma transformação urbana profunda. O programa Outros Bairros e o caso do Alto de Bomba mostram que:
- É possível requalificar sem deslocar;
- É possível reduzir riscos com soluções simples, eficientes e baratas;
- É possível transformar vulnerabilidade em resiliência envolvendo a população local e formar a mesma para o desenvolvimento sustentável.
Este artigo não é, nem nunca pretendeu ser, um exercício académico frio ou uma peça meramente técnica. Ele é, acima de tudo, um acto de compromisso e entrega. É escrito por um filho dessa ilha, que cresceu a reconhecer no mar, nas montanhas e em cada bairro de São Vicente não apenas paisagem ou aglomerado peri-urbano, mas uma identidade, uma memória viva e uma forma de estar na vida e no mundo. Por isso mesmo, nasce da consciência profunda de que quem teve o privilégio de aí nascer carrega também o dever de devolver em conhecimento, em experiência, em competência e em acção tudo aquilo que essa ilha lhe deu.
Que este contributo sirva, ainda que com humildade, para transformar a dor deixada pela tempestade numa força de reconstrução, dignidade e futuro para a nossa gente. A reconstrução pós-Erin não pode ser improvisada, nem tímida, nem adiada, muito menos instrumentalizada para fins demagógicos e elitoralistas: ela tem de ser estruturada, sustentável e participativa.
Esse é o novo paradigma que São Vicente exige — e que, por inerência, Cabo Verde merece. "Ex cinere suo"
Referências
African Development Bank. (2024). Country focus report 2024: Cabo Verde – Driving Cabo Verde’s transformation and reform of the global financial architecture. AfDB.
Aravena, A., & Iacobelli, A. (2012). Elemental: Incremental housing and participatory design manual. Hatje Cantz.
ArchDaily Brasil. (2022). Outros Bairros – Alto de Bomba / Reabilitação urbana em Mindelo, Cabo Verde. ArchDaily Brasil.
ArchNet. (2022). Outros Bairros / Alto de Bomba rehabilitation project. ArchNet Digital Library.
Câmara Municipal de São Vicente. (2021). Relatórios técnicos do programa Outros Bairros – Fase Alto de Bomba. CMSV.
Cities Alliance. (2017). Slum upgrading and public space investment guide. Cities Alliance.
Fewkes, A., & Butler, D. (2000). Simulating the performance of rainwater collection systems using behavioural models. Building Services Engineering Research and Technology, 21(2), 99–106. https://doi.org/10.1177/014362440002100203
Fletcher, T. D., Andoh, R., Breen, P., Hatt, B., & Pell, M. (2015). SUDS, LID, BMPs – A review of terminology. Water Science & Technology, 71(6), 837–845. https://doi.org/10.2166/wst.2015.040
Gehl, J. (2011). Life between buildings: Using public space. Island Press.
Housing Finance Africa. (2024). Cabo Verde housing profile 2024 (Yearbook). CAHF.
Ministério das Cidades. (2016). Manual de urbanização de assentamentos precários. Governo Federal do Brasil.
Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação. (2019). Iniciativa Outros Bairros: Programa de reabilitação urbana de assentamentos informais em Cabo Verde. MIOTH.
Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação. (2020). Outros Bairros: Reabilitação urbanística do Alto de Bomba – Documento técnico de projeto. MIOTH.
Newman, P., Beatley, T., & Boyer, H. (2009). Resilient cities: Responding to peak oil and climate change. Island Press.
Ordem dos Arquitectos de Cabo Verde. (2020). Iniciativa OUTROS BAIRROS – Reabilitação urbanística de Alto de Bomba (Painéis técnicos do PNA 2022). OACV.
Tomazevic, M. (2009). Earthquake-resistant design of masonry buildings. Imperial College Press.
UN-Habitat. (2015). Post-disaster housing reconstruction guidelines. United Nations Human Settlements Programme.
UN-Habitat. (2016). World cities report 2016: Urbanization and development – Emerging futures. United Nations.
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Vale, L. J., & Campanella, T. J. (2005). The resilient city: How modern cities recover from disaster. Oxford University Press.
Wisner, B., Blaikie, P., Cannon, T., & Davis, I. (2004). At risk: Natural hazards, people’s vulnerability and disasters (2nd ed.). Routledge.
World Bank. (2010). Safer homes, stronger communities: A handbook for reconstruction after natural disasters. World Bank.
World Bank. (2017). Urban upgrading and disaster risk reduction investment framework. World Bank.
World Bank. (2025). Cabo Verde economic update 2025: Unlocking inclusive growth through increased resilience and equal opportunities. World Bank.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1253 de 03 de Dezembro de 2025.
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