Cabo Verde abriu uma porta que esteve trancada durante décadas, e atrás dela está a oportunidade de transformar o desporto num verdadeiro motor de desenvolvimento nacional.
E para Cabo verde, este Mundial não é apenas um torneio, é um labirinto global que exige precisão logística, adaptação a fusos horários, climas, rotinas e realidades profissionais onde nada pode ser improvisado. A nossa seleção entrará num mundo onde cada detalhe conta, e é aí que reside a verdadeira dimensão histórica deste apuramento. Chegar aqui com paixão, engenho e o nosso amadorismo arrumado foi admirável, permanecer aqui e competir exige outra coisa, exige o passo seguinte.
Esse labirinto ganhou contornos concretos com o sorteio dos grupos. Cabo Verde irá elevar-se no Grupo H, ao lado de Espanha, Uruguai e Arábia Saudita, num cenário que acolhe dois campeões do mundo e uma seleção em forte ascensão e com um fortíssimo investimento. A estreia será a 15 de junho contra a Espanha, em Atlanta. Depois viajaremos para Miami para enfrentar o Uruguai a 21 de junho. Fecharemos a fase de grupos a 26 de junho, em Houston, diante da Arábia Saudita, num jogo que para muitos é apenas decisivo, mas para nós é afirmação, representando o alcançar de um momento ímpar com dignidade.
Que se assuma que este calendário é mais do que um roteiro competitivo, é um exame à nossa logística, preparação, recuperação física, análise e maturidade institucional. O Mundial começou quando o sorteio confirmou que agora estamos num palco onde nenhum erro é perdoado.
“A ambição deve ser feita de matéria mais firme.” - Shakespeare
O desporto cabo-verdiano nasceu da paixão pura, desse engenho teimoso que transforma falta de meios em criatividade. Treinadores a improvisar, jogadores a treinar depois do trabalho, clubes sustentados pelas comunidades, numa história da qual todos fazemos parte. No entanto, o mundo mudou de ritmo. Hoje vence quem alia talento a método, emoção a ciência, garra a estrutura, análise e formação especializada. O talento continua a ser o nosso ouro, mas agora exige chão firme onde pousar.
A qualificação para o Mundial é um abalo no nosso imaginário. E veio acompanhada de outra conquista inédita: a qualificação da nossa seleção feminina para o CAN 2026, e da consagração de Bubista como melhor treinador africano de 2025. Três sinais claros de que algo mudou e de que algo pode mudar ainda mais.
“A visão sem ação é apenas um sonho. A ação sem visão limita-se a passar o tempo. A visão com ação pode mudar o mundo.” - Nelson Mandela
Agora somos obrigados a pensar o desporto não só como emoção, mas como política pública estruturada, setor económico, instrumento de diplomacia, afirmação internacional e coesão social. Estamos prontos para transformar esta emoção em estratégia? Prontos para assumir que o desporto pode e deve ser pilar do desenvolvimento de Cabo Verde nas próximas décadas?
Temos capital humano, simbólico e geográfico. Temos juventude talentosa, estabilidade rara na região, diáspora que abre portas e um país visto como seguro, pacífico e confiável. O que faltava era o mais difícil, uma ambição estruturada. A qualificação devolve-nos essa ambição, e, com ela, a responsabilidade de preparar o caminho que se abriu.
As soluções deixam de ser abstratas. Cabo Verde precisa de erguer um novo ecossistema de parcerias que traga para dentro do país a experiência que ainda não possuímos e o profissionalismo que o Mundial exige. Precisamos de especialistas em logística desportiva, analistas de desempenho, fisiologistas e profissionais habituados a torneios de alto risco, pessoas que conhecem, por dentro, a realidade dos campeonatos do mundo.
Importa estabelecer ligações com entidades e marcas que possam aportar essas valências, garantindo transferência contínua de conhecimento, treino sistemático de quadros e acompanhamento permanente das seleções. Cabe à Federação liderar esta nova etapa com coragem, abrindo-se a parcerias que tragam a ciência, o rigor e o método capazes de preparar Cabo Verde para este palco.
Profissionalizar significa também abrir Cabo Verde ao investimento privado. A qualificação é uma montra rara, talvez única. O mundo procura causas com alma, que mobilizem pessoas e ofereçam projeção. Poucas histórias hoje têm mais força emocional do que a de Cabo Verde no desporto africano. O futebol cabo-verdiano, e com ele todas as modalidades, pode usar esta onda para inaugurar um novo paradigma de patrocínios, com contratos plurianuais, branding moderno, incentivos para formação e fundos nacionais para o desenvolvimento desportivo. O Mundial será visto por milhares de milhões de pessoas, nunca tivemos uma janela tão ampla para captar investimento e acelerar o nosso desenvolvimento.
Esta presença inédita abre espaço para algo ainda maior: uma campanha nacional integrada da marca Cabo Verde que projete, ainda mais, o país como destino turístico de excelência. O mundo estará a olhar para nós como nunca antes, e cabe-nos transformar essa atenção em ativo estratégico. Uma campanha moderna, criativa e mobilizadora, unindo turismo, cultura, música, diáspora, desporto e sustentabilidade, que mostre Cabo Verde como ele é, um país seguro, vibrante, acolhedor e único no Atlântico. Uma campanha que viaje com a seleção, que esteja nas transmissões, aeroportos, plataformas globais e mercados emissores. Esta é a nossa oportunidade de inscrever o arquipélago no mapa emocional de milhões.
O impacto desta transformação não se mede apenas lá fora. Mede-se cá dentro, na forma como o desporto pode tornar-se o grande cimento social do país. Num arquipélago disperso, o desporto cria laços que mais nada cria. Quando a seleção entra em campo, o país reencontra-se. Essa força emocional precisa de ser canalizada para políticas públicas consistentes, com programas de base, academias regionais, centros de formação técnica, competições juvenis e apoio estruturado aos clubes que alimentam as seleções.
O futuro do desporto joga-se no Mundial e no CAN feminino. A nossa prioridade imediata tem de ser construir o edifício estrutural que falta, com parcerias estratégicas, técnicas e organizativas que sustentem Cabo Verde em palcos de exigência. Com esse alicerce, poderemos avançar para a reestruturação do ecossistema desportivo e social, formando treinadores, fortalecendo clubes, integrando escolas e autarquias, mapeando talentos e garantindo que o país nunca mais perde um futuro possível. A construção começa no topo, mas espalha-se pelas raízes.
O caminho exige coragem política, mas exige também algo mais difícil, uma decisão íntima de acreditar que o desporto não é luxo, é desenvolvimento humano, saúde pública, economia real, educação prática, diplomacia e projeção internacional. Cada euro investido numa academia, competição juvenil ou programa de formação é um euro investido na coesão e mobilidade social. A aposta no desporto é, no fundo, uma aposta em nós mesmos.
O Futuro só pertence a quem o Constrói
A qualificação para o Mundial, por si só, não muda Cabo Verde. O que transforma países é a forma como usam momentos decisivos. Se tratarmos este apuramento como episódio inspirador, ficará como memória luminosa, mas efémera. Se o assumirmos como viragem estrutural, será o início de uma nova era, a era em que deixámos de ser espectadores e passámos a ser protagonistas, a era em que aprendemos, nos organizámos, profissionalizámos e ambicionámos em grande, e a era em que deixámos de esperar pelo futuro e começámos a construí-lo.
O amadorismo trouxe-nos até aqui com dignidade. A profissionalização levar-nos-á para onde nunca estivemos e onde merecemos estar. Este não é apenas tempo de celebração, é tempo de construção. É o momento em que um país pequeno assume ambições grandes. O momento em que deixamos de olhar para o mundo de longe e entramos nele com passos firmes. O momento de provar que podemos competir com os melhores, não como exceção, mas como identidade.
O mundo vai olhar para Cabo Verde no próximo Mundial. Vai ouvir o nosso hino. Vai ver as nossas ilhas nos rostos dos nossos jogadores. Cabe-nos decidir o que queremos que o mundo veja: um país que aparece por acaso ou um país que chega porque trabalhou para chegar. Uma surpresa simpática ou uma promessa que finalmente se cumpre, com visão, rigor e ambição.
A hora é agora. Cabo Verde será um país onde a paixão encontra a profissionalização e onde as parcerias constroem o futuro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1254 de 10 de Dezembro de 2025.
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