Nos anos a seguir à libertação, alguns erros eram compreensíveis: faltava formação técnica e superior, persistiam feridas coloniais e havia uma urgência quase existencial em afirmar a soberania nacional. Meio século depois, essa explicação já não é aceitável.
As novas gerações de dirigentes nasceram no pós-independência. Muitos estudaram nas melhores universidades, cresceram em contextos democráticos e conhecem bem os valores do Estado de direito. Porém, reproduzem os vícios das antigas elites: criminalizam opiniões divergentes, controlam a imprensa, mantêm redes de clientelismo e confundem o poder com prestígio pessoal. Em vez de transformar o modelo de governação herdado, limitaram-se a substituir os colonizadores na cadeira do poder. O Estado continuou a ser instrumento de dominação, não de serviço público.
A dependência económica reforça esse ciclo. Diversas economias africanas continuam assentes na exportação de matérias-primas e no financiamento externo. Esta fragilidade impede qualquer projeto de desenvolvimento assente em educação de qualidade, instituições sólidas e serviços públicos eficazes. A ausência de uma visão de longo prazo transforma a política num terreno de ambições pessoais: governa-se para consolidar privilégios, não para resolver problemas nacionais.
O autoritarismo contemporâneo em África tornou-se mais moderno. Já não chega com o rosto militar dos anos 1980. Hoje, muitos governos falam a linguagem da democracia, organizam eleições e mantêm instituições formais. Mas, na prática, controlam a justiça, manipulam a comunicação social e restringem liberdades fundamentais. Em vários países, até criticar o governo exige coragem. Em Angola, por exemplo, ativistas têm sido julgados e condenados por manifestações pacíficas, prova de que a repressão persiste, apenas com novos métodos.
A manipulação da justiça tornou-se um dos mecanismos mais eficazes para bloquear a alternância de poder. Em mais de uma dezena de países africanos que realizaram eleições nos últimos anos, os principais candidatos da oposição foram presos ou impedidos de participar. O tribunal, que deveria proteger a democracia, transforma-se numa ferramenta para garantir a permanência de quem já governa.
O Senegal ilustra bem este retrocesso. Depois de décadas como referência democrática, a chegada de Bassirou Diomaye Faye e Ousmane Sonko ao poder, em 2024, foi celebrada como o início de um tempo novo. Jovens e carismáticos, prometiam romper com os vícios do passado. Contudo, pouco tempo depois surgiram relatos de jornalistas detidos e tentativas de controlar a imprensa. A mudança prometida começou a ser traída, mostrando que o problema não está apenas nos governantes, mas na cultura política: em muitos casos, a luta pela liberdade termina no dia em que se conquista o poder.
O mesmo aconteceu em Angola. A saída de José Eduardo dos Santos, em 2017, criou uma forte expectativa de mudança. João Lourenço iniciou o mandato com um discurso enérgico de combate à corrupção que parecia anunciar uma reforma estrutural. Mas o tempo revelou outra realidade: tratou-se, sobretudo, da substituição da antiga elite económica por uma nova, alinhada com o presidente. Mudaram-se os rostos do poder, mas as práticas mantiveram-se.
Nos últimos anos, emergiu no Sahel uma falsa alternativa: os golpes de Estado. No Mali, Burkina Faso e Níger, jovens oficiais apresentaram-se como salvadores da pátria. O capitão Ibrahim Traoré, celebrado como novo Sankara, prometeu soberania e dignidade. A realidade foi o oposto: o Burkina Faso mergulhou num caminho de colapso económico, restrição das liberdades e ausência total de um compromisso claro com o retorno à normalidade constitucional. Os que se diziam libertadores tornaram-se novos opressores.
A tragédia destes movimentos, civis ou militares, é que vendem sempre a mesma promessa: mudança. Mas a mudança que oferecem raramente passa da troca de rostos. Nada na forma de exercer o poder se altera. Mantêm-se a concentração, a impunidade e a dependência externa que deveriam combater.
Diante deste cenário, alguns intelectuais africanos afirmam que “a democracia falhou em África” e que o continente precisa de um modelo político próprio. É uma tese sedutora, mas muito errada. A democracia continua a ser o único sistema que limita o poder e protege a liberdade. Dizer que ela falhou é ignorar o essencial: nunca foi plenamente aplicada para que se possa julgá-la. O problema não é a democracia; é a sua não implementação.
Como sublinhou Olivier de Sardan, a crise africana é institucional: administrações incapazes, tribunais disfuncionais, sistemas de saúde e educação destruídos, corrupção endémica e ausência de meritocracia. O Estado deixou de garantir funções básicas. Funcionários mal pagos sobrevivem de esquemas informais; os cidadãos dependem de redes de favores; e os serviços públicos funcionam apenas “para quem conhece alguém”. Estas práticas estão tão enraizadas que parecem naturais, mas destroem a confiança no Estado e inviabilizam a consolidação democrática.
A corrupção deixou de ser exceção para se tornar cultura. Atravessa classes sociais, setores públicos e privados, e molda a relação entre cidadão e Estado. Em muitos países, as elites não apenas toleram a corrupção: organizam-se a partir dela. Como consolidar uma democracia quando o voto é comprado, a justiça é negociada e o poder raramente muda de mãos de forma pacífica?
Os problemas são profundos, mas têm solução. África não precisa de salvadores; precisa de instituições fortes, elites meritocráticas, serviço público profissionalizado, justiça independente, escolas e hospitais que funcionem e uma cultura política que aceite a alternância. Precisa, acima de tudo, de líderes que entendam que governar é servir, não dominar.
Só assim o sonho da independência poderá, finalmente, cumprir-se.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.
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