Cabo Verde e os 50 Anos da Independência: Entre Mitos, Silêncios e a Pluralidade da Memória

PorJosé Fortes Lopes,5 jun 2025 9:15

Uma reflexão crítica sobre a narrativa dominante e os caminhos esquecidos da história cabo-verdiana.

A 5 de julho de 2025, Cabo Verde celebra o cinquentenário da sua independência — uma ocasião que convida a uma reflexão crítica sobre a narrativa histórica dominante e os processos que conduziram à soberania do arquipélago. O início das comemorações a 25 de Abril, data simbólica da Revolução dos Cravos em Portugal, reacendeu o debate quanto ao papel do PAIGC, de Amílcar Cabral, e da “luta de libertação nacional” no solo da Guiné, na independência de Cabo Verde. Críticas provenientes de setores ligados ao PAICV, partido cabo-verdiano herdeiro do PAIGC, questionam a omissão de referências a essa luta e à figura de Amílcar Cabral. No entanto, também se pode questionar a legitimidade das pretensões dos herdeiros do PAIGC/CV em se apresentarem, ainda hoje, como únicos intérpretes da história, quando a independência de Cabo Verde foi conquistada sem confrontos armados ou resistência significativa no território, no contexto do processo de descolonização iniciado por Portugal. É um facto inegável que a independência resultou, essencialmente, da transição política operada em Lisboa após o 25 de Abril de 1974, apesar de se reconhecer que as guerras coloniais foram o motor dos acontecimentos. A efeméride dos 50 anos deve, por isso, ser encarada como uma oportunidade para revisitar criticamente o passado, questionar mitos históricos e promover uma memória coletiva plural, liberta de dogmas ideológicos. A maturidade democrática de Cabo Verde exige esse reencontro com a sua verdadeira história.

Em julho de 2025, Cabo Verde celebra o 50.º aniversário da sua independência — um marco histórico que convida à reflexão crítica sobre o passado e o futuro do arquipélago. As comemorações oficiais tiveram início a 25 de Abril na ilha de São Vicente, com a inauguração da exposição “25 de Abril de 1974” no Centro Cultural do Mindelo. O evento, promovido pelo Governo de Cabo Verde, marca o arranque de um programa comemorativo que se prolongará até dezembro, tendo o seu ponto alto previsto para o dia 5 de julho — Dia da Independência — com uma sessão solene no parlamento cabo-verdiano, na cidade da Praia.

A escolha do Mindelo para iniciar as festividades parece natural, dado que esta cidade foi palco, durante o chamado “verão quente” de 1974, de uma série de acontecimentos que catalisaram o processo de independência de Cabo Verde.

O primeiro-ministro cabo-verdiano, Ulisses Correia e Silva, destacou o simbolismo do 25 de Abril — Dia da Liberdade em Portugal — como "uma referência partilhada" entre Portugal e Cabo Verde. A escolha desta data foi elogiada pelo embaixador de Portugal, que agradeceu o gesto e exaltou as "exemplares conquistas" de Cabo Verde ao longo de cinco décadas. “Que Cabo Verde tenha escolhido esta data — o 25 de Abril — para iniciar as comemorações dos 50 anos da sua independência é um gesto mais eloquente do que mil discursos, um gesto que honra e comove os meus compatriotas”, afirmou o diplomata.

No entanto, a decisão do governo suscitou críticas de setores e figuras históricas do PAICV/PAIGC. Lamentaram o que consideram uma tentativa de reescrever ou minimizar o papel da “luta de libertação nacional”. Para os mesmos, iniciar as comemorações a 25 de Abril “expurga da história deste país o seu capítulo mais decisivo para conquistar a sua soberania: a luta de libertação nacional — e não estejamos com fingimentos — concebida e conduzida, até 5 de julho de 1975, pelo PAIGC sob a direção de Amílcar Cabral.” Acham que a escolha da data reforça a narrativa daqueles que defendem que a independência de Cabo Verde foi uma simples consequência do colapso do regime do Estado Novo português no 25 de Abril, e não o resultado de uma “ação política e militar” conduzida pelo PAIGC. Criticam também o silêncio das autoridades cabo-verdianas atuais sobre Amílcar Cabral nas cerimónias, considerando "inacreditável que um Chefe de Governo de Cabo Verde (assim como o Presidente da Câmara de S. Vicente) consiga fazer um discurso alegadamente sobre a independência de Cabo Verde, sem sequer pronunciar o nome de Amílcar Cabral." Tal omissão, segundo eles, sugere uma tentativa de relegar Amílcar Cabral a uma figura secundária ou mesmo "uma espécie de passageiro clandestino na rota para a independência" de Cabo Verde.

Para o PAICV, a independência não foi uma concessão, mas sim o culminar de uma luta conduzida — embora exclusivamente — no território da Guiné-Bissau, sob a bandeira de um partido binacional criado naquele território nos anos 1950.

Contudo, importa recordar que a chamada "luta de libertação nacional" de Cabo Verde não ocorreu, paradoxalmente, em seu solo. Nunca se registaram ações militares ou confrontos armados no arquipélago, tampouco movimentos expressivos de resistência interna à situação da época. Apesar de uma narrativa construída nas últimas décadas nesse sentido, o envolvimento direto das ilhas neste processo foi praticamente inexistente, e o que é enfatizado está ainda por ser provado. O número de combatentes e/ou militantes cabo-verdianos, quer na luta armada na Guiné-Bissau, quer em atividades clandestinas em Cabo Verde, foi reduzido — para além de permanecer até hoje desconhecido em detalhe — o que inviabiliza um estudo rigoroso e desapaixonado sobre o real grau de envolvimento do arquipélago na causa do PAIGC até 1974.

De facto, a independência de Cabo Verde foi formalizada a 5 de julho de 1975, no âmbito do processo de descolonização de territórios africanos iniciado por Portugal após a Revolução dos Cravos.

Hoje, com meio século de distância, constata-se um profundo empobrecimento do debate público em Cabo Verde e uma desinformação estrutural, sem memória histórica sobre a complexidade do processo e das opções políticas consideradas nos anos críticos que antecederam ou seguiram a independência.

Cinquenta anos depois, a maturidade democrática de Cabo Verde deveria permitir olhar para o passado com mais honestidade e menos mitos. Celebrar a independência não pode ser um exercício de propaganda, mas sim um convite à memória crítica, sem romantizar o que não aconteceu.

Torna-se imperativo reabrir o debate sobre o processo, não para reverter a independência conquistada, mas para recuperar a riqueza e pluralidade dos caminhos históricos que Cabo Verde poderia ter seguido — e, com isso, estimular o debate democrático e o dever de memória plural. A liberdade política inclui a liberdade de pensar e recordar criticamente o passado. Pois Cabo Verde merece uma memória nacional que não seja apenas celebratória, de glorificação simplista, mas também interrogativa. A maturidade democrática de Cabo Verde, se ela é hoje uma realidade, exige um reencontro com a sua verdadeira história, livre dos filtros ideológicos impostos por um pensamento único que teima em fossilizar os factos em torno de mitos exclusivos.

Assim, a celebração dos 50 anos de independência de Cabo Verde devia ser, mais do que uma simples efeméride, uma oportunidade para reabrir antigas fraturas e convocar um necessário exercício crítico de memória que presentemente oscila entre o reconhecimento da Revolução dos Cravos como catalisador de uma independência concedida no contexto da descolonização portuguesa, e o reconhecimento dos combatentes cabo-verdianos da independência da Guiné, como protagonistas de uma história da independência de Cabo Verde ainda por contar com transparência e rigor. A verdade histórica não é propriedade exclusiva de nenhum partido ou de uma geração.

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Autoria:José Fortes Lopes,5 jun 2025 9:15

Editado porAndre Amaral  em  7 jun 2025 6:20

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