Democracia e a não promoção da verdade

PorA Direcção,11 jul 2025 7:03

​Segundo a autora do livro “Democracia e Verdade: Uma Breve História”, Sophia Rosenfeld, a democracia insiste na ideia de que a verdade é simultaneamente importante e ninguém pode dizer definitivamente o que ela é”. Para a historiadora isso significa que há uma tensão intrínseca à democracia que não é passível de solução porque ninguém detém a verdade e é sempre possível debater na busca por uma representação mais próxima da realidade.

Da dinâmica gerada vem tudo o que permite a evolução de ideias e mudanças culturais, garantindo estabilidade e capacidade de adaptação aos novos tempos.

Complica-se tudo quando surgem forças que procuram resolver a tensão própria das democracias impondo a sua verdade, criando instabilidade e incapacidade de resposta adequada da sociedade no seu todo aos desafios circundantes por falta de espírito crítico e de cultura de debate. Assistiu-se a esse tipo de complicação nas celebrações do 50º aniversário da independência de Cabo Verde. Viu-se o presidente da república, conjuntamente com várias outras instituições do Estado, a homenagear os protagonistas e as suas opções no momento da independência, há 50 anos atrás. Ora, nos feriados nacionais celebram-se os interesses e valores partilhados da comunidade política que neste ano de 2025, como nos 35 anos anteriores, são completamente opostos aos dos primórdios da independência.

A França, por exemplo, celebra o seu dia nacional no dia da Tomada de Bastilha que foi a 14 de Julho de 1789. Ninguém espera que se celebre o regicídio, o período de terror ou o bonapartismo que se seguiram à movimentação popular. Da revolução francesa celebram-se hoje, nos 67 anos da V República, os princípios e valores da liberté, egalité, fraternité e da Declaração Universal do Homem e do Cidadão que são perenes e em que toda a república neles se revê. Nos Estados Unidos são homenageados os pais fundadores, hoje quase 250 anos depois da independência, porque foram eles que dotaram o país de uma Constituição democrática e liberal que fez do país uma superpotência e uma fonte de inspiração global para os povos desejosos de liberdade e democracia.

Nesse sentido, é um contra-senso, hoje na II República, homenagear como fundadores da república quem impôs ao país uma ditadura do partido único de tempo ilimitado que só soçobrou com a queda dos regimes de similar inspiração leninista no Leste da Europa e na União Soviética. Vai-se à frente com isso porque tem à sua disposição os recursos, os meios e as competências legais para agir, mas à custa de maior conflitualidade na sociedade, de maior pressão no sentido do conformismo e de menos espírito crítico. Não se pode é pretender que se esteja a promover a unidade nacional, a criar ambiente para consensos em relação ao futuro e a cimentar a confiança que permite reformas de fundo, essenciais para realmente se dar o salto em frente no país.

Parece que para certos sectores da sociedade os ganhos de curto prazo sobrepoem-se a tudo o resto. E neste momento a tendência é procurar ganhar com o tipo de polarização exacerbada da sociedade em que uma parte não ouve a outra e num jogo de soma zero só se ganha com a perda do outro. É a linha dos populistas modernos que se posicionam contra as elites, lançam a desconfiança contra o crescimento económico e refugiam-se em posicionamentos identitários para criar fracturas graves na sociedade, eliminando efectivamente o diálogo e a possibilidade de qualquer negociação ou compromisso.

Aqui em Cabo Verde percebe-se que a via encontrada para alargar as clivagens sociais e políticas foi de reviver a luta que nunca deixou de existir no país desde que às ilhas chegou o PAIGC, vindo da Guiné com o projecto de apoderar-se do poder em Cabo Verde. Conseguiu-se isso eliminando todos os adversários. Acabou por se instalar até ser desalojado do poder quinze anos mais tarde. Como sempre fazem os partidos com essa cultura política de quem se vê como instrumento da história, soube, de seguida, adaptar-se ao ambiente democrático, adoptar a linguagem adequada e a postura certa. Mesmo de regresso ao poder anos depois, por vias democráticas, não abandonou o essencial do legado dos tempos do partido único. Continua a defendê-lo cada vez mais explicitamente.

Ainda se vê no papel de demiurgo que tudo trouxe para o povo destas ilhas e reclama que o país lhe deve a libertação, o fim das fomes, a abertura política, a democracia e o progresso. Reivindicando a condição de partido africano da independência, continua a rever-se no papel de quem procura reafricanizar os espíritos. O instrumento mais recentemente criado tem sido o crioulo que se tornou o foco de uma luta de libertação tardia contra a língua portuguesa, não obstante os custos enormes dessa hostilidade para as novas gerações em termos de competência linguística, de sucesso escolar e da própria qualidade do sistema de ensino.

A isso deve-se acrescentar o sucesso conseguido em trazer a problemática da escravatura e a condição de escravo para o quotidiano do cabo-verdiano em que os modismos nos meios académicos das teorias crítica de raça ou do chamado wokismo ajudaram bastante. Também aqui não parece importar os custos dessas incursões no sentimento do cabo-verdiano que deixa de sentir uno na diversidade da sua vivência nas ilhas. Os custos acarretados são potencialmente de quebra na autoestima do cabo-verdiano e na relutância em se associar com outros e em, cada vez mais, se vitimizar.

E como o sucesso alimenta o sucesso, os ganhos recentes na guerra ideológica acelerada pelas questões de identidade confirmam a importância de se dominar na comunicação social, na cultura e fazer ressonância com modos de pensar e forma de estar em sectores-chave de influência académica e cultural. Daí que as comemorações, que juntavam o centenário de Cabral e os cinquenta da independência fossem demasiado apetitosas para serem passadas ao lado e demasiado difíceis de negar, para sectores ideologicamente hegemónicos na sociedade. O excesso do culto de personalidade, que já não se cinge unicamente pela idolatria de Cabral, mas que se espalha para quem se vê como a geração mais moral, não fica sem custos.

Entretanto, a sociedade entra por uma divisão e uma crispação reproduzindo fracturas antigas num tempo de conflito cultural e identitário que as favorecem em detrimento da unidade de propósito e de compromisso que precisa para enfrentar ameaças e aproveitar oportunidades. A satisfação pessoal que uns têm da visibilidade e aparente reconhecimento social, resultante do peso institucional e meios de quem os patrocina e oferece homenagens, tem contrapartida no descrédito dos mesmos e da função que exercem e no aumento do cinismo face a tanta hipocrisia.

E no finalmente esse reconhecimento não vai deixar de ser efémero porque suportado em alicerces frágeis e falaciosos que não resistem um debate aberto numa sociedade com espírito crítico e aderência aos factos. Também há que reconhecer que há certas ideias e práticas que há muito pertencem ao caixote de lixo da história. Sabem disso e por isso que se esforçam tanto por se camuflar com roupagem democrática para travar essa sua inexorável caminhada. Até lá os custos amontoam e são pagos por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1232 de 9 de Julho de 2025.

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Autoria:A Direcção,11 jul 2025 7:03

Editado porSara Almeida  em  12 jul 2025 8:19

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