Este artigo contrapõe o modelo soberano adotado por Cabo Verde — marcado por uma trajetória histórica singular — ao percurso das Regiões Ultraperiféricas (RUP) da União Europeia, com destaque para a Madeira e os Açores (Portugal), e as Canárias (Espanha). Estas regiões, tal como Cabo Verde, integram o espaço geográfico da Macaronésia, partilhando afinidades ecológicas, históricas e culturais.
Propõe-se um exercício contra-factual: e se Cabo Verde tivesse seguido uma via autonomista, em associação com Portugal e hoje integrado na UE? A análise centra-se nos respetivos modelos institucionais e nos seus impactos socioeconómicos, visando avaliar criticamente a hipótese de Cabo Verde enquanto RUP, em contraste com a opção efetiva pela independência nacional em 1975. A comparação revela disparidades significativas em rendimento, IDH, acesso a fundos estruturais, mobilidade e inserção macroeconómica. As RUP beneficiam de instrumentos políticos e financeiros que têm impulsionado o seu desenvolvimento, enquanto Cabo Verde, na qualidade de Estado soberano, enfrenta limitações estruturais e institucionais. Este exercício demonstra que a ausência de independência nas RUP proporcionou caminhos alternativos que potenciaram um desenvolvimento mais robusto e integrado na União Europeia.
A opção pela independência plena de Portugal, assumida por Cabo Verde em 1975, refletiu o contexto histórico da descolonização portuguesa, na sequência da Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974. O modelo de soberania plena, acordado entre o PAIGC e o MFA, implicou uma rutura com a antiga metrópole e, por conseguinte, a ausência, hoje, de qualquer vínculo com as estruturas regionais supranacionais europeias, como a União Europeia (UE) — ainda que Cabo Verde mantenha atualmente um estatuto especial junto desta.
A independência de 1975 permitiu a afirmação política do Estado cabo-verdiano no plano internacional, ao passo que a abertura política consolidou o país como uma democracia multipartidária estável — um caso raro no continente africano. No entanto, a via soberana expôs o arquipélago a severas limitações de escala, financiamento e inserção geoestratégica, sobretudo nas primeiras décadas da independência — efeitos que perduram até hoje.
Passados 50 anos, torna-se pertinente reavaliar as implicações dessa escolha sob a perspetiva da viabilidade económica e da inserção regional e mundial. Este artigo propõe uma comparação entre o percurso seguido por Cabo Verde e o das regiões autónomas europeias da Macaronésia — nomeadamente Madeira, Açores e Canárias — com as quais partilha características ecológicas, culturais e históricas. O foco recai sobre os respetivos modelos institucionais e impactos socioeconómicos, destacando que a via autonomista das RUP resultou de transições negociadas com os Estados europeus, sustentadas na continuidade administrativa e no quadro jurídico da UE.
A questão central colocada é: poderia Cabo Verde ter seguido uma trajetória alternativa, que o posicionasse hoje no modelo das RUP, em vez da independência plena proclamada em 1975?
Enquanto Estado soberano, Cabo Verde depende das suas capacidades internas e de ajuda externa bilateral ou multilateral — incluindo da UE — mas não dispõe de representação em instâncias como o Conselho Europeu, nem tem acesso automático aos fundos de coesão. Carece, também, de mecanismos estruturados de solidariedade semelhantes aos das RUP.
A hipótese contra-factual aqui debatida implica imaginar um arranjo político-administrativo alternativo à independência, no qual Cabo Verde teria permanecido formalmente associado a Portugal, com um estatuto próprio, dotado de governo regional, parlamento e ampla margem de autogestão. Partindo do paradigma das RUP, esta reflexão visa explorar os possíveis desdobramentos históricos, políticos e socioeconómicos de uma alternativa real, ainda que não concretizada, mas que teve defensores ao longo do século XX.
Demonstra-se, assim, que a independência imediata não era a única via possível — nem necessariamente a mais vantajosa para a população da época e, eventualmente, para a atual. A experiência das RUP indica que a ausência de independência formal não impediu o desenvolvimento económico, social e institucional, nem a felicidade dos seus povos.
Mais do que um exercício de revisão histórica, esta reflexão sugere a necessidade contemporânea de repensar os modelos de integração regional e de cooperação entre Cabo Verde, África e Europa. Para países insulares como Cabo Verde, situados na periferia dos grandes blocos económicos e geopolíticos, a questão central já não é apenas a independência formal, mas sim a viabilidade estrutural sustentável. Neste novo contexto, retomar formas de associação reforçada — políticas, económicas ou jurídico-institucionais — com o espaço europeu pode revelar-se uma estratégia pragmática e necessária. Não como retrocesso histórico, mas como reinvenção de uma posição geoestratégica que sempre foi simultaneamente europeia, africana e atlântica.
O modelo de autonomia regional europeu — tal como aplicado às RUP — assegura mais do que competências administrativas locais: insere estas regiões num quadro multivectorial de desenvolvimento sustentado, articulado diretamente com Bruxelas e com os centros decisórios nacionais. Esta arquitetura garante estabilidade institucional, acesso contínuo a fundos estruturais, correção de assimetrias regionais e participação nos processos de decisão com impacto estratégico.
No caso da Madeira, dos Açores e das Canárias — embora com diferenças sociais e históricas entre si — os contextos político-geográficos antes de 1975 apresentavam semelhanças com o de Cabo Verde:
– Arquipélagos periféricos face aos Estados centrais (Portugal e Espanha);
– Localizações estratégicas no Atlântico;
– Economias frágeis e dependentes;
– Elevada taxa de emigração e pobreza.
Cabo Verde, por contraste, optou por uma independência plena, mas com recursos mais limitados e um grau muito menor de inserção em sistemas regionais de apoio.
Quadro Comparativo – Arquipélagos da Macaronésia
Indicador / Região | Cabo Verde | Madeira (PT) | Açores (PT) | Canárias (ES) |
Estatuto político-administrativo | Estado soberano | RUP / Região Autónoma | RUP / Região Autónoma | RUP / Comunidade Autónoma |
População (estim. 2024) | ~520 mil | ~250 mil | ~240 mil | ~2,2 milhões |
PIB per capita (2023, €) | ~4.200 € | ~20.000 € | ~19.000 € | ~22.000 € |
PIB total | ~2,2 mil M€ | ~5 mil M€ | ~4,5 mil M€ | ~47 mil M€ |
Desemprego (estim. 2023) | ~11% | ~6% | ~7% | ~15% |
IDH | ~0,662 (médio) | >0,850 (elevado) | >0,850 (elevado) | >0,860 (elevado) |
Moeda | Escudo cabo-verdiano (ECV) | Euro (€) | Euro (€) | Euro (€) |
Acesso a fundos europeus | Não | Sim | Sim | Sim |
Mobilidade intra-UE | Limitada | Total | Total | Total |
Dependência do turismo (% PIB) | ~25% | ~20% | ~15% | ~35% |
Transporte aéreo subvencionado | Parcial | Sim | Sim | Sim |
Modelo fiscal | Independente | Fiscalidade RUP | Idem | Idem |
Apesar dos progressos alcançados nos domínios da educação e da estabilidade política, Cabo Verde continua a enfrentar os constrangimentos típicos de pequenos Estados insulares e periféricos. Mantém-se estruturalmente vulnerável, dependente da ajuda internacional e confrontado com problemas crónicos de viabilidade económica. Ao longo das últimas décadas, analistas e críticos têm salientado a distância entre o discurso oficial, os rankings internacionais e a realidade concreta vivida pela maioria da população dispersa pelo arquipélago. Falhas ou insuficiências estruturais comprometem diretamente a qualidade de vidada população e o acesso a direitos básicos considerados deficiente e insuficientes: abastecimento de água e energia, serviços públicos, transportes marítimos e aéreos, saúde pública. Acresce um sistema de justiça ineficaz, moroso e seletivo, juventude qualificada a abandonar o país, e uma crescente insegurança que atinge níveis alarmantes sem precedentes na história do arquipélago, que viveu no passado momentos bem pacíficos e tranquilos.
As RUP, por outro lado, ao estarem integradas em estruturas supranacionais, beneficiam de apoio contínuo ao desenvolvimento. Elas dispõem de governos e parlamentos regionais, bem como de representação institucional junto dos respetivos Estados. Esta forma de "semi-independência funcional" garante-lhes acesso direto a fundos de coesão e a instrumentos de resposta a crises — como ficou patente durante a pandemia de COVID-19. Cabo Verde, embora politicamente independente, carece de mecanismos de compensação face à insularidade e às vulnerabilidades sistémicas, enfrenta sérias limitações na mobilização de recursos de longo prazo, em virtude de um orçamento restrito e da contínua dependência de financiamento externo.
Meio século após a independência, o contraste com as RUP evidencia os custos e as oportunidades da opção por uma soberania plena. A comparação sugere que Cabo Verde poderia ter seguido um modelo de autonomia regional avançada, associado a Portugal e integrado numa Macaronésia supranacional. Esta via teria possibilitado maior acesso a fundos europeus, integração no mercado comum, continuidade institucional e reforço da capacidade de investimento.
Conclusão:O modelo de autonomia regional articulado com a integração europeia proporcionou às regiões da Macaronésia inseridas na UE uma base sólida para o desenvolvimento económico e social. Cabo Verde, apesar da sua estabilidade política e reconhecimento internacional, continua a enfrentar os constrangimentos típicos dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS), com reduzida margem de manobra orçamental e forte dependência de fatores externos.
À luz dos resultados das RUP, é legítimo questionar se um modelo de desenvolvimento ancorado na autonomia e na integração regional teria garantido melhores condições de crescimento, estabilidade, bem-estar e felicidade para os cabo-verdianos. Num mundo cada vez mais estruturado em blocos económicos e redes regionais, o isolamento insular de Cabo Verde impõe desafios e sacrifícios crescentes e imprevisíveis. A história não pode ser alterada, mas a compreensão crítica dos caminhos não trilhados pode iluminar os futuros possíveis. Cabo Verde não precisa de reescrever o passado, mas pode — e deve — repensar o seu lugar no futuro.