Cabo Verde não precisa de resgate: precisa é de mais sentido de responsabilidade da sua classe política

PorA Direcção,21 nov 2025 8:12

As chuvas torrenciais no Tarrafal, S. Miguel e Santa Cruz, que provocaram a morte de uma pessoa e estiveram na origem de perdas diversas de animais e de outros bens da população, também ainda causaram estragos consideráveis nas casas, nas propriedades agrícolas e nas infraestruturas rodoviárias e outras.

O inesperado do acontecimento a meio de Novembro, praticamente fora da época das chuvas, e a comoção provocada por mais um evento climático extremo, depois do que aconteceu em S. Vicente em Agosto último,não deixam de criar preocupação geral quanto ao que o futuro tem em reserva. Pelas reações políticas imediatas, percebe-se a propensão para com mais uma calamidade se fazer da intervenção do Estado matéria de disputa entre os partidos, quanto ao seu escopo e abrangência. Estão para breve as eleições legislativas.

Catástrofes naturais, pandemias e outros choques externos deviam ser motivo para demonstrações unânimes de solidariedade nacional por várias razões. Uma delas é que, face a qualquer crise, um país como Cabo Verde não pode dispensar solidariedade internacional, e convém que ela tenha correspondência nacional para ser mais substancial e efectiva. Uma outra razão é que o sentido de comunhão na sociedade gerado na adversidade pode servir de base a uma forte vontade geral, primeiro, para reparar rapidamente os estragos e enfrentar as vulnerabilidades criadas e depois para avançar com reformas que servirão de prevenção a futuras crises.

Evita-se no processo atentação de vitimização das populações e de instrumentalização das crises para ganhos políticos.

E deixa-se em aberto a possibilidade, mesmo num quadro do contraditório, de cooperação futura dos partidos na busca de soluções para os problemas actuais no terreno, que comprovadamente amplificaram o impacto das calamidades. Também poderá ajudar na concretização das reformas indispensáveis para as conter.

É fundamental que se enverede pelo caminho de não partidarização das respostas às calamidades. A tendência é tornarem-se mais frequentes, provavelmente mais extremos devido às mudanças climáticas. A última coisa que pode acontecer é o país deixar-se atrasar nas respostas pelas disputas partidárias e pela falta de cooperação de uma população pouco incentivada à auto responsabilização pelas políticas de vitimização em voga.

Nos países dos outro lado do Atlântico, muitos deles pequenos estados insulares como Cabo Verde, são frequentes os desastres naturais e numa escala nunca antes verificada nestas ilhas. Assim como são recorrentes as inundações, os furacões ea destruição das zonas costeiras também o é o ânimo das pessoas em reconstruir depois das catástrofes. Há, ainda, um esforço organizado e cada vez mais efectivo para salvar vidas, conter estragos e assegurar o essencial aos mais expostos, tanto durante o flagelo dos fenómenos naturais como posteriormente, para as pessoas regressarem à sua vida, ao trabalho e aos negócios.

Recentemente como furacão Melissa a ilha de Jamaica sofreu perdas, segundo vários relatos, calculadas entre dois a oito bilhões de dólares , ou quase um terço do PIB anual. Ainda bem que, a pensar na minimização dos estragos e reconstrução do país, foi adoptada uma complexa estrutura financeira com várias camadas, incluindo fundos nacionais para necessidades imediatas em abrigos e mantimentos e um fundo de seguros com vários intervenientes internacionais e regionais, que vai permitir que a economia se recupere e os planos de desenvolvimento tenham continuidade. Cabo Verde já tem o fundo de emergência eo fundo soberano para respostas institucionais e, na contingência de vir a sofrer eventos climáticos extremos com mais frequência, o Estado deverá apoiar e incentivar o recurso de privados a planos de seguro que ajudem a minimizar efeitos de desastres naturais.

A maior dificuldade para o país enfrentar a nova realidade ditada pelas mudanças climáticas está em ultrapassar o excessivo eleitoralismo que caracteriza muito da actividade política actual. O ambiente crispado não facilita debate entre os partidos sobre como proceder com as reformas que podiam preparar as ilhas para responder a desastres naturais. Nem se nota convergência para fazer cumprir o que já existe. Por exemplo, não é fácil levar os municípios a fazer uma melhor gestão do território urbano quando muito da política local é afectada por práticas de campanha política permanente. E, sem isso, será muito difícil conter estragos, perdas de bense destruição de infraestruturas em caso de chuvas torrenciais.

Numa outra perspectiva, é difícil manter uma cultura de respeito pela autoridade do Estado quando se procura justificar roubos significativos de energia e água com necessidade de pessoas “desenrascarem”, fazendo ligações clandestinas ou mostrando compreensão pelos desvios com a proposta de electricidade de “graça”. Além de porem em séria situação financeira as empresas do sector e comprometerem a sua capacidade de fornecimento desses bens públicos com qualidade e fiabilidade, normaliza-se uma postura de desafio às leis e de falta de responsabilidade cívica. E isso não deixa de afectar outras áreas de interação na sociedade, com impacto directo na ordem e tranquilidade públicas.

O habitual eleitoralismo, já exacerbado pela proximidade das eleições, torna as coisas mais difíceis quando passa a impressão de se poder ter “tudo, em todo lugar e ao mesmo tempo”. Em consequência não parece existir preocupação com compatibilizar reivindicações com recursos disponíveis, aliás procura-se tirar da equação a necessidadede crescimento económico sustentável para as suportar, nem há uma postura compromissória que poderia trazer razoabilidade às negociações. Greves ao suceder-se umas após outras, a parde carências e ineficiências, com origem em causas múltiplas e complexas que apesar dos transtornos noutras situações seriam tomadas de outra forma, passam a imagem de um país em permanente sobressalto.

Uma imagem que não condiz com a forma como Cabo Verde é visto no mundo pelas organizações internacionais, agências de rating e por operadores económicos ou pelos turistas de diferentes país que cada vez mais chegam não só às ilhas turísticas mas a todas outras. Percebe-se que há uma tendência para fazer política projectando um quadro de desesperança do qual pretende-se resgatar o país não com soluções nem com políticas alternativas. Ao se afirmar anti-elites acaba por negar o diálogo democrático e a aposta passa a ser quebrar as regras do jogo, tido como viciado em detrimento do “povo”. O ambiente político assim criado torna ainda mais difícil reencontrar o equilíbrio que poderia permitir o país enfrentar os múltiplos desafios que o mundo de hoje representa e as policrises entre as quais as potenciadas pelas mudanças climáticas que tornam o futuro menos previsível.

Cabo Verde não vive sob a ameaça permanente de fenómenos climáticos extremos do tipo dos que assolam as ilhas a oeste nas Caraíbas. O país é o que é porque foi moldado pelo extremo de secas cíclicas e correspondente carestia e fomes periódicas. Daí não saiu um povo triste, fatalista ou sentindo-se vítimado mundo. Pelo contrário. Por onde emigrou ao longo de séculos afirmou sempre com orgulho a sua caboverdianidade e procurou manter por várias formas a sua relação profunda de afecto com a sua terra e a sua ilha.

A convivência com escassez profunda e demasiadas vezes dramática de alimentos e outros bens não fez do caboverdiano um dos “condenados da terra” que precisa de resgate. Não será, pois, pelas fragilidades ainda existentes reveladas por desastres naturais que irá cair na desesperança. Pôr-se na condição de vítima como parecem pretender as forças políticas abraçadas no eleitoralismo e a virar para esquerda entre o paternalismo e o assistencialismo não é certamente o caminho. Liberdade e cidadania plena para todos é a base para se construir a prosperidade e encontrar a felicidade.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.

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Autoria:A Direcção,21 nov 2025 8:12

Editado porAndre Amaral  em  21 nov 2025 17:19

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