Essa frase, que ficou a ecoar na minha reflexão nos dias seguintes, sintetiza com uma clareza inquietante o momento político que vivemos. Cabo Verde regista progressos significativos, reconhecidos interna e externamente, em múltiplas frentes do desenvolvimento económico e social. No entanto, parece crescer um sentimento de desconfiança e mal-estar, como se a realidade objetiva e a percepção pública estivessem em rotura.
Este desalinhamento não é apenas um efeito colateral da complexidade dos tempos. É também, e sobretudo, o resultado de uma estratégia política deliberada, meticulosamente executada por quem, não conseguindo disputar a governação com ideias e soluções, decidiu disputar o imaginário coletivo com narrativas emocionais, parciais e, por vezes, abertamente manipuladoras. Quando falta projeto, sobra narrativa – e é assim que se constrói a armadilha da percepção: uma distorção deliberada da realidade para criar indignação e abrir caminho ao poder.
Os dados, no entanto, contam uma história diferente. Nos últimos quatro anos, Cabo Verde cresceu a uma média de 9% ao ano, reduzindo a dívida pública de 150%, no pico da pandemia, para 105% do PIB. O desemprego caiu de 15% para 8%, a proteção social expandiu-se e os salários aumentaram. Na saúde, melhoraram-se infraestruturas e acesso, introduziu-se novas valências com impacto em todos os indicadores de saúde pública; na educação, avançou-se em inclusão e qualidade. Somos, segundo o Índice de Estabilidade Africana, o país mais estável do continente, um ativo estratégico num mundo cada vez mais incerto.
Tudo isto é verificável, concreto e público. E, no entanto, há quem diga, com aparente convicção, que o país está “num abismo”.
Essa narrativa não resulta do acaso. É o produto de uma estratégia pensada, sistemática, com métodos de guerrilha política muito bem definidos. Sempre soubemos que o principal partido da oposição mantinha uma rede de perfis ativos nas redes sociais, um discurso alinhado entre os seus subsistemas e um circuito paralelo de associações comunitárias politicamente instrumentalizadas. O que agora sabemos, com provas, é que esta máquina segue um plano — um plano que ficou exposto com o documento interno do PAICV que circulou nas redes sociais.
Nesse documento, assumem-se explicitamente os eixos da ação política: desconstruir as realizações do governo, amplificar qualquer fragilidade institucional, construir um sentimento generalizado de “mal-estar nacional” e apresentar o PAICV como o único antídoto possível. Não há qualquer preocupação com a coerência, com a seriedade programática, ou com o interesse nacional. O objetivo é capturar a percepção pública. E nessa lógica, como ali se assume sem pudor, “não importa a realidade, importa a perceção”.
Esta forma de fazer política não é nova, nem exclusivamente cabo-verdiana. Assistimos, em várias partes do mundo, à ascensão de movimentos e lideranças populistas que operam precisamente nestes moldes: descredibilizar as instituições, atacar os meios de comunicação que não alinham, fabricar inimigos internos, e vender promessas fáceis embaladas em slogans eficazes. O seu combustível é o ressentimento, o seu método é a manipulação algorítmica, e o seu objetivo não é servir - é conquistar. Não se apresentam como alternativa racional, mas como messianismo emocional. Não competem com políticas, competem com percepções.
É nesse caldo que a nova liderança do PAICV labora. Chega à presidência do partido não com um projeto estruturado ou com ideias concretas para o país, mas com uma máquina bem afinada de produção de narrativas. Um discurso emocional, construído para explorar o mal-estar e a frustração, substitui o conteúdo programático. A prioridade não é unir para construir, é dividir para mobilizar.
É nesse terreno que o alerta de Cass Sunstein, jurista e teórico da comunicação, no seu livro Republic, se torna ainda mais pertinente. Ele teoriza sobre o risco de vivermos em ambientes digitais filtrados, onde os algoritmos reforçam preconceitos e criam bolhas de reafirmação emocional. Nessas bolhas, a percepção deixa de ser um reflexo da realidade e torna-se um produto, personalizado, dos algoritmos para retroalimentar o nosso próprio interesse. A verdade perde terreno, a radicalização avança e a política transforma-se num campo de ruído.
Perante este cenário, é imperativo perguntarmo-nos: como se combate uma perceção que já não nasce do contacto com a realidade, mas da manipulação contínua da emoção?
No imediato, é essencial erguer uma muralha da verdade: comunicar de forma clara, persistente e transparente, desmontando mentiras e respondendo ao ruído com factos. É preciso não deixar mentira sem resposta, nem deixar que o ruído vença pela inércia da verdade. No longo prazo, precisamos investir na literacia democrática e mediática dos cidadãos, criar mecanismos de verificação de factos com credibilidade, e garantir que a comunicação social pública assume, de forma inequívoca, o seu papel de serviço à verdade e à pluralidade. A democracia não pode funcionar com cidadãos desarmados perante a manipulação.
Cabo Verde não pode ser governado por distorções fabricadas. Não pode ser refém de estratégias cujo único objetivo é a tomada do poder, independentemente do custo. Cabo Verde precisa de líderes que falem verdade, que assumam responsabilidades e que tenham visão de longo prazo. Não precisamos de messias, precisamos de construtores.
A verdade não precisa gritar para existir - mas precisa de ser defendida. Em tempos de confusão orquestrada, a lucidez é um ato de coragem. Cabo Verde não pode cair na armadilha da percepção fabricada por quem confunde oposição com sabotagem e narrativa com realidade. A próxima etapa do nosso desenvolvimento exige responsabilidade, espírito crítico e ambição esclarecida. Porque só a verdade constrói futuro. O resto é espuma - e a espuma passa.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.