Cabo Verde: Entre a Memória Oficial e a Verdade Histórica

PorJosé Fortes Lopes,30 jun 2025 9:53

Cinquenta Anos de Independência de Cabo Verde: Por uma Revisão Crítica do Legado não democrático

Este artigo reexamina a tese de que é imprescindível uma revisão crítica do período de partido único em Cabo Verde (1975–1990), marcado pela ausência de alternativas democráticas. Defende-se que, sendo hoje uma democracia madura, Cabo Verde deve confrontar o seu passado com memória, reconhecimento dos erros, verdade e justiça. Só assim se constrói uma democracia verdadeiramente inclusiva.

Durante a sessão solene da Assembleia Nacional, realizada em 13 de janeiro de 2025, alusiva ao Dia da Liberdade e Democracia — data que celebra a conquista da democracia cabo-verdiana com as primeiras eleições multipartidárias em 1991, que ditaram a derrota do então partido único, o PAICV (herdeiro político do PAIGC de Amílcar Cabral, no poder entre 1975 e 1990) —, um deputado do MpD (partido social-democrático atualmente no governo) instou o PAICV a reconhecer publicamente a responsabilidade histórica pela imposição de um regime autocrático em 1975, sugerindo mesmo um pedido formal de desculpas.

Nas suas palavras: “Embora o 5 de julho de 1975 tenha representado a independência nacional — um marco inegável —, esta rapidamente substituiu a ditadura anterior por uma nova ditadura, desta vez cabo-verdiana, imposta pelo PAIGC.” Acrescentou que os 15 anos de monopartidarismo foram marcados por abusos, prisões arbitrárias e torturas, e que o surgimento de outras forças políticas foi impedido não por falta de mérito, mas por exclusão deliberada. “Não pode haver reconciliação plena com o passado enquanto persistirem silêncios estratégicos sobre uma época em que a liberdade foi suspensa em nome de uma pretensa unidade nacional”, concluiu.

Embora a proposta do deputado não tenha tido consequências políticas, a questão ganha especial relevo num momento simbólico como a celebração do quinquagésimo aniversário da independência de Cabo Verde — uma independência instaurada sob o regime de partido único do PAIGC, posteriormente PAICV —, onde, de forma tímida e quase forçada, se procura agora promover um debate com os protagonistas ainda vivos e os seus herdeiros políticos e ideológicos.

Essa proposta expôs uma ferida ainda aberta na memória coletiva cabo-verdiana, ligada a temas tabu associados ao período do partido único. A ausência, até hoje, de um debate público estruturado sobre esse período revela os limites da maturidade democrática em Cabo Verde.

O apelo poderia ter sido o ponto de partida de uma discussão necessária, protagonizada por intelectuais e académicos, caso existisse uma massa crítica significativa entre estes, capaz de resgatar e construir uma memória histórica mais crítica e plural sobre os últimos 50 anos da história de Cabo Verde.

Ainda assim, a intervenção do deputado gerou desconforto, com reações divididas na classe política e nas respetivas bases de apoio: alguns deputados do MpD aplaudiram-na como gesto de coragem política e busca da verdade histórica, enquanto os parlamentares do PAICV a classificaram como tentativa de reescrever o passado e desvalorizar o papel histórico do PAIGC/PAICV e de Amílcar Cabral na luta pela independência. Esta reação revelou o quão sensível é o tema: abriu-se, de facto, uma autêntica caixa de Pandora. O PAICV sublinhou o quiproquó: como imaginar que os herdeiros de um partido que afirma deter a chave do sentido da História — ter “libertado” e refundado Cabo Verde do jugo colonial-fascista em 1975, criado um “Homem Novo” e reafricanizado os espíritos cabo-verdianos — possam agora pedir desculpas por uma ação tão magnânima e desinteressada? Como aceitar que elementos radicais do MpD se atrevam hoje a pôr em causa, e até vilipendiar, os “heróis” e “melhores filhos” de Cabo Verde, numa mera operação de politiquice?

Longe de ser um capricho político, a revisão proposta pelo deputado do MpD insere-se numa tendência contemporânea de enfrentamento dos legados autoritários como parte dos processos de reconciliação democrática.

Contudo, a proposta revela-se inconsequente, pois Cabo Verde ainda carece da maturidade sociopolítica necessária para acolher plenamente um debate desta natureza — debates que apenas florescem em democracias mais consolidadas, onde o confronto de ideias e a revisão crítica do passado são práticas normalizadas da vida política e cívica. No fim, a questão acabou por morrer à nascença, revelando a frágil receção que teve no contexto sociopolítico atual. Como exigir reconhecimento de erros a partir de uma narrativa mitificada, hoje hegemónica, quando não praticamente oficial?

Diante disso, é legítimo questionar se a proposta foi mal formulada, se não passou de mais um despique isolado de um deputado ou — o mais provável — se Cabo Verde ainda não atingiu o grau de maturidade necessário, nem dispõe de uma sociedade suficientemente preparada para enfrentar discussões dessa profundidade.

Por outro lado, a proposta mostra-se limitada, pois centra-se exclusivamente no período do partido único, acabando por se confinar à habitual polémica bipartidária: uma disputa simbólica entre os que se assumem como “libertadores do jugo colonial” e os que se afirmam “libertadores do jugo autocrático” imposto pelo partido único. Porém, não vai à raiz do problema, que remonta ao período anterior à independência, quando se assistiu a uma verdadeira reversão das conquistas democráticas resultantes da Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, em Portugal. Pois, se é legítimo questionar o passado, por que não discutir esse período e o próprio processo pouco democrático da independência de 1974/75, bem como as responsabilidades políticas assumidas, em nome do povo cabo-verdiano, pelos combatentes cabo-verdianos do PAIGC?

Mesmo com essas limitações, importa perguntar: seria o pedido de desculpas apenas um gesto simbólico ou um passo essencial para restaurar a justiça histórica e moral?

Em democracias consolidadas, a reconciliação assenta no reconhecimento dos factos, na escuta das vítimas e na pedagogia da memória. Diversos países já enfrentaram esse dilema: como equilibrar memória e reconciliação?

Em Portugal, abriram-se arquivos e realizaram-se julgamentos contra antigos membros da polícia política. A sociedade civil mobilizou-se para reinterpretar o Estado Novo, com o apoio de instituições como o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Na África do Sul, a Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC) reconheceu as vítimas do apartheid e apurou responsabilidades de todos os lados, num esforço de justiça restaurativa. Na Rússia, a Memorial Society tornou-se símbolo da resistência à amnésia oficial sobre os crimes estalinistas. No Chile, os relatórios Rettig e Valech documentaram os crimes da ditadura e recomendaram medidas de reparação.

Esses exemplos demonstram que nunca é tarde para enfrentar o passado — e que a reconciliação autêntica exige memória e verdade. Por que não em Cabo Verde? Por que persiste o silêncio em torno dos anos entre 1974 e 1990?

A conquista do poder pelo PAIGC em 1974, com a ascensão da facção cabo-verdiana da chamada “luta de libertação” conduzida na Guiné-Bissau, foi justificada pela ideia de que Cabo Verde deveria ser governado de forma exclusiva e sem escrutínio por essa mesma facção e os seus simpatizantes. Ainda que a independência de Cabo Verde tenha sido sobretudo negociada, e não conquistada pelas armas, a retórica da “luta de libertação” continua a ser usada como símbolo de legitimidade exclusiva, justificando até 1991 o monopólio do PAIGC — posteriormente PAICV — na condução dos destinos do país durante o regime de partido único. Essa narrativa, além de elitista e antidemocrática, apresenta fragilidades históricas evidentes: a alegada luta armada nunca ocorreu em solo cabo-verdiano e, mesmo que tivesse ocorrido, tal facto não pode justificar o monopólio do poder. O PAICV continua, em parte, ancorado num mito fundacional de cariz quase messiânico — que, à luz do escrutínio histórico, não resiste aos factos. Como qualquer construção ideológica, esse mito carece de revisão crítica.

O atual Presidente da República — ex-primeiro-ministro e figura central do PAICV a partir de 1991 — declarou recentemente que “não faz sentido pedir desculpas agora”, argumentando que o partido tem sido reiteradamente legitimado nas urnas. No entanto, esse argumento ignora a dimensão ética e simbólica do reconhecimento histórico. A realização de eleições livres não anula as violações passadas, nem substitui um necessário processo de reparação moral.

Diz-se que “já passou”. Mas terá passado mesmo?

A democracia não se consolida com o esquecimento, mas com memória. Pedir desculpas não é um ato de punição, mas um gesto de maturidade democrática. Longe de enfraquecer qualquer partido, esse gesto pode libertar o peso de uma história ainda por contar. Reconhecer erros não apaga os avanços alcançados após a independência e com a instauração da democracia — como os progressos na educação ou na saúde —, mas impede que esses feitos sejam usados como álibis para justificar ou branquear regimes autoritários.

Cinquenta anos após a independência, Cabo Verde é hoje reconhecido como uma democracia estável, e por isso merece um novo olhar sobre o seu passado. Para tal, é essencial que os seus protagonistas tenham a lucidez e a coragem de revisitá-lo — não com ressentimento, mas com responsabilidade e abertura de espírito. É tempo de fazer as pazes com a história e aceitar que nem os homens nem os partidos são donos da verdade. O debate histórico exige o exercício do contraditório, e os pontos de vista alternativos são parte essencial da reparação em falta. Cabo Verde só tem a ganhar com isso.

Enquanto persistirem silêncios estratégicos e se evitar um confronto honesto com os erros do passado, a democracia cabo-verdiana continuará incompleta.

Cabo Verde, cinquenta anos após a independência, deve a si próprio esse exercício de coragem histórica. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1230 de 25 de Junho de 2025.

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Autoria:José Fortes Lopes,30 jun 2025 9:53

Editado porSara Almeida  em  30 jun 2025 23:22

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