Aconteceu antes e irá acontecer no futuro ao mínimo pretexto, porque faz parte do cardápio dos que se servem de políticas identitárias e das paixões e ressentimentos por elas suscitadas para obter ganhos políticos.
É curioso que ninguém acusa de racista outros países da CEDEAO com um registo de rejeição de entradas superior ao de Cabo Verde ou com uma história de expulsão de nacionais da comunidade aos milhares e mesmo milhões, caso da Nigéria, da Costa do Marfim ou do Senegal. Normalmente o rótulo de racista vai para os países europeus e o Ocidente, em geral em relação aos quais reivindicações de mais ajuda e de reparações surtem efeito. Árabes e asiáticos parece que estão excluídos deste jogo.
Aplicá-lo a Cabo Verde, que não tem o passado colonial e de segregação racial desses países que poderiam justificar a existência ainda de atitudes racistas e manifestações de racismo estrutural, não faz qualquer sentido. Só se compreende se a realidade humana de Cabo Verde que, de uma determinada perspectiva, podia chamar-se de pós-racial é um elemento de perturbação para certas ideologias fixadas na raça e na luta racial. E para devolver o país a uma normalidade desejada é preciso desconstrui-la e racializá-la.
As consequências do extremar de posições em matérias de políticas identitárias em todo o mundo são hoje visíveis para todos. De facto, a afirmação de identidades distintas, em disputa permanente e incapazes de chegar a compromissos, tem contribuído para a polarização das sociedades, para o aumento na hostilidade aos imigrantes e para a ascensão de políticos e políticas radicais. Nos Estados Unidos da América foi um dos principais factores por trás da eleição de Donald Trump. Na Europa, o reforço em parte da posição da extrema-direita alimenta-se desse radicalismo que põe em causa valores universais. Daí a guinada brusca para o iliberalismo e a compressão dos direitos fundamentais, o enfraquecimento do Estado de Direito e a contestação da independência dos tribunais e o surgimento de oligarquias económico-financeiras próximas do poder político.
Não se deve esperar diferente em Cabo Verde se se continuar a prática de, sempre que a oportunidade se oferece, se recorrer à táctica de acusar o país e o povo de racista, de forçar uma escolha entre Europa e África, e de esgravatar o passado à procura de cumplicidades com o poder colonial. Corre-se o risco de enfraquecer a consciência da nação, de quebrar a unidade do país com ressentimentos forjados e de minar a democracia liberal com a perda de confiança de que os órgãos de soberania são representativos de todos. Em causa pode ficar o que distingue e constitui vantagem para o país que é o de ser uno, diverso, mas sem tensões raciais e com uma democracia estável.
Infelizmente, a tentação de se prosseguir com políticas identitárias potencialmente divisivas sem preocupação com as consequências é quase incontornável. Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974 e no processo de retirada das colónias, as ilhas de Cabo Verde foram praticamente entregues pelas autoridades portuguesas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que da Guiné, a cerca de 1000 quilómetros de distância, conduzia uma guerra de guerrilha e clamava pela independência do arquipélago. Aconteceu algo similar com as restantes colónias, mesmo com São Tomé e Príncipe em relação à qual não havia movimento armado a exigir a independência. Identificando-se como partido africano e promotor de uma unidade política com a Guiné-Bissau, o PAIGC logo no texto da proclamação da independência determinou “um destino africano” para Cabo Verde, sem que houvesse consulta popular num ambiente livre e plural. Aliás, assim como nas outras colónias e em nome do princípio de NÃO AO REFERENDO, não houve exercício do direito à autodeterminação.
Para um povo, que por mais de um século e em todas as ilhas já se reconhecia como cabo-verdiano, mesmo dentro do império português, com a sua língua, cultura, música e literatura, a imposição de uma identidade genérica (a África tem mais de 900 etnias e línguas) no quadro de uma ideologia pan-africanista em detrimento da sua não podia deixar de ser traumatizante. Também teria que provocar divisão no país entre, por um lado, os que aderiram ao novo regime, que logo se revelou totalitário e, portanto, agressivo e intolerante, e os outros. A tentação de considerar os resistentes à sua ideologia como saudosistas, europeístas ou luso-tropicalistas e pró-claridosos persiste até hoje, mesmo depois da “unidade Guiné e Cabo Verde” ter-se revelado um embuste para legitimar a implantação durante quinze anos de uma ditadura dos “melhores filhos do povo”.
Para criar fundamentação teórica para o destino africano recorreram aos escritos de António Carreira que, segundo o depoimento de Carlos Reis, ministro da Educação entre 1975/1980, para o livro de João Lopes Filho sobre esse autor, “a obra de António Carreira é aquela que mais fez para a produção e sistematização de elementos teóricos para uma possível unidade entre Guiné e Cabo Verde”. O historiador António Correia e Silva no mesmo livro diz que: “Em vez da história da cultura, das ideias e das atitudes (…) predomina em Carreira a história económica, mais concretamente a do tráfico de escravos”. Compreende-se assim por que, de acordo com Correia e Silva, a sua obra é “talvez a mais marcante para a conformação da moderna historiografia cabo-verdiana”. Ao fazer da “escravatura” e do “escravo” as chaves para se decifrar a história de cinco séculos de Cabo Verde, ficavam justificados a imposição do destino africano e o papel dos “libertadores”.
A postura cultivada de libertadores, porém, cede rapidamente para a de conquistadores, sempre que por qualquer razão acham que o país não lhes presta suficiente vassalagem. Aconteceu há poucos dias na sequência do início das comemorações dos 50 anos de independência. Acham que a celebração deve ser sobre o processo de independência e os seus dirigentes, processo esse que, como se sabe, impediu aos cabo-verdianos o exercício do direito à autodeterminação e impôs ao país uma ditadura de quinze anos na qual foram os principais protagonistas. Mas é evidente que em democracia, quando se celebra o dia do país, são os princípios e valores em que a comunidade nacional se revê que são fortalecidos, em particular o facto de a independência significar antes de tudo autodeterminação para escolher livremente os governantes, fazer as leis a serem acatadas por todos e decidir o rumo do país em eleições periódicas.
A comemoração da independência com esse sentido favorece a união e a solidariedade e renova a confiança no futuro. Mas se é luta política permanente que se pretende para conquistar o poder, vão continuar aí as questões identitárias, vai-se fustigar o país com acusações de racismo e até invocar a figura de Amílcar Cabral, sem preocupação com as consequências. A assunção de responsabilidade nunca foi um traço forte de quem procura o poder a todo o custo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.