Este artigo reexamina criticamente o processo de independência de Cabo Verde à luz de uma hipótese contra-factual: a adoção de um modelo de autonomia ou uma transição mais gradual para a independência. A independência de Cabo Verde é frequentemente apresentada como um processo inevitável e linear. No entanto, argumenta-se que, considerando o contexto político de 1974–1975 e a ausência de conflito armado no arquipélago, alternativas à independência total e imediata poderiam ter sido viáveis e até desejáveis. Propõe-se uma reflexão fundamentada, considerando as implicações de um modelo semelhante ao das atuais regiões ultraperiféricas europeias, com estatutos equiparáveis ao que Cabo Verde detinha em 1975. A intenção é restaurar a complexidade das opções históricas e políticas disponíveis nas décadas de 1950, 1960 e 1970, além de recuperar correntes de pensamento esquecidas que são essenciais para entender a história cabo-verdiana.
A independência de Cabo Verde, proclamada em julho de 1975, é frequentemente retratada como um desfecho natural, linear e inevitável, resultado da interconexão entre o colapso do regime do Estado Novo em Portugal e a luta armada conduzida pelo PAIGC na Guiné-Bissau e outros territórios africanos. No entanto, uma análise histórica mais crítica revela que existiam outras alternativas políticas plausíveis — como modelos de autonomia regional ou uma transição gradual à independência — que poderiam ter sido mais adequadas às circunstâncias e aos anseios da sociedade cabo-verdiana, considerando as condições socioeconómicas e políticas do arquipélago na época.
Cinquenta anos depois, impõe-se uma reavaliação crítica das consequências duradouras da celeridade com que se consumou a independência total e imediata de Cabo Verde. Este processo ocorreu sem que fossem criadas condições efetivas para sustentá-lo, um ponto frequentemente invocado pelo PAIGC/CV para sublinhar a alegada inoperância da administração colonial portuguesa. No entanto, esse argumento revela-se ambivalente: se, por um lado, visa deslegitimar o passado colonial, por outro, evidencia implicitamente a imprudência de ter avançado para a independência plena com um período de transição inferior a um ano.
Mas e se o caminho adotado não fosse o único possível ou o mais adequado às necessidades e aspirações do povo cabo-verdiano naquele momento? E se, em vez da independência total, Cabo Verde tivesse seguido um modelo de autonomia regional?Este artigo propõe-se como ponto de partida para essas hipóteses contra-factuais: um Cabo Verde integrado como região autónoma ultraperiférica da Europa (RUP) e na Macaronésia, na qual se incluem as ilhas do Atlantico, ou seja, a Madeira e os Açores (Portugal), as Canárias e Cabo Verde, definidas por um espaço comum, partilhando afinidades ecológicas, históricas e culturais.
A ausência de um verdadeiro debate livre e democrático que precedesse o processo de autodeterminação, a exclusão de atores não alinhados ao projeto do PAIGC de independência imediata e união com a Guiné-Bissau, bem como a inexistência de mecanismos de consulta popular — como um plebiscito — sugerem que a independência total não foi necessariamente a via mais objetiva nem consensual. A narrativa dominante atual ignora fatos essenciais, como a existência de outros projetos e atores políticos além do PAIGC, e o fato de que, em 1974, outras soluções legítimas estavam em aberto. O contexto histórico, hoje excessivamente simplificado em torno da epopeia da luta armada, ignora que o arquipélago estava em paz, ao contrário das colônias com conflito armado, como a Guiné, Angola ou Moçambique. Além disso, a maioria dos cabo-verdianos desconhecia a existência de um partido armado na Guiné — o PAIGC — com militantes cabo-verdianos que defendiam a independência pela via armada, sem respaldo interno. À luz do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, Cabo Verde, em 1974, teria direito a um processo formal de autodeterminação, através de referendo.
As negociações bilaterais entre o MFA (Movimento das Forças Armadas) e o PAIGC — reconhecido por Portugal como único interlocutor legítimo da população do arquipélago — foram determinantes no rumo político de Cabo Verde. Essa exclusividade negocial excluiu deliberadamente outras correntes políticas existentes ou emergentes, impedindo um debate plural e a possibilidade de explorar democraticamente as várias opções que então se colocavam. Cabo Verde acabou, assim, por ser empurrado para a solução defendida pelo PAIGC, sem que essa escolha tivesse resultado de um processo de consulta livre, aberto ou participativo. A independência, assim alcançada, ficou marcada por um vácuo de legitimidade pluralista na sua origem.
Entre as elites locais cabo-verdianas, existiam projetos alternativos e legítimos, como a defesa de um modelo de autonomia regional, que conciliava o desejo de autogoverno com a manutenção de laços históricos, culturais e estratégicos com Portugal, evitando os custos sociais, económicos e geopolíticos de uma ruptura imediata. Pensadores como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Adriano Duarte Silva (que em 1948 defendeu no Parlamento português reformas do sistema colonial português, incluindo sua transformação numa federação de nações autónomas) e, em 1974, Teixeira de Sousa, reivindicavam um estatuto próprio para Cabo Verde, respeitando sua insularidade, cultura e especificidade geográfica. Amílcar Cabral, um guineense de origem cabo-verdiana, que viveu apenas cerca de 8 anos em Cabo Verde, teve o génio político de transformar o desiderato autonomista numa proclamação de independência plena.
Durante o Estado Novo, Portugal estruturou-se como um Estado centralizado, sem admitir qualquer forma de autonomia regional, de acordo com a Constituição de 1933. As colônias foram redefinidas como “províncias ultramarinas”, a que se negava, na prática, qualquer possibilidade de autogoverno. Apenas com a Constituição de 1976 — já após a Revolução dos Cravos — se tornaram legalmente possíveis arranjos como a autonomia administrativa ou a federação.
Após o 25 de Abril, o debate sobre a autonomia de Cabo Verde intensificou-se, alimentado pela oposição à independência imediata proposta pelo PAIGC e à ideia cabralista, considerada por muitos como contranatura, de fusão com a Guiné-Bissau num Estado plurinacional. Do lado português, figuras como António de Spínola, Mário Soares e Almeida Santos defenderam um estatuto próprio para Cabo Verde, semelhante ao das regiões autónomas portuguesas ou de outros territórios ultramarinos europeus. Tal evidência contraria a percepção de que Portugal estaria disposto a abrir mão de Cabo Verde sem reservas, sugerindo, antes, que se admitia um enquadramento especial para o arquipélago, distinto das demais colônias. No entanto, o caminho seguido foi o da vinculação ao projeto do PAIGC, que via na união com a Guiné-Bissau e na inserção africana a única via capaz de justificar a independência. Para Amílcar Cabral, um arquipélago desprovido de recursos e isolado com Cabo Verde não seria viável política ou economicamente. Todavia o projecto foi um nado-morto, desfez-se naturalmente, 5 anos após a ascendência à independência dos dois territórios. Cabo Verde ficou, então, politicamente isolado no Atlântico, sem uma ancoragem geopolítica clara, apesar de sua integração formal na CEDEAO. Esse desfecho revelou-se distante da visão estratégica do PAIGC e abriu caminho para uma redefinição do posicionamento externo do país, oscilando entre a pertença africana e uma vocação atlântica que o reaproximou da Europa.
Após a independência, o debate sobre alternativas históricas ao projeto do PAIGC — como as propostas de autonomia evolutiva e ligação especial a Portugal ou à Europa — desapareceu do debate público cabo-verdiano. A ortodoxia política dominante construiu, desde os primeiros anos, uma narrativa única, que visava legitimar o poder do ramo cabo-verdiano do PAIGC (futuramente PAICV) e ocultar o fracasso da união com a Guiné-Bissau, bem como a inviabilidade da estratégia geopolítica originalmente traçada por Amílcar Cabral.
Por que razão foi descartada a proposta de autonomia? Uma explicação reside na conjuntura política da época: Portugal vivia uma instabilidade pós-revolucionária, o MFA procurava descolonizar rapidamente, e o PAIGC dispunha de capital político acumulado pela sua luta na Guiné, o que lhe permitiu impor-se politicamente no arquipélago — não sem atos de intimidação, coação psicológica, prisões arbitrárias e ilegalidades cometidas, como assaltos a rádios e a outras instalações públicas e privadas. O resultado foi uma descolonização apressada, com tratamento uniforme para realidades distintas.
Outros territórios com características semelhantes seguiram caminhos diferentes. As Canárias permaneceram como parte de Espanha, com um estatuto de autonomia; a Madeira e os Açores tornaram-se regiões autónomas de Portugal; e diversos territórios franceses, britânicos e holandeses mantiveram vínculos com as respectivas metrópoles, com diferentes graus de autogoverno. Esses exemplos mostram que, em 1974, havia outras alternativas políticas viáveis para Cabo Verde.
O modelo de autonomia poderia ter proporcionado maior estabilidade, apoio económico e uma integração mais fluida no espaço atlântico euro-africano. É verdade que isso implicaria uma menor soberania e margem de manobra diplomática. Contudo, nas regiões ultraperiféricas da União Europeia, essas questões são geralmente secundárias para as populações, que valorizam sobretudo a estabilidade e o bem-estar económico proporcionados pelos modelos autonómicos.
Outra via alternativa seria a de uma transição progressiva — com etapas definidas rumo a uma independência futura — que teria sido menos clivante e traumática, permitindo a preservação de laços mais fortes com Portugal (e, hoje, com a União Europeia), com vantagens mútuas.
Encarar a independência de 1975 como a única via legítima, como ainda se faz, empobrece o debate e nega à sociedade o direito à pluralidade de perspetivas — algo essencial numa democracia, sobretudo quando se revisitam decisões fundadoras. Silenciar o verdadeiro debate sobre os 50 anos da independência não é apenas intelectualmente desonesto; é uma forma de censura histórica que impede a sociedade cabo-verdiana de reavaliar o seu passado e de debater os caminhos impostos.
É legítimo, hoje, perguntar: e se tivesse sido diferente? Essa questão não é apenas académica. Ela nos ajuda a refletir com maturidade sobre o passado e o futuro. A hipótese de Cabo Verde ter optado por um modelo de autonomia regional — ou por uma forma distinta de independência — levanta cenários relevantes e convida à reflexão. Não se trata de reescrever a história ou de negar a legitimidade atual da independência, mas de recuperar um debate real, com defensores concretos e implicações profundas, especialmente entre as elites cabo-verdianas que, desde o século XIX, ponderaram caminhos alternativos à assimilação ou à independência total.
A hipótese contrafactual propõe um Cabo Verde integrado como região autónoma da Europa, na Macaronésia, comparando a sua situação atual com a de arquipélagos congéneres. Cabo Verde, pela sua história, composição populacional e forte herança cultural portuguesa, tinha uma predisposição natural para adotar um modelo autonómico. A ausência de conflito armado no arquipélago teria facilitado esse percurso. Referendos, como os realizados em territórios franceses (Martinica, Nova Caledónia, Polinésia), poderiam ter permitido à população expressar democraticamente a sua vontade sobre o futuro político. No entanto, essas opções nunca foram apresentadas à população.
As experiências da Madeira e dos Açores demonstram que regimes avançados de autonomia eram possíveis dentro de um quadro de descentralização democrática, respeitando as especificidades culturais e geográficas. Reconhecer que essas opções existiam — e que foram politicamente silenciadas — é legítimo. Cabo Verde escolheu — ou foi conduzido a escolher — a independência total e imediata em 1975.