Quatro ciclos e uma certeza: Cabo Verde quer mais

PorLuís Carlos Silva,17 jun 2025 7:44

​Em vésperas do dia 5 de julho — data que marca os 50 anos da independência nacional —, a dimensão e simbologia do momento obrigam-nos à reflexão: que Cabo Verde construímos em meio século? O que falhámos em tornar realidade? E, sobretudo, que país queremos para os próximos 50 anos?

Há muitas formas de contar a história de um país. A mais óbvia é através da cronologia dos factos: datas, heróis, mudanças de governo. A mais verdadeira, porém, é a que se inscreve na sua consciência coletiva — no que um povo elege como memória, no que não esquece, no que recusa a aceitar. É essa história que mora nas mornas, nas telas dos pintores, e até nos silêncios da diáspora.

Cabo Verde viveu, até hoje, quatro grandes ciclos históricos. E precisa, agora mais do que nunca, de os transformar em ambição renovada.

O primeiro foi o longo ciclo colonial, que durou cinco séculos. Um tempo de dominação e assimetrias, mas também de formação da nossa identidade crioula. Foi nele que nasceu a língua que falamos, a mestiçagem que nos define e a resistência que nos caracteriza. A cultura cabo-verdiana, plural e resiliente, tem raízes profundas neste período — ainda que marcado por exclusão, dependência e ausência de autodeterminação.

O segundo ciclo começou em 1975, com a independência. O ciclo da afirmação soberana. A independência foi uma conquista irreversível do nosso povo. Mas a forma como foi politicamente gerida — sob um regime de partido único — comprometeu parte do seu potencial transformador. O país avançou na construção do Estado, mas restringiu liberdades, fechou a economia e centralizou o poder com custos elevados em termos de eficiência, participação e desenvolvimento.

O terceiro ciclo emergiu com a abertura democrática de 1991. Com o advento do Estado de Direito e da economia de mercado, Cabo Verde abriu-se ao mundo, encontrou uma nova orientação institucional, valorizou a iniciativa privada e libertou as energias criativas da sociedade. Foi aqui que os Cabo-Verdianos passaram a escolher livremente os seus representantes, a empreender e a confiar no mérito e no trabalho. A estabilidade institucional, a igualdade e a liberdade tornaram-se marcas reconhecidas do nosso percurso.

Hoje, estamos no quarto ciclo - o de desenvolvimento inclusivo - é o único que podemos ainda moldar. Já não basta a soberania ou a liberdade: é preciso dignidade no quotidiano. A nossa ambição é clara: ser um país desenvolvido, onde o progresso se mede na qualidade da educação, saúde acessível, mobilidade social, oportunidade para os jovens e com a democratização do emprego digno.

Para cumprir essa ambição, é preciso olhar de frente para o país que somos. Temos uma economia pequena, insular e exposta a choques externos. Mas temos também ativos notáveis: estabilidade política, capital humano jovem, recursos naturais renováveis e uma invejável localização estratégica. Mas essa realidade não é nova. O que é novo — e decisivo — é a forma como agimos.

Entre os desafios estruturais persistentes, o emprego ocupa lugar central. A criação de trabalho digno e sustentável, especialmente para os jovens, continua a ser uma pedra angular do nosso projeto nacional. É preciso incluir, garantir oportunidades, combater o desalento e criar condições para que cada cabo-verdiano tenha autonomia para que possa construir o seu próprio futuro.

Os números recentes do INE confirmam os ventos de mudança: entre 2016 e 2024, a taxa de desemprego caiu de 15% para 8,0%, enquanto o subemprego recuou de 19,4% para 9,3%. Mais significativo ainda - o número de cabo-verdianos inativos voltou a decrescer, invertendo anos de estagnação. Estes resultados, obtidos ainda na ressaca de uma pandemia e em contexto de uma grande instabilidade global, não são obra do acaso. Revelam o acerto de medidas como: (1) a aposta na qualificação profissional gratuita; (2) os programas de estágios subsidiados; (3) os incentivos à retoma económica; e (4) uma forte dinâmica económica. São passos na direção certa, mas que precisam de ganhar escala.

"Os avanços conquistados são bons, no entanto é importante manter a tendência positiva. Um desafio crucial permanece: milhares de jovens entre 15 e 34 anos continuam sem trabalho e nem estão a estudar ou em programas de formação. Incluir e ativar este potencial é o próximo grande salto que precisamos dar.

Não há tempo a perder. Cada dia de atraso significa mais talento subutilizado, mais energia criativa desperdiçada.

O Diagnóstico do Setor Privado de Cabo Verde, elaborado pela International Finance Corporation (IFC), confirma o turismo como directo responsável por 25% do PIB e com efeitos indiretos que podem chegar a um surpreendente impacto de 44%, sendo ainda promotor de 45% do emprego formal. Contudo, esta alavanca económica permanece perigosamente concentrada. A verdadeira transformação exige alcançarmos novos segmentos - do turismo cultural, ao náutico, passando pelo turismo criativo, sem esquecer os nómadas digitais que já começaram a dar sinal de vitalidade e de potencial para nos transformar em polos de trabalho remoto.

A transição energética ultrapassou o estágio de opção estratégica para se tornar um imperativo económico imediato. O Plano Nacional de Energia - com suas metas de 50% de renováveis até 2030 e neutralidade carbónica até 2050 - aponta a direção certa, mas o ritmo atual de implementação não corresponde à urgência do desafio.

A mobilidade elétrica exemplifica esta contradição: enquanto as baterias dos veículos elétricos atingem autonomias superiores a 600 km (mais que suficientes para nossas necessidades insulares) e os preços globais reduzem, continuamos a desperdiçar divisas preciosas com a importação de combustíveis fósseis - um lastro que pesa sobre nossa balança comercial e limita nosso desenvolvimento.

O paradoxo é gritante: possuímos recursos renováveis (sol, vento, mar) em abundância, capazes de alimentar não apenas nossos lares, mas toda a frota de transporte. A eletrificação acelerada do setor de transportes representaria uma dupla vitória: reduziria nossa dependência externa enquanto libertaria recursos atualmente destinados à importação de petróleo - fundos que poderiam ser reinvestidos em saúde, educação e infraestruturas de qualidade.

Esta não é mera transição energética, mas uma reconversão estratégica da nossa economia. Os benefícios vão muito além da sustentabilidade ambiental: trata-se de soberania energética, resiliência económica e justiça social.

Como alerta Mariana Mazzucato, "o futuro não acontece - constrói-se". Em Cabo Verde, essa construção passa pela adoção acelerada de inteligência artificial e soluções digitais nos serviços públicos essenciais. Na saúde, na educação e na administração pública. O “gap” tecnológico que temos hoje pode ser nossa vantagem, pois permite-nos saltar etapas desnecessárias para adoção de soluções já testadas globalmente.

A expansão da IFC em Cabo Verde não é mera notícia positiva - é um convite à ambição. Como instituição do Grupo Banco Mundial especializada em financiamento privado, sua presença (reforçada) sinaliza oportunidades para empresas nacionais que ousem pensar grande. O desafio, como lembra Bresser-Pereira, é que "nenhum país se desenvolve sem uma rede nacional de empresas competitivas".

Estas transformações - no turismo, energia, digital e financiamento privado - não são meras opções políticas, mas imperativos históricos. Ao celebrarmos 50 anos de independência, enfrentamos um momento decisivo: ou aceleramos estas mudanças estruturais, ou arriscamos ficar presos num desenvolvimento superficial que não gera prosperidade partilhada.

O desafio que temos hoje é diferente, mas não menor, do que o da geração do ciclo da independência ou o da liberdade. Se eles nos deram a soberania e a liberdade política, cabe a nós construir a soberania económica - com a mesma coragem e visão que marcaram a nossa história.

Como país, estamos no limiar entre o Cabo Verde que fomos e o que podemos tornar-nos. A melhor homenagem aos 50 anos da independência será construir, já hoje, os alicerces dos próximos 50 anos - com a coragem de inovar, a sabedoria de incluir e a determinação de transformar potencial em progresso real para todos os cabo-verdianos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1228 de 11 de Junho de 2025.

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Autoria:Luís Carlos Silva,17 jun 2025 7:44

Editado porAndre Amaral  em  17 jun 2025 15:20

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