Sartre e os Dilemas da Existência

PorCarlos Bellino Sacadura,21 dez 2025 12:04

​Sartre repartiu a sua obra entre a literatura – romances e teatro – ensaio (textos reunidos sob o título Situações) e a filosofia. O tema comum é o da liberdade como valor inerente à condição humana. Estamos condenados à liberdade, ou seja, temos sempre de fazer as nossas escolhas, mesmo que prescindamos de o fazer: a não-escolha é ainda uma opção.

Para ele não há uma essência ou finalidade pré-determinada que a nossa vida deve cumprir: são as escolhas que vamos fazendo livremente ao longo da vida que lhe dão um sentido. Na sequência de Kierkegaard, Sartre parte do indivíduo e do sujeito, ao qual não se podem substituir as estruturas linguísticas, históricas ou sociais. Numa época dominada pelo estruturalismo, Sartre proclama a irredutibilidade do sujeito, entrando em polémica com Foucault. A adopção de quadros normativos, de ordem ética e jurídica, é um modo de fugir à responsabilidade para construirmos por nós mesmos o sentido das nossas vidas: tudo é possível, não há nem regras nem normas, nem quadros fixos e invariáveis (…). (Régis Jolivet)

À partida, a vida é absurda, não tem sentido prévio, é um campo de possibilidades susceptíveis, ou não, de se realizarem. Perante as coisas em si mesmas (ser em si), ergue-se a consciência que as compreende (ser para si). Mas a intencionalidade (tal como Husserl a define)implica a consciência como relação com o mundo, definida por Heidegger como ser-no-mundo. Enquanto Heidegger caracteriza o homem como relação com o Ser, Sartre caracteriza-o, na sua principal obra – O Ser e o Nada - como liberdade: não há qualquer diferença entre o ser-do-homem e o seu ser-livre. A filosofia eleva a vida aos conceitos, à reflexão, mas com isso esquece a existência que é anterior aos conceitos ou à reflexão. Então, precisamos de uma filosofia que vá ao encontro do irreflectido da reflexão (Merleau-Ponty).

Poder-se-ia dizer que já tínhamos disponível, antes de Sartre, uma filosofia da liberdade, com a noção kantiana de autonomia. Mas a autonomia em Kant articula-se com uma ordem do dever inscrita numa moral, ou seja, numa ordem de valores fundamentais. Para Sartre, não há valores universais – como as Ideias, a razão ou a lei moral – cada um de nós é o fundamento dos seus próprios valores, como afirma em O Ser e o Nada: A minha liberdade constitui o único fundamento dos valores, e nada justifica que eu adopte este ou aquele valor, esta ou aquela escala de valores. O ser humano é projecto de si mesmo, sem ter nenhum projecto no qual se possa enquadrar à partida. Mas o seu projecto vai encontrar o dos outros seres, que podem limitá-lo. Assim, a intersubjectividade surge como um obstáculo à liberdade individual e aos seus fins. Não há uma finalidade universal, mas fins contingentes ou variáveis. Assim, o existencialismo sartreano assume-se como um relativismo, recusando qualquer universalidade, finalidade ou fundamento absoluto, nem mesmo Deus, porque para Sartre aceitá-lo seria já condicionar ou submeter a liberdade a um condicionamento ou autoridade.

A leitura de O Ser e o Nada pode ser árdua para quem não tenha uma formação filosófica prévia, mas Sartre mostrou talentos de divulgador ao escrever o que é conhecido como o manifesto do existencialismo: O Existencialismo é um Humanismo. Aí afirma que esta corrente filosófica visa dar ao ser humano uma possibilidade de escolha, um projecto que não é o de um sistema filosófico a prosseguir ou o de uma moral enquanto dever. O projecto é antes um fazer-se no decorrer de uma vida sem guia para a acção. Não havendo uma natureza humana universal e intemporal, o existencialista pensa uma condição humana na qual o ser humano se vai reinventando e projectando a si mesmo.

Sartre é um filósofo do ser humano situado e finito, recusando a sua inscrição numa essência trans-histórica ou num sistema de ideias totalizante. Mas com essa filosofia situada, circunstancial e imanente, esqueceu a dimensão do ser humano como vocação para a transcendência e para o Infinito, ou seja, para a sua relação com Deus – via que é explorada por pensadores do existencialismo cristão, como Gabiel Marcel ou Jaspers. Qualquer que seja a opção do leitor, convém que se familiarize com as várias vertentes da filosofia existencial, para poder formular esclarecidamente o seu juízo. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.

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Autoria:Carlos Bellino Sacadura,21 dez 2025 12:04

Editado porSheilla Ribeiro  em  21 dez 2025 12:04

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