Acessibilidade. Conscientização e fiscalização são o caminho para o cumprimento da lei

PorChissana Magalhães,5 mai 2018 7:51

​A nível mundial, cada vez mais cidades buscam formas de se tornarem cidades acessíveis e assim tornarem-se um modelo para os seus cidadãos no que à mobilidade toca. Há cerca de 18 anos, o arquitecto e urbanista Hélder Paz Monteiro começou a pensar na questão da acessibilidade no país. Viria a tomar a iniciativa de criar um grupo que acabou por estar na origem do decreto-lei que, em 2011, passou a enquadrar a acessibilidade nos centros urbanos de Cabo Verde. Sete anos passados, o mesmo procura agora criar um novo grupo que funcione como lobby para a efectiva aplicação da lei.

Em meados de 2014, a Associação Mon na Roda, que agrega deficientes físicos e mentais que encontraram na dança uma das formas de se integrarem socialmente, aceitou o desafio lançado pelo projecto BLA Rio (Busco Legados de Acessibilidade) para reproduzir na cidade da Praia a experiência de fazer uma pessoa que não fosse deficiente motor deslocar-se em cadeira de rodas pelas ruas principais da cidade e tentar aceder a edifícios onde funcionassem instituições e/ou serviços públicos. Miriam Medina, a representante da Associação e pessoa não deficiente, foi quem levou a cabo a experiência que deixou a nú aquilo que já se sabia: Praia, a capital de Cabo Verde e maior centro urbano do arquipélago, não era uma cidade acessível e onde a mobilidade se pudesse efectuar sem constrangimentos.

Isso mesmo confirmaram, na mesma ocasião, as personalidades públicas que os Mon na Roda convidaram para “sentir na pele” todas as barreiras com que se deparavam no dia-a-dia. José Maria Neves (então primeiro-ministro), Ulisses Correia e Silva (na altura presidente da Câmara Municipal da Praia) e Mário Lúcio Sousa (na ocasião ministro da Cultura) foram alguns dos dirigentes públicos que tentaram circular por alguns espaços e aceder a certos edifícios, constatando in loco que a lei que entrara em vigor cerca de dois anos e meio antes pouco ou nada alterara no cenário urbano.

“Constatamos que as nossas cidades e os nossos edifícios públicos ainda apresentam muitos constrangimentos, muitas dificuldades para as pessoas deficientes. Há muitas barreiras. Há grandes dificuldades”, testemunhou então José Maria Neves.

Ulisses Correia e Silva, por sua vez, reconhecia o muito trabalho que ainda havia a fazer “a nível de diminuição e eliminação de obstáculos arquitectónicos”.

O então bastonário da Ordem dos Arquitectos de Cabo Verde, César Freitas, também convidado pelo projecto BLA Praia a tornar-se “cadeirante” por algumas horas resumiu a experiência como “traumática”, apontando como motivo os “muitos obstáculos que impedem a mobilidade e o acesso aos locais pretendidos”. “Este desafio põe-nos numa situação de extrema fragilidade”, reconheceu.

Ainda em resultado da experiência vivida, José Maria Neves lembrou no seu depoimento a existência da legislação que obriga a que todos os edifícios públicos tenham condições para que os deficientes tenham acesso assegurado (Decreto-Lei nº 20/2011 de 28 de Fevereiro).

“Mas ainda não é o que acontece. Temos, eventualmente, que aprovar uma directiva para exigir que num dado período de tempo todos os edifícios públicos e todas as vias públicas, nos principais centros urbanos, garantam um acesso normal às pessoas deficientes. Afinal têm direito de mobilidade e todos nós temos que contribuir”.

Entretanto, o arquitecto e urbanista de quem partiu a iniciativa que resultaria na criação da lei, chama hoje a atenção para o facto de que a acessibilidade e mobilidade livres de constrangimentos não ser uma aspiração restrita a cidadãos portadores de deficiências.

“Acessibilidade tem a ver com todos nós. Digo isso porque, infelizmente, as pessoas pensam que existe um suposto “homem-padrão”, que é aquele individuo com um certo peso e altura, que não adoece, não envelhece, nunca tem um acidente e nem carrega uma criança ou um pacote pesado, etc. Ou seja, um super-herói” alerta Hélder Paz Monteiro.

“Algo que costumo sempre chamar a atenção é que quando falamos de acessibilidade estamos a falar do direito de ir e vir. Um direito de todos nós, não só das pessoas com deficiência”. E esclarece: “Nós temos estado a projectar para esse suposto “homem-padrão”, que é menos de 20% da população mundial. Ou seja, as pesquisas que já foram feitas mostram que mais de 80% das pessoas fogem desse perfil do “homem-padrão”. Nesses 80% entram os hemiplégicos, paraplégicos, amputados, portadores de deficiência cardíacas ou respiratórias, mas também as mulheres grávidas (principalmente no oitavo e nono mês de gestação), os idosos, os excessivamente baixos ou altos, pessoas carregando pacotes pesados ou com crianças, e as com problemas mentais ou sensoriais (cegos e surdos) ”.

Para o arquitecto, um dos aspectos fundamentais para que ocorra a mudança do status quo prende-se com a correcta compreensão do próprio conceito de acessibilidade.

Então do que se fala quando se fala de acessibilidade? “Condição e possibilidade de alcance para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, de edificações, espaços, mobiliário e equipamento urbanos, dos serviços de transporte e dos sistemas e meios de comunicação e informação”, define a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

“A minha contribuição, na altura da criação da proposta de lei, foi exactamente no capítulo dos conceitos em que fiz incluir a definição dos conceitos de acessibilidade, de barreiras arquitectónicas, urbanísticas e outras”, lembra o técnico da IFH.

Foi no Brasil – país onde se iniciou o já citado projecto BLA Rio, que denunciou as fragilidades de acessibilidade na cidade do Rio de Janeiro, mas também onde se encontra a cidade de Curitiba, exemplo em matéria de acessibilidade tendo inclusive sido premiada pelas mudanças introduzidas nos transportes urbanos – ainda estudante de Arquitectura e Urbanismo, que Hélder Paz Monteiro começou a se interessar pela questão e a desenvolver sensibilidade para esta necessidade na arquitectura e no urbanismo de Cabo Verde.

De regresso ao país, diz ter sentido de imediato a vontade de fazer algo e, percebendo que não existia ainda uma lei sobre esta matéria, iniciou contactos com diferentes pessoas e associações, particularmente David Cardoso, da Associação Cabo-verdiana de Deficientes.

“Nos reunimos, compilamos algumas leis de outros países para ver o que poderia ser adaptado à nossa realidade, e produzimos o que temos hoje. Não digo que seja a melhor lei existente mas, é o que foi possível na altura”, rememora, assumindo a falta de uma componente gráfica (imagens) como uma das deficiências da referida lei.

“Não tivemos tempo para procurar ajuda e termos a parte gráfica. Uma coisa é dizer que uma rampa deve ter inclinação máxima de 7%, outra coisa diferente é mostrar com desenhos para que as pessoas tenham noção. Está a faltar isso”.

Consciente de que os primeiros a necessitar desse olhar mais abrangente são os próprios técnicos que participam nas construções – arquitectos, urbanistas, engenheiros, entre outros – Monteiro fala numa inversão de perspectivas quando considera deficientes não as pessoas com dificuldades no acesso e mobilidade, mas sim os edifícios mal preparados para as acolher.

“Temos que começar a projectar fora desses parâmetros antigos. Se estes espaços, edificações públicas, equipamentos urbanos não servem a todos, estes é que são deficientes”.

Túrismo também afectado

Uma das áreas onde o país pode ficar a perder se continuar a ignorar o rigoroso cumprimento da lei é o Turismo. Tanto Praia como Mindelo vêm crescer o número de turistas que aí chegam por meio dos navios-cruzeiros. Grande parte destes turistas é idosa, com mobilidade já limitada, e ao circularem pelo centro histórico se deparam com barreiras de vários tipos. O urbanista aponta o exemplo do Museu Etnográfico da cidade da Praia que, com a sua escadaria única, limita ou impede o acesso destes turistas.

“São pessoas que já são reformadas e que usam o seu dinheiro para vir conhecer o nosso país. Ao deparar com essa falta de condições de acesso e mobilidade, o que acontece? Já não voltam. Escolhem outros destinos. E não estamos a falar de deficientes e sim de idosos. Se tivessem outra experiência, sairiam daqui a falar que estamos a pensar a acessibilidade”, aponta.

Com uma lei que entrou em vigor há sete anos, e mesmo depois da mediática experiência de 2014 com autoridades políticas a vivenciarem as dificuldades sentidas por portadores de deficiência, facilmente se pode constatar que a cidade da Praia (e as outras do país) ainda se encontra longe de corrigir as barreiras arquitectónicas, urbanísticas e de transporte que a tornam “unfriendly” no que à acessibilidade diz respeito. Qualquer mãe com um carrinho de bebé ou mesmo um peão sem qualquer equipamento extra ou deficiência motora que tente ir de um ponto a outro do seu bairro irá deparar-se ainda com passeios esburacados ou com calceta irregular, sem rampas, ou com viaturas estacionadas por falta de espaço apropriado para estacionamento, para não falar de sinalética mal colocada e muitos outros aspectos.

Edificações actuais e antigas continuam a apresentar ausência de requisitos para plena acessibilidade ou apresentando-os com irregularidades. Para este incumprimento da lei estará a contribuir, na perspectiva do nosso entrevistado, a falta de uma fiscalização constante, efectiva e eficaz.

Sem se refrear, o arquitecto constata que “não temos fiscalização. Alguém pode fazer um projecto como deve ser, resolvido em questões de acessibilidade. Leva-o à Câmara e ele é aprovado. Na hora de construir, por não existir fiscalização, o dono da obra decide alterar e não incluir a casa de banho para deficientes, “porque são muito grandes e roubam espaço”. Não mete uma rampa, “porque tira espaço”. E assim, a Câmara aprova o projecto de uma forma e este é construído de outra. Devia fiscalizar e, claro, há multas previstas na lei. Mas houve uma vez um técnico que me disse: “nós até vamos e damos a multa mas o valor é tão baixo que as pessoas não ligam”. Isto é um erro tremendo. Há um prazo. Se dentro do prazo o infractor não corrigir, devo voltar lá e aplicar nova coima num valor mais alto. É assim que se faz nos países que encaram isto seriamente. Mas aqui não. Os donos das obras acham que, pelo facto de já ter recebido uma coima, já lhe foi dada uma autorização de ter aquilo errado. O que está a falhar é a fiscalização por parte do poder público”.

Pôr a funcionar a fiscalização é apenas uma parte da solução para o problema da acessibilidade. Hélder Paz Monteiro assim o reconhece e aponta a conscientização da população, a vontade política, e recursos qualificados como aspectos essenciais no enfrentamento da problemática. A conscientização, repete, deve iniciar-se já nas escolas básicas e seguir até às universidades.

“O que queremos agora é criar um grupo de pressão para que a lei seja realmente aplicada. Algo que muitos não sabem é que os países que hoje em dia estão mais evoluídos em termos de acessibilidade não são aqueles que têm as leis mais detalhadas. São países onde há recursos que apoiam estas causas, países onde há conscientização da população acerca dessa questão. A lei é um primeiro passo. Não vamos ficar só pela lei”.

Um passo em falso, um entorse ou uma fractura. A qualquer momento um de nós pode se tornar alguém com mobilidade reduzida ou condicionada, alguém com necessidade especial. Só então as palavras de Mário Lúcio Sousa, que também participou no projecto BLA Praia, terão pleno alcance. Disse o então ministro da Cultura, ao fim da sua tentativa de deslocar-se a um edifício público numa cadeira de rodas:

“A sensação que fica é de que alguém se esqueceu de nós. Construíram o mundo supostamente para toda a gente mas, esqueceram-se de algumas pessoas”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 857 de 02 de Maio de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,5 mai 2018 7:51

Editado porChissana Magalhães  em  10 mai 2018 12:16

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