É este bairro da zona norte da cidade que foi escolhido para acolher o piloto do projecto MAPAurbe, uma ferramenta de auto-governação que parte de um processo colaborativo de mapeamento urbano.
O orçamento é zero. A equipa de colaboradores são estudantes universitários e profissionais amigos que se engajaram. MAPAurbe é trabalho voluntário e colaborativo a vários níveis. Um projecto de empoderamento de uma comunidade que começa por fazê-la olhar-se a sí própria profundamente, dialogar e definir as suas prioridades a médio e longo prazo.
A importância da participação social no desenvolvimento das cidades não é pauta recente. Fora do país ela alimenta e/ou resulta de uma infinidade de teorias, teses académicas, estudos, discussões, etc. E embora seja um método evitado por alguns administradores públicos – entre outras razões, por requerer tempo e uma série de procedimentos e metodologias - cada vez maior é o número de cidades que pelo mundo abraçam esta forma de governação que implica consultar, colaborar, empoderar e informar a população local.
Apostada em alinhar a sua gestão às práticas recomendadas a nível internacional por instituições como as Nações Unidas, a Câmara Municipal já deu sinais de ser sensível a estes modelos de governança, nomeadamente através da colaboração com a ONU Habitat para a criação de condições de aplicação da chamada ferramenta de Planeamento de Ações de Resiliência Urbana (City Resilience Action Planning Tool – CityRAP Tool) que prevê um “exercício de planeamento participativo ao nível de dois ou três bairros particularmente vulneráveis” com o objectivo de “criar um quadro estratégico da cidade resiliente através da elaboração um plano de ação prioritário”.
“Partimos do CityRAP, desenvolvida pela DiNSUR e UN-Habitat, no qual fui consultor aqui em Cabo Verde, para criar algo novo”, explica Redy W. Lima, sociólogo e mentor do projecto MAPAurbe que coordenada com a arquitecta e urbanista Ema Barros.
Lima chamou a urbanista para partilhar o projecto não só porque já colaboravam em outras acções de activismo social, como também pelo seu perfil de arquitecta urbanista com cinco anos de trabalho na Câmara Municipal da Praia onde inclusive foi ponto focal na ligação desta instituição com a ONU Habitat. No actual projecto, ela é a coordenadora do diagnóstico urbanístico.
“Não sendo institucional, não temos que cumprir agenda, o que significa que não temos que tirar fotos a mostrar o que está a ser feito, etc.”, provoca Barros sublinhando ainda que o facto de não terem contas a prestar liberta-os da pressão e dá-lhes maior liberdade para experimentar.
Tecnicamente apresentado como um processo colaborativo de mapeamento e auto-governação urbana, o projecto MAPAurbe é também descrito por Lima como sendo “uma abordagem teórica, metodológica e de acção pluridisciplinar em que, através de um trabalho colaborativo com os colectivos de base comunitária se realiza mapeamentos urbanísticos, socioeconómicos, socioculturais e criminais da cidade, a partir dos bairros”.
Participação cidadã
Foi em Fevereiro que arrancou no bairro de Safende, em parceria com a Associação Comunitária Amigos de Safende (ACAS) o piloto do projecto que, não sendo institucional, não tem um calendário rígido. No entanto, a previsão é de que dure de cinco a oito meses.
“Safende teve um diagnóstico em 2012 e uma das maiores dificuldades detectadas era o diálogo entre elementos da comunidade, o conseguir um associativismo mais sério e consequente”, revela a arquitecta. Ela lembra que parte deste bairro está hoje melhor infra-estruturado e socialmente equipado mas, há uma outra parte que ainda apresenta carências profundas.
O orçamento da Câmara Municipal da Praia para 2018 prevê um valor para Safende mas nem as associações locais nem os integrantes do projecto, apesar de algumas tentativas, conseguiram ainda saber o valor e o que se planeia para o bairro.
A urbanista explica esta ausência de informação com a inexperiência da edilidade de trabalhar em colaboração e diálogo com as comunidades. Isso poderá ser exemplificado com a posição da autarquia em relação ao projecto para a praça do Palmarejo, em que esta entrou em choque com os moradores desse bairro ao optar por impôr um projecto privado que ia contra as aspirações da comunidade. Isto quando os moradores já tinham anteriormente manifestado interesse em ter ali um espaço verde e de lazer ao invés de uma zona comercial.
Voltando ao projecto MAPAurbe, o sociólogo especifica que este “parte de uma abordagem teórica que assenta nos três conceitos básicos da nova agenda urbana (cidade inclusiva, resiliência urbana, cidade mais segura). Partimos destes três pontos de vista mas, acabamos por os desconstruir teoricamente”.
Esta desconstrução, explica Redy W. Lima, consistiu em levar esses conceitos aos membros da comunidade e perguntar a cada um o que entendia por cidade inclusiva, por cidade segura e resiliência. Com as respostas colhidas, em colaboração, “criamos uma nova teoria”.
Tanto a arquitecta como o sociólogo repetem várias vezes que o projecto não é participativo. É colaborativo. Lima explica a diferença:
“Não chegamos com um projecto pronto no qual as pessoas só tinham que participar, tomar parte nas acções. Um projecto onde nada do que foi definido antes é alterado. É colaborativo porque vamos sem nada. Apenas levamos um “desenho” que pode ser alterado a toda o instante. Levamos as três ideias bases da teoria e os elementos da comunidade as mudaram, e a partir disso criamos em colaboração uma nova teoria”, repete.
E que resultados práticos se esperam desta teoria comunitária?, pode estar a interrogar-se o leitor. À partida, e de modo geral, espera-se que ao abranger um leque alargado de bairros, o MAPAurbe contribua para um amplo conhecimento territorial da cidade ao mesmo tempo que dota os actores locais de mecanismos para a promoção de um urbanismo de coesão social, cidadania urbana e política pública de segurança. É também objectivo dos promotores do projecto que este venha a permitir analisar e priorizar as intervenções urbanísticas, socioeconómicas e culturais nos bairros e elaborar um quadro de referência de auto-governação comunitário com base no diagnóstico colaborativo.
“O objectivo final é que venha a beneficiar a vida das pessoas a fundo”, resume a activista social.
Para que tudo se concretize assim no piloto, e depois de cumprida a primeira fase (discussão e convergência dos pilares conceptuais), pôs-se em andamento o diagnóstico colaborativo do bairro. A análise de uma série de mapeamentos elaborados através de um diagnóstico exploratório na fase 1 é o começo. Este diagnóstico colaborativo é multidisciplinar e neste momento contempla o plano urbanístico, coordenado por Ema Barros, e o plano criminal, supervisionado por Redy W. Lima.
A arquitecta urbanista e o sociólogo contam com estudantes universitários nas respectivas equipas. Ela os alunos do curso de arquitectura da Universidade Jean Piaget, ele os estudantes de Criminologia do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. O trabalho de campo servirá, a alguns destes, para as suas monografias de final de curso.
“Estes estudantes, através desse projecto, podem fazer um programa de extensão com enfoque no Urbanismo, já que o curso não contempla essa componente; é apenas de Arquitectura”, comenta Barros que dá mais detalhes do trabalho a que se tem dedicado:
“Fazemos o levantamento de dados junto à população local do bairro. Os estudantes trabalham em duplas e cada dupla tem um morador do bairro como ponto focal. Quando todo o diagnóstico estiver feito, os dados serão levados à comunidade para consulta e discussão, a partir daí, irão construir-se possíveis cenários. Esses cenários serão de médio prazo (5 anos) e longo prazo (dez anos) ”.
Prioridades definidas
Estes prazos deixam claro uma determinação quanto à continuidade. Ou seja, os projectos que vierem a ser iniciados no bairro como resultado de uma gestão participativa, isto é, da auscultação directa da população, não deverão ser postos de lado ou alterados em caso de mudança na administração da cidade.
“Na minha área, a primeira coisa a fazer foi o mapeamento das zonas criminais. Parto de um mapa a zero e pergunto aos moradores, por exemplo, que áreas são perigosas. Esse mapeamento criminal contempla três aspectos: se há assaltos, se há negócios ilícitos (armas, drogas, etc.) e se há violência pública directa (tiroteios, etc.). Depois disso há a observação local”, elenca por sua vez Lima, ressaltando o uso de metodologias do campo da Sociologia e também da Etnografia.
Ao fim de tudo será entregue um documento à Associação e que se espera ser um plano de auto-governação. Haverá também a disponibilização do mapeamento realizado de forma digital, onde se compilará as informações conseguidas no terreno. Os promotores acreditam que o projecto irá gerar um profundo auto-conhecimento territorial que irá permitir à comunidade dialogar com as autoridades que ali chegarem com projectos prontos a implementar com pleno conhecimento das suas prioridades.
“Depois deste piloto, nos próximos poderemos recorrer a financiamentos mas, se não conseguirmos não quer dizer que deixaremos de fazer o trabalho”, avisa Redy W. Lima que também colabora no projecto Xalabas, desenvolvido pela ONG África 70 em Achada Grande com financiamento da União Europeia e parceria da Câmara Municipal da Praia.
O sociólogo vem desenvolvendo há alguns anos vários trabalhos que diz reflectirem um pensamento sobre o espaço urbano na cidade da Praia e este projecto surge na sequência, sendo também, segundo o próprio, uma constatação de que a intervenção de instituições como a ONU Habitat - e outras internacionais - passam sempre pelas instituições públicas o que torna-se um problema porque, na sua percepção, há muitas vezes em Cabo Verde um “défice democrático” traduzido num grande distanciamento entre poderes públicos e associações de base comunitária.
“Muitas associações são instrumentalizadas por questões partidárias (nem são politicas, e sim partidárias) e mais do que as associações, os grupos informais”, defende.
Também a adjectivação destes bairros como periféricos, clandestinos, informais e até problemáticos é questionada pelo sociólogo.
“Cerca de 70% da cidade da Praia é informal mas, se formos ver a fundo, mais de 90% da cidade está enquadrada naquilo que se denomina extra-legal. E isso não só a nível de habitação. A nível de tudo. Falamos de bairros informais e apresentamos os casos de Jamaica, São Paulo, etc. Mas, e se olharmos com mais atenção para a Rua Pedonal do Plateau? Se ali não há informalidade então não sei…”. E sobre este aspecto conclui:
“Precisamos de uma reflexão mais a sério e descolonizada do que é formal e informal”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 859 de 16 de Maio de 2018.