“São Nicolau tem potencial. Isso já nós sabemos!… E?”

PorSara Almeida,8 jul 2018 9:43

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São Nicolau é a ilha do meio do arquipélago, mas longe do centro das decisões do país. Longe dos centros estão também as pessoas que vivem diariamente com o impacto dessas (in)decisões. Jovens, reformados, empresário, visitantes.

Cidadãos comuns, cada um com sua história e seu caminho, mas com preocupações semelhantes. São pedaços de vidas, conversas que acabam sempre nos grandes temas da vida das gentes desta ilha: transporte, trabalho, migração, … Uma ilha que (quase) não ata nem desata, onde a narrativa do “potencial” já soa a conversa fiada.

“Eu vou falar a toda a gente de São Nicolau! Esta ilha é linda!”. É a quarta vez que Carol Pimentel, americana de origem cabo-verdiana, vem a Cabo Verde. Mas a primeira vez que visita São Nicolau. Motivou-a a procura de parentes, pelo lado da mãe, que vive também em New Bedford, terra para onde os seus avós viajaram há muitos anos, nos baleeiros. Diz que das ilhas que conhece (só não foi ao Maio e Boa Vista) esta é, sem dúvida, a sua preferida. “Como é que não ouvimos falar mais de São Nicolau? É lindo!”, insiste, prometendo fazer publicidade quando regressar aos EUA.
Encantaram-na essencialmente as belezas naturais de uma ilha de montes escarpados e vales, rochas esculpidas e praias de areia negra. Basta dizer que duas das sete maravilhas naturais de Cabo Verde, de Monte Gordo, a Carbeirinho, aí se situam. Mas a ilha destaca-se ainda pelo imenso património cultural que tem, do erguido pelos homens, como a Igreja Matriz, aos intelectos “Claridosos” de que foi berço, entre vários outros.
O inventário das “riquezas” desta terra é extenso, mas são riquezas porém que não têm correspondência em “PIB”.
Seria injusto não referir que há vários projectos em curso e melhorias tem sido paulatinamente realizadas. Mas há também retrocesso a vários níveis, e denota-se o despontar de alguma impaciência num futuro adiado.
“Os governantes vêm, dizem que São Nicolau tem potencial. Isso já nós sabemos! E…? Se é para virem dizer isso, mais vale ficar por lá, em Santiago”, reivindica a jovem Zémira Ribeiro. O que os sanicolaenses querem é resultados, melhorias concretas que respondam às suas necessidades. Melhoria que lhes permitam manter-se na sua ilha.
“Estamos esquecidos”
A todo o momento, a ilha perde população activa, vai ficando deserta. Não há emprego, não há transporte, não há oportunidades.
Não se sabe ao certo quantos saíram desde 2010, ano da realização do último Censo que então aferiu que São Nicolau tinha 13.817 habitantes (8580 no município de Ribeira Brava e 5237 no Tarrafal). Chiquinhos do séculos XXI, salvaguardando as devidas diferenças.
Não há dados concretos mais recentes, mas quem lá vive acredita que esse número tem vindo a descer preocupantemente.
O movimento é cada vez menos. “Veja que nos últimos tempos fecharam, em Ribeira Brava, quatro restaurantes. Fecharam também duas casas de fotografia. Não têm clientes”, refere o empresário hoteleiro Manuel Conceição, que também encerrou provisoriamente o restaurante do seu estabelecimento.
Os jovens de São Nicolau migram essencialmente para a ilha do Sal, mas também da Boa Vista onde há mais empregos devido ao turismo. Contudo mais empregos não são sinónimo de empregos dignos.
Muitos desses jovens aceitam parcos salários e acabam por engrossar os bairros sub-infraestruturados dessas ilhas, vivendo em condições inseguras e insalubres. Se houvesse investimento em ilhas como São Nicolau, a migração para as ilhas do Sal e Boa Vista não seria tão grande e seria mais fácil resolver o problema de habitação que têm. Assim, defende o empresário Manuel Conceição neste desiderato, como em outros, o governo faz apostas erradas, acabando por pagar o preço a montante do que não salvaguardou a jusante.
Zémira Ribeiro tem 24 anos e uma licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais. Dos colegas e amigos da sua idade já “quase todos” saíram de São Nicolau, “90% deles para a ilha do Sal”. E a grande maioria acaba por aceitar aí qualquer trabalho, corrobora, “porque consideram que é melhor do que nada”. Se eles não aceitarem, outros o farão. 

“A maioria não vive, sobrevive”, alguns em casa de família, outros em apartamentos conjuntos, outros… sabe-se lá.
Zémira Ribeiro conhece as histórias dessa migração interna. Com a mãe em Espanha, sabe também como a vida de emigração pode ser difícil. Assim, vai tentando alguma coisa a partir da Ribeira Brava, onde pelo menos tem tecto. Terminou o curso há mais de ano e meio. São meses a enviar currículos, aceitando trabalhos de ocasião, estágios não renumerados, e uma substituição de uma licença de uma maternidade. Tem esperança de, em breve conseguir um emprego na sua cidade.
A esperança é sua, a desperança geral, considera. “Ao fim de um certo tempo, quem está à procura de emprego entra-se mesmo em desespero. É preciso fazer alguma coisa para manter os jovens em São Nicolau, porque isto está mesmo mal e não vejo melhorias nenhumas”, diz. “A meu ver São Nicolau está a regredir. As ilhas periféricas deviam ser prioridade em termos de governação, mas não querem saber. Não dão tantos votos.”
Menos transportes, menos visitantes
As pessoas partem de São Nicolau, e, de fora, vêm cada vez menos. Incluindo turistas. Pelo menos é o que sente, em termos de procura, Manuel Conceição, proprietário da Pensão Hotel Santo António, na Ribeira Brava.
“Esta pensão foi construída em 2003. Na altura havia aviões pequenos que vinham regularmente do Sal, São Vicente, Praia. Todos os dias havia gente. Fizemos o estudo de viabilidade económico e os bancos nem hesitaram em financiar o projecto de construção desta pensão”, conta. O lucro parecia garantido.
Contudo, a retirada de circulação desses “pequenos aviões”, quando a pensão ficou pronta, mudou o panorama. “A coisa começou a ficar difícil desde os primeiros tempos”.
Os dados do INE vão, de certa forma, ao encontro da sua experiência. Se em 2003, ano em que abriu a pensão, a taxa de ocupação dos estabelecimentos da ilha era de 21,5%, em 2017 não ia além dos 10%. Isto não quer, porém, dizer que não tenha havido um aumento no número de dormidas em geral. Houve - de 3.221 (em 2003) para 6.787 (em 2017). Mas é também de registar que já em 2001, se registavam 6.279 dormidas. O número caiu abruptamente e a partir de 2003 começou a recuperar, atingindo um pico de 13.066 em 2013. Depois, foi decaindo até agora, para metade.
São Nicolau regrediu e olhando para Santo Antão, ilha com que costuma ser comparada (até porque, não faria sentido comparar com Sal ou a Boa Vista uma vez que as características do turismo pretendido são diferentes) vemos o marasmo a que foi votada. Em Santo Antão a taxa de ocupação passou de 14,5% em 2003 para 21% em 2017. As dormidas multiplicaram-se quase por 10: de 8.061 para 71.602, nesse hiato de tempo. Mesmo sabendo-se que há espaço para crescer e que também Santo Antão precisa de mais atenção, a comparação mostra o descaso com São Nicolau.
Na origem do problema estão os transportes, insiste Manuel Conceição. Os voos de e para a ilha são poucos, e partem da Praia. “Eu, para chegar a São Vicente ou Sal, por vezes tenho de ir dormir na Praia, para, no outro dia, apanhar outro avião e vice-versa. Por isso agora, praticamente, não vem ninguém”. Os barcos, esses, “não têm programação”. As pessoas não arriscam.
Grande parte das dormidas registadas em São Nicolau diz respeito a períodos como o Carnaval, ou até as férias de Verão, sendo que o resto do ano o cenário é pior.
Mas mesmo essas alturas – e todos os anos há registos de queixas – parecem estar a piorar. Principalmente o Verão. 

“Este ano, por exemplo, tive pessoas que vinham passar as Férias e fizeram a Reserva. Mas já desmarcaram porque dizem que não conseguiram lugar no avião da Praia para São Nicolau. Está tudo cheio”, conta.
E assim, por carências logísticas o movimento na ilha vai diminuindo.

“Rezamos para ter saúde”
Todos os sanicolaenses falam, de facto, da falta de transporte. De como afecta a economia, mas também de como lhes põe o “credo na boca” em questões de saúde, por falta de capacidade local para emergências (ligeiramente) mais complicadas.
“Aqui falta muita coisa. Em termos de transporte estamos esquecidos. Vem um barco da Praia de 15 em 15 dias, mas chega a estar um mês sem vir. Temos falta de médicos e quando vêm, as consultas são caríssimas. E temos ainda o problema da evacuação…”, desabafa a vendedeira Zeza, que encontramos no deserto mercado da Ribeira Brava.
Também a jovem Zémira Ribeiro aponta a saúde como uma das áreas com mais problemas da ilha. “Faltam materiais-base. O sistema é precário. Temos o problema da evacuação”. Um exemplo concreto que dá é a questão dos partos. Em São Nicolau, segundo diz, não se fazem cesarianas de emergência. Pela falta de condições são aliás muitas as sanicolaenses que se deslocam a São Vicente para ter a criança, por iniciativa própria, por uma questão de segurança

No geral, “temos estado a rezar para que tenhamos saúde, porque se acontecer alguma coisa de mais grave …” A jovem não termina a frase. Não precisa.
Verduras há, dificuldades também
No ano passado não choveu e os efeitos da seca têm sido problemáticos por todo Cabo Verde. No entanto, apesar das dificuldades, na ilha de São Nicolau a situação não parece tão grave como em outras ilhas. No mercado de Ribeira Brava, a avaliação é que “pela graça de Deus, está dret, em termos de verduras”.
“Só dinheiro é que não tem”, brinca Zeza, vendedeira que há 27 anos contrariou os fluxos de saída de São Nicolau e se mudou da Praia para esta ilha.
O negócio não rende muito. Pouca gente, pouco lucro. Turistas, nem vê-los. “Aqui não vêm, só se forem para outros lados”, diz.
Quanto à seca, diz, houve, sim, mas o seu impacto não foi muito grande.
“Em São Nicolau temos furos, e como a população é pouca, a coisa chega. Não é como nas outras ilhas,” diz a vendedeira, que se abastece nos agricultores de Fajã, um dos pólos principais do país nesta actividade.
Longe parece o tempo em que ano sem chuva era sinónimo de fome. Mas independentemente disso, para a jovem Zémira é inegável que há gente a passar mal.
“Não digo fome, quando se fala em fome pensa-se em pessoas muito magras e debilitadas. Mas há pessoas a passar muito mal. Se tomam o almoço não sabem se vão jantar. Acaba por ser fome também. Nas zonas piscatórias, por exemplo, nos dias em que o mar não está bom, as pessoas passam mal. Há aqui muitas coisas que estão mal, muitas”, lamenta.

“Cabo Verde aposta no incerto, em vez de apostar no certo!”
Os temas andam em círculos. A conversa sobre uma preocupação leva a outra e andando volta-se a temas que já se referiram. A certo nível, uns são causa e efeito dos outros. Isolamento, seca, partir. Embora a seca de 2017, apesar de tudo, não ter tido efeitos muito acentuados em São Nicolau, a falta de chuva vem muitas vezes à baila na conversa com os entrevistados.
“Não chove. E os sucessivos governos nunca investiram em Cabo Verde a pensar que aqui não chove”, critica o empresário Manuel Conceição.
A aposta tem sido em Barragens – como a falhada Barragem de Banca Furada inaugurada em 2015 na zona da Fajã, - e também em furos para as águas subterrâneas.
“Mas depois não chove, e não há água” disponível por esses sistemas, refere, apontado não entender por que motivo, sendo Cabo Verde um arquipélago não se investe na dessalinização.
“O governo aposta no incerto e deixa o certo para trás”, condena. Com a dessalinização e água em abundância, com transportes regulares, São Nicolau poderia abastecer várias ilhas. Mas não há.
“E esta ilha está cada vez mais desmoralizada”, reclama.

Mi manca la mia terra, São Nicolau

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A emigração sempre fez parte da ilha de São Nicolau (como, na verdade, de todas as outras ilhas de Cabo Verde, em geral). Certos períodos marcaram os fluxos: houve uma altura em que o destino principal era a América, nos baleeiros. Houve também a emigração, como contratados, para São Tomé, como celebrizado na morna Sodad, aqui composta. E, entre outros, houve também uma significativa migração feminina para Itália, retrato interessante da migração sanicolaense.
Augusta Soares não foi das primeiras a emigrar, “mas quase”. Estávamos em 1969, e uma amiga que já se encontrava em Roma arranjou-lhe emprego como doméstica.
“Quando fui a emigração [para Itália] ainda era pouca”, conta. De 74 “para a frente”, aumentou exponencialmente. Augusta não sabe precisar números, mas “eram muitas. Uma pessoa mandava buscar outra pessoa. Uma mandava buscar as irmãs, outras, uma amiga. Arranjava-se emprego em casa de uma senhora [romana], tratava-se dos papéis”, e iam. Começaram a ir também de outras ilhas, “todas as ilhas”, lembra.
Antes de Augusta ir teve aulas diárias com o padre Jesualdo, clérigo italiano e figura incontornável na ilha. Não há quem, em São Nicolau, não o tenha conhecido, ou - no caso das gerações mais novas - ouvido falar dele. Aliás, ele foi um dos grandes impulsionadores desta emigração feminina para Roma, prestando apoio a jusante e montante a essas mulheres.
“Eu cantava na missa. Antes de ir, ele ensinou-me italiano, eramos três mulheres e tínhamos aulas todos os dias à tarde. Quando cheguei a Roma já sabia o suficiente para ‘as coisas dentro de casa’. O resto, aprendi depressa. Em um mês falava italiano bem. É fácil”, recorda.
No início a adaptação não era fácil. Pensava-se nos filhos (Augusta tem dois, que ficaram com os avós), nos lugares, pessoas e rotinas que ficaram para trás. Augusta já tinha lá algumas amigas, mas eram poucas. Depois, com o aumento da emigração, e as festas e momentos de convívio que a comunidade organizava tudo ficou mais fácil. “Havia muita gente. O ambiente era bom”.
As saudades acompanhavam os passos, mas com esse convívio e algum conforto, a vida tornou-se mais fácil.
Essa migração foi, como referido, essencialmente feminina, mas muitas dessas emigrantes acabavam por namorar com os cabo-verdianos que emigravam para a Holanda. Estes, por sua vez, quando arranjavam os documentos italianos juntavam-se a elas. “Mais recentemente, já havia muitos homens em Itália. Mas as primeiras a ir foram mesmo as mulheres”, diz.
Augusta não casou nem teve mais filhos em Itália, onde viveu durante 40 anos de emigrante. Quatro décadas durante as quais manteve contacto com a sua terra, Ribeira Brava, “Vinha sempre de férias”. Um ano depois de se reformar, regressou. Desta vez para ficar. Tinha 61 anos.
Tal como ela, muitos reformados regressam a São Nicolau. À terra de onde partiram, tal como hoje muitos partem, à espera de melhor.

“Este ano é dos piores”

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A vida da pesca também não é fácil, e esta continua a ser o mais importante meio de subsistência da população do município do Tarrafal. O peixe, como se sabe, é cada vez menos.
É impossível falar do Tarrafal de São Nicolau sem referir a SUCLA – Sociedade Ultramarina de Conservas, Lda (de que falaremos mais numa outra Parte do especial São Nicolau). Na verdade, a própria cidade terá nascido a partir do estabelecimento dessa indústria na localidade.
Jack Pinheiro, proprietário da emblemática empresa e aqui praticamente criado, vê as coisas sob o ângulo que os seus 86 anos lhe dão. Conhece a transitoriedade das coisas, mas o que vê é uma tendência decrescente que o preocupa, em relação ao pescado.
“Através dos meus dias, tenho visto passar diferentes fases. Um ano bom, outro ano mau, mas tem vindo a piorar. Todos os anos estamos a espera de melhor, e vai piorando, piorando... Este ano é dos piores. Até já estou um pouco preocupado com o que vai ser o futuro dessa empresa”, diz.
O peixe é cada vez menos na zona e ir comprar em outras instâncias geralmente fica a um preço incomportável. “Na nossa forma de trabalhar, não dá para sobreviver”, explica.

“O governo não quer melindrar a UE”

Uma das eventuais soluções para contrariar a tendência negativa seria, por exemplo, que nos acordos de pesca, em particular no acordo com a União Europeia fosse salvaguardado que uma parte do pescado fosse deixada em território nacional. Aliás, essa é uma medida que o próprio governo, que neste momento está a renegociar os termos do Acordo já afirmou ter em consideração. Contudo, o empresário está reticente no resultado efectivo dessa quota. “Há toda uma tendência do nosso governo em não querer melindrar a UE. E como a União Europeia dá uma grande ajuda a Cabo Verde, tem de haver isso”, concede.
De qualquer forma, essa quota teria de ser a um preço acessível, “porque se não for, não interessa”.
A fábrica trabalha bastante aquém das suas possibilidades de produção: 12 toneladas de atum por dia, empregando cerca de 200. Poderia chegar às 20 toneladas, se “houvesse peixe, e teria que arranjar 400 pessoas ou então motivar o pessoal para fazer mais um turno, ou dois”.
“Nesse caso, de qualquer forma teria de ter mais 25% de pessoal, mais umas 50 pessoas”, explica o proprietário da fábrica que produz um dos mais conhecidos e queridos produtos nacionais: o atum Cadório.
“É encomenda de terra. Não há emigrante Cabo-verdiano que venha de férias que não quer levar na sua bagagem uma lata de um para oferecer”. Encomenda de Terra, terra São Nicolau.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 866 de 4 de Julho de 2018.

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Autoria:Sara Almeida,8 jul 2018 9:43

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 jul 2018 7:46

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