Falemos de Masculinidades

PorChissana Magalhães,2 dez 2018 10:13

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​Há já vários anos que o tema Igualdade de Género saltou para a agenda pública e ganhou a atenção de académicos, governantes, ONGs, comunicação social e também da sociedade civil fora do âmbito das organizações.

Até aqui, naturalmente, o foco tem estado nas mulheres quer como vítimas de um sistema patriarcal e opressor quer como protagonistas das lutas feministas e que, a partir do seu legítimo lugar de fala, têm denunciado as violências sofridas. Agora, lá fora, começam a ser destacados estudos de género em que os homens são o objecto de pesquisa e conceitos como Nova Masculinidade ou Masculinidade Frágil emergem. Em Cabo Verde já se começa também a alargar as pesquisas à volta de questões de género ao masculino, lançando um olhar mais analítico aos homens e às masculinidades.

Quando em 2013 a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania lançou a campanha nacional “Ami é Pai” para sensibilizar sobre a importância do papel do pai na vida da criança, pretendendo contribuir para uma cultura de paternidade responsável, para além de várias reacções positivas também houve quem criticasse a iniciativa por entender que a sensibilização deveria recair sempre sobre as mulheres. Caberia a estas empoderarem-se de modo a estarem em condições de assumirem sozinhas a responsabilidade parental e não esperarem nunca e nem exigirem qualquer tipo de participação da parte do homem com quem tivessem gerado um filho.

O mesmo tipo de ideia viria a emergir quando, em 2014, a AMES fez sair a campanha “Homem que é homem não bate em Mulher”. Novamente reacções divididas: de um lado elogios e apoio à campanha contra a VBG, de outro vozes que defendiam que o foco da campanha estava totalmente errado e que, uma vez mais, não se deveria falar aos homens e sim às mulheres, fazendo recair unicamente sobre estas a responsabilidade de mudarem de atitude e escaparem da sua condição de vítimas violência.

Entretanto, a nível mundial são vários os especialistas que explicam que nenhuma mudança envolvendo questões de género será alguma vez alcançada se o foco estiver sempre e exclusivamente de um lado. Vencer problemas como a violência e a discriminação contra as mulheres passa por transformações profundas nos modelos de masculinidade.

O psicólogo Jacob Vicente partilha esta mesma ideia. Em entrevista ao Expresso das Ilhas para a reportagem “Assédio Sexual. É hora de quebrar o tabu” (ed. nº 849 de 07 de Março de 2018) em que associava o comportamento violento de certos homens à cultura, dizia: “(…) a construção de uma nova identidade masculina é mais do que necessária e é urgente”. E continuava, lembrando que a identidade pessoal e social, nos homens como nas mulheres, é uma construção social:

“ Acredito que estamos na fase de construção de um homem com novos papéis sociais e com novos desafios, entre eles, o de olhar para “ela”, não como um objecto, não como um suporte, mas sim, como uma parceira, como indivíduos que se complementam”.

“A gente vai sendo enquadrado, colocado em caixas, e esses comportamentos originam uma série de atitudes que nos deixam reféns. Socialmente, o patriarcado e o machismo facilitam a vida do homem, mas geram uma série de angústias e um sentimento de confusão, principalmente quando a mulher se empodera”, afirma por sua vez o terapeuta brasileiro Claudio Serva, que ministra cursos dedicados a repensar o sexo e a masculinidade, em entrevista à revista Galileu, do grupo Globo.

Qual masculinidade?

Em ambos os casos, estes especialistas focam o homem heterossexual, aquele cuja masculinidade é considerada padrão e é a dominante nos discursos e em algumas análises. Existem porém várias masculinidades, várias formas de ser homem, assim como existem várias formas de ser mulher. E a pluralidade não passa apenas por incluir conceitos como a masculinidade homossexual ou a masculinidade transexual. Mesmo quando se foca o homem heterossexual existem variáveis e contextos condicionantes, como por exemplo a cultura.

Para Rony Moreira, sociólogo de formação, e que tem-se manifestado criticamente quanto a algumas abordagens sobre questões de género, concretamente sobre as várias formas de masculinidade, atende-as como sendo reflexos do individualismo hoje dominante.

“Fragmenta-se o colectivo, vão surgindo conceitos e sub-conceitos. E alguns são apenas tendências de marketing e do consumismo”, afirma.

Moreira traz uma perspectiva inusual sobre a abordagem da igualdade de géneros em Cabo Verde: “Uma coisa é igualdade de géneros, o que é expectável que assim seja, outra coisa é inverter esta lógica. E em Cabo Verde a luta de igualdade de géneros está a tornar as instituições do Estados (Função Pública e Ensino) violentas para com o género masculino. E está-se a criar um outro problema social. O que vai criar infelicidades e anomalias sociais. Ou seja, o princípio do equilíbrio (entre género, que é bom), está precisamente a criar um problema para o futuro”, defende.

Talina Pereira, técnica do ICIEG que encontra-se a trabalhar numa tese de doutoramento à volta do tema masculinidades, com foco no grupo Laço Branco, escreve na mesma que “em Cabo Verde temos uma cultura fortemente enraizada na cultura ocidental facto esse que, em última instância, reorganiza toda estrutura social numa tentativa de homologia a modelos ocidentais.”

Contudo, da pesquisa que efectuou no seio do Laço Branco a constatação foi de que “as masculinidades como forma de identidade de alguns homens, são flutuantes, dependendo dos contextos, de variáveis e elementos externos, que vão moldando, conforme as várias situações em que a pessoa se encontra”.

A rede Laço Branco surge em 2009, ainda antes da entrada em vigor da chamada Lei da VBG (2011) criada na sequência dos primeiros debates e iniciativas à volta da questão sobre a violência baseada no género, e depois de os primeiros estudos trazerem números alarmantes da violência sofrida por mulheres. O grupo masculino propunha-se a engajar homens das mais variadas áreas de formação e actuação na promoção da igualdade de género e dos direitos humanos posicionando-se contra a violência baseada no género.

Na sua tese Talina Pereira apresenta o Laço Branco “como uma associação que se apresenta nesse contexto como um espaço de problematização e passa a questionar o fundamento das masculinidades e a trama que envolve a construção e a reconstrução das identidades ditas masculinas. Como um movimento que tenta conseguir fugir das malhas de um controle total e de uma manutenção de uma certa masculinidade, através do conhecimento e de um aprendizado marcado por questionamentos” (extracto da tese).

O próprio grupo vê a sua existência como uma resposta a um certo modelo de masculinidade, aquela muitas vezes identificada como Masculinidade Tóxica:

“Na sociedade cabo-verdiana prevalecem preconceitos e estereótipos sexistas bastante enraizados e uma das faces mais visíveis destas representações são os altos índices de violência contra a mulher, que têm como efeito a deterioração de relações nos espaços privados e públicos. E porque os homens são ao mesmo tempo parte do problema e da solução, pretendemos, confrontá-los com atitudes, normas sociais e comportamentos discriminatórios em relação aos papéis de género e de violência contra as mulheres, queremos nos e os comprometer nesta luta de identificação e eliminação das práticas sociais injustas em função do género e pôr fim a todos os tipos de violência contra a mulher”, apresentam-se num texto de divulgação da sua missão e dos seus propósitos.

Violência

No mesmo documento desconstroem ideias de masculinidade muito arraigadas na sociedade cabo-verdiana: “ Em que acreditamos? Que ser homem não é ter muitas parceiras; Usar violência contra outros; Aguentar a dor; Procriar um grande número de filhos e filhas; Exercer o poder sobre outrem; Ser heterossexual”.

A violência está pois sempre a surgir quando se aborda a masculinidade. Mas fazer uma relação automática entre homens e violência é cair uma vez mais na armadilha de reduzir-se ao singular. A nossa entrevistada corrobora exactamente isso:

“Depende de que masculinidade falamos. Se estivermos a falar da masculinidade hegemónica, que espelha uma sociedade patriarcal e machista, a relação é intrínseca. Pois aqui a necessidade da construção de uma identidade de poder, que domine e controle, é fulcral e faz parte de toda a construção de identidades. Se falamos de “outras masculinidades” uma variedade de elementos estarão na base”. E exemplifica com outro extracto da sua pesquisa:

“Dos relatos dos elementos do Laço Branco, uma das razões que levaram alguns a se associarem ao grupo, foi o facto de terem encontrado um espaço onde eles podiam expressar-se e contribuir para projectos com os quais se identificavam. Para outros elementos, este espaço é um espaço de re- construção de um ideal de si que se afasta, contudo, de uma masculinidade hegemónica baseada, por exemplo, na violência”.

Rony Moreira concorda que a violência é um aspecto historicamente e socialmente ligado a masculinidade [hegemónica].

“Isto é um facto, principalmente quando ela é física e extrema (a morte). E em Cabo Verde os dados demonstram esta realidade, que é um aspecto negativo da nossa cultura. E, prevendo que a mudança desse comportamento será lenta mas concretizável, avalia:

“A mudança de mentalidade e de atitude para alcançar o desejado tem que ser uma coisa feita por todos, não cabe só a mulher este papel. Porque, caso vier a ser assim, acabaremos por ter outra “ditadura” de género”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,2 dez 2018 10:13

Editado porJorge Montezinho  em  3 dez 2018 12:00

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