Dados provisórios de um estudo em curso sobre violência no namoro no meio académico cabo-verdiano vêm finalmente trazer números e estes mostram que um em cada quatro estudantes universitários já usou da força física e mais de metade recorreu à violência psicológica sobre o(a) companheiro (a). A aposta na prevenção é cada vez mais apontada como um caminho fundamental para fazer face a este tipo de estatísticas.
Um em cada quatro estudantes admite que já empurrou ou apertou o/a companheiro/a ( 27.6% agressores e vítimas), ou seja, usou da força física. Mais de metade dos estudantes afirmaram que já gritaram ou berraram com o seu/sua companheiro (59.9% agressores/as e 56.1% vitimas), o que configura violência psicológica.
Os números são ainda dados preliminares de um estudo que está a ser desenvolvido em Cabo Verde, com estudantes do ensino superior, público e privado, com idade a partir dos 18 anos e idade média a rondar os 23 anos.
Há ainda 28.8% dos/das jovens que assumem que insultaram ou rogaram pragas ao/a seu/sua companheiro/a e 26.9% que diz já ter sido vítima desses comportamentos, enquanto que 31.9 % assume que já chamou feio/a e/ou gordo/a ao seu/sua companheiro/a e 24.5% admite já ter sido vítima desse comportamento.
Vítimas e ofensores reportaram ainda outros comportamentos e atitudes violentas como atirar com objectos, acusar o(a) namorado(a) de ser mau/má amante, forçar a ter relações sexuais, “entre muitos outros”.
Até aqui estes dados estiveram restritos a três instituições do ensino superior na ilha de Santiago – uma pública e duas privadas – onde foram entrevistados 257 jovens com uma média de idade situada nos 23 anos. As respostas obtidas “alertam para a existência de comportamentos abusivos nas relações de intimidade”, concluíram os investigadores.
O estudo, iniciado em 2018, está a ser realizado por uma equipe da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto liderada pela professora doutora Madalena Oliveira. Com previsão de conclusão em 2019, a pesquisa pretende “conhecer as relações de intimidade de jovens a frequentar o ensino superior, por forma a permitir definir posteriormente um plano de acção”.
Os promotores deste estudo apontam a urgência em conhecer esta realidade, “não baseada no senso comum mas em estatísticas que possam de alguma forma traduzir as experiencias vivenciadas por estes jovens”.
Assumindo que os dados preliminares não permitem ainda aferir de que género é predominante a percentagem de vítimas e de agressores, a responsável pelo estudo indica que a nível internacional “quando se analisa a violência em contexto de namoro entre jovens, por norma, há reciprocidade”. Ou seja, tanto rapazes como raparigas estão, em equilíbrio, na situação de vítimas e agressores.
“Neste caso em concreto ainda não estamos em condições de aferir, não foram ainda feitas tais análises”, esclareceu.
Para já, o senso comum aponta que em Cabo Verde a tendência é para que entre os jovens a situação de violência nas relações seja similar ao que acontece entre adultos, em que os dados estatísticos mostram que há vítimas e agressores de ambos os sexos porém, as vítimas são maioritariamente do sexo feminino e os agressores do sexo masculino.
Foi o que constatou Miriam Medina, mestre em Ciências Sociais, que em 2017 iniciou um projecto de palestras nas escolas, sob o lema “Se causa dor não é amor”, para falar de violência no namoro.
“Em Novembro de 2017 recebi um telefonema de uma amiga de infância que vive em Portugal e que tinha acabado de sofrer violência por parte do namorado. Senti-me impotente, por não poder ajudar. Fiquei incomodada com a situação e de repente tive um “clic” e surgiu a ideia das palestras”, conta Miriam Medina ao Expresso das Ilhas.
“Na primeira palestra, quando perguntei se alguém ali tinha sido vitima de violência ninguém queria falar, talvez por vergonha. Depois, a própria professora disse que tinha sido vítima de violência por parte do ex-companheiro e então começaram a falar, e quase todos naquela turma tinham sido vítimas de violência no namoro”.
Rel(atos) de violência
Durante os meses que esteve no terreno a activista social conseguiu, com o apoio das câmaras municipais, realizar palestras em escolas secundárias e algumas universidades nas ilhas do Sal, Boa Vista, Santo Antão, São Vicente e Santiago. Foram várias dezenas de histórias ouvidas a meninas e rapazes. Histórias sobre meninas a quem os namorados controlam e pressionam quanto á roupa que vestem, às amizades e companhias, às publicações nas redes socias e em relação ao sexo. Em sentido inverso, foram menos comuns mas não inexistentes os relatos de rapazes agredidos física e psicologicamente por namoradas.
“Cada vez que pensava que já tinha ouvido de tudo surgia uma história ainda mais violenta”. Histórias como a de R., que com apenas 15 anos foi violada pelo namorado e escondeu o facto até dos próprios pais. Ou A., a quem a namorada batia, mesmo na presença dos amigos, e chegou a partir-lhe um braço.
Mas há “pior”. Algo que a socióloga terá ouvido com frequência foi o relato de meninas que sofrem assédio sexual dentro das suas famílias.
“As meninas principalmente, ainda muito jovens, sofrem muito, muito mesmo, assédio dentro das suas famílias”, lamenta Miriam Medina dando a perceber a existência de situações de abuso que começam no seio familiar e que deixam as vitimas vulneráveis a posteriores abusos no namoro.
“Se a jovem é permissiva, se ela não souber se impor, será uma mulher também permissiva. E o ciclo irá continuar”, analisa.
Em Fevereiro de 2015 o Expresso das Ilhas noticiava uma iniciativa da primeira-dama (semelhante à de Miriam Medina) em que esta, por ocasião do São Valentim, visitava algumas escolas secundárias para falar aos adolescentes sobre a violência no namoro.
“Ouvi algumas coisas que ainda mostram que é preciso muito trabalho. Isto porque são influenciadas pela educação que receberam e que ainda continuam a receber. Todos temos os discursos politicamente correctos muito bem afinados, temos é que ir ver no nosso dia-a-dia como é que praticamos esses discursos. E depois, o que acontece dentro dessas nossas bases, da nossa educação, onde continuamos a repetir alguns preconceitos, algumas práticas discriminatórias entre meninos e meninas. Isto não se muda de um dia para o outro, vai-se mudando”, observou então Lígia Fonseca.
Ainda que se tratando de menores, a maioria dos pais não estará a par da feia realidade por trás dos namoros dos filhos. A falta de confiança para o estabelecimento de uma comunicação aberta com os pais estará na origem deste fosso entre pais e filhos, que leva a que muitos jovens se mantenham por muito tempo nestas relações abusivas e sofram sozinhos as suas consequências.
Nos seus contactos com os jovens, em várias ocasiões Miriam Medina terá facilitado que estes começassem a comunicar-se com os pais e a contar a estes as situações de violência que sofriam, tendo também encaminhado alguns para um psicólogo já que registam-se casos de traumas mesmo após o fim do namoro.
Muitos dos relatos ouvidos – anónimos, já que a maioria dos jovens ouvidos são menores – foram compilados por Miriam Medina no livro “Se causa dor não é amor”, já pronto e que a socióloga espera conseguir publicar este ano.
“No livro que vou publicar falo desse problema como uma questão de saúde pública, porque aquilo que se está a passar em Cabo Verde é uma questão de saúde pública”.
Percepção, prevenção
Nas abordagens mais recentes à problemática da VBG tem sido feita referência à tendência para tipificar como tal apenas a violência na sua expressão física quando a violência psicológica – nas suas múltiplas formas – também ocorre e deixa sequelas nas vítimas.
Da sua experiência, Miriam Medina diz ter constato essa propensão e que esta leva muitos jovens a não perceber que estão numa relação abusiva.
“Talvez por inexperiência. Para muitos a primeira relação, o primeiro namoro, já foi uma experiência de violência e então fica essa como referência. Não sabem que podem experienciar o amor de outra forma” analisa, juntando ainda que muitas relações entre adolescentes são perduradas através de ataques à auto-estima da/o namorada/o e que as vítimas tendem a confundir esses abusos como sinal de ciúmes e de que a pessoa gosta delas.
Já com os agressores, nos encontros ocorria muitas vezes a constatação de que cresceram em ambiente onde a agressividade e a violência física e psicológica entre familiares é comum.
Da percepção do que é violência e de como ela está a atingir os mais jovens à prevenção, todos exortam á tomada de acções para fazer frente ao estado actual da situação.
“Os pais devem promover o diálogo com os filhos, porque se houver dialogo, se houver confiança, penso que as coisas podem melhorar”, diz Miriam Medina que acredita que uma comunicação aberta entre pais e filhos, desde muito cedo, diminui o risco dos adolescentes caírem neste tipo de relações.
Por seu lado, Madalena Oliveira refere o papel das entidades públicas.
“Estes dados devem preocupar as entidades, nomeadamente na procura de estratégias preventivas e interventivas eficazes de combate a este fenómeno. Pois, conforme refere a literatura, há uma tendência para a escalada deste tipo de comportamentos e comprovam que a maioria destes relacionamentos violentos perdura para além dos primeiros episódios abusivos”.
A este propósito, soubemos junto do ICIEG que a instituição já tem em preparação uma campanha contra a violência no namoro, estando o projecto em fase de captação de financiamento para sua implementação nas escolas secundárias do país.
Entretanto, Madalena Oliveira defende que a prevenção seja feita o mais cedo possível, preferencialmente no pré-escolar ou no primeiro ciclo do primário. Isto porque muita informação acaba por ser cristalizada nessa fase.
“A prevenção tem que ser feita nas escolas, onde grande parte das crianças se encontra diariamente. É um palco de solução privilegiado. Essa prevenção terá que ser mais de âmbito primário: consciencializar, sensibilizar, de forma que as crianças interiorizem que as relações têm que ser de igual para igual. Ou seja, não podem existir comportamentos abusivos nas relações”.
E alerta que se esse trabalho não for feito há o risco de se tolerar e naturalizar a violência e fazer com o ciclo da violência perdure.
“O objectivo aqui é educar. Educar para a cidadania, educar para a igualdade, porque isto é, sem dúvida, o motor de desenvolvimento de qualquer país”.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.