Joana Rosa. “Mesmo antes de militar, disponibilizei-me para a política”

PorChissana Magalhães,30 mar 2019 10:36

​A viver o seu terceiro mandato enquanto deputada da nação, Joana Rosa é uma das mulheres veteranas da política nacional, tendo sido a primeira mulher a candidatar-se à presidência de uma câmara municipal. Da sua entrada na política activa, em 1990, aos dias de hoje viu acontecer transformações que conduziram a um crescente número de mulheres na política. A deputada da ilha do Maio, que enfrentou duras críticas no início do seu percurso, acredita que o seu exemplo está a inspirar jovens a seguir a carreira política.

É uma das 17 mulheres que representam, juntamente com 55 homens, o poder legislativo de Cabo Verde. Do seu gabinete de deputada da nação, no edifício da Assembleia Nacional, Joana Rosa relembra com serenidade os seus primeiros, e algo conturbados, anos na política activa.

Primeira mulher no país a candidatar-se à liderança de uma Câmara Municipal, em 1995, e ainda que não tenha sido eleita, teve que aprender a lidar com comentários machistas mas nem por isso vindos exclusivamente de homens.

“Tudo o que sou hoje tem também a ver com os momentos difíceis que passei, já que na altura havia muita crítica. Pessoas que diziam “mas, ela em vez de estar em casa a cuidar do marido e dos filhos está em reuniões até altas horas. Ou seja, que o papel da mulher era estar em casa a cuidar da família e não na política. Eu sempre opus-me a essa ideia”.

Ainda jovem, ainda na ilha do Maio, Joana Rosa já fugia ao caminho mais fácil e recusava qualquer associação ao partido no poder. Nem mesmo à Organização das Mulheres de Cabo Verde quis pertencer.

“Eu era rebelde. Mesmo antes de 90, nunca cheguei a militar no partido de então [PAICV] porque, com a minha rebeldia, opunha-me a certas práticas”, diz.

Foi depois de ter vindo viver na ilha de Santiago, na cidade da Praia, que se aproximou espontaneamente do então recém-fundado Movimento para a Democracia. E é com entusiasmo que recorda os primeiros tempos de acções no terreno, mesmo nem tudo sendo fácil.

“Fui fazendo o meu percurso. Foi um pouco duro, porque por mais que se falasse da emancipação da mulher na política, era diferente. Era violento”.

Em 1995 o partido escolhe-a para concorrer às eleições autárquicas na ilha do Maio, como cabeça de lista. Seria a primeira vez que uma mulher estaria em tal posição, concorrendo à presidência de uma Câmara Municipal. Algo ainda tabu na altura.

“Recebi o convite através de uma chamada, à noite, do coordenador do partido para as autárquicas a dizer-me que a Comissão Política tinha indigitado o meu nome para a Câmara Municipal do Maio. Na altura eu até tinha outro projecto – tinha planos de ir estudar fora – mas aceitei, porque queria dar o meu contributo. E fui participar nas eleições. Foi muito interessante”.

Isso não obstante a dureza do embate, onde teve que lidar com criticas directas mas também ataques anónimos em forma de panfletos e até situações caricatas. Como grupos de crianças “instruídas” a porem-se nas esquinas a gritar “abaixo saia!”, conta.

Mas dessa época ficou-lhe sobretudo o apoio dos dirigentes do seu partido.

Número dois da lista de deputados para a Ilha do Maio durante alguns anos – a seguir a Adalberto Silva – foi trilhando o seu percurso dentro do MpD, passando a integrar a Direcção Nacional e, mais tarde, integrando a Comissão Politica. Em 2005 passou a cabeça de lista para o Maio e foi eleita, estando agora no seu terceiro mandato.

“Até 91 não havia uma única mulher delegada do Governo, não havia mulheres ministras, e mesmo na administração pública os dirigentes eram todos homens. Falava-se muito na participação das mulheres, mesmo durante a luta de libertação nacional, mas depois não se via. Não era traduzido em representação de mulheres na vida politica”, aponta a parlamentar que recorda com alguma emoção o pioneirismo de Isaura Gomes, a primeira e durante alguns anos única deputada no parlamento cabo-verdiano.

“Por acaso inspirei-me muito nela. Considero-a uma heroína, porque ela soube combater toda a perversidade e estigma enquanto mulher e ser eleita presidente Câmara Municipal de São Vicente. Teve um percurso brilhante até que acabou por deparar-se com a situação com que ainda hoje se depara. Se ela tivesse sido homem, acredito que a sua situação tivesse sido diferente. Acho que as pessoas aproveitaram-se, por ser mulher, para a tentar fragilizar. Considero-a uma heroína porque fazer política em Cabo Verde não é fácil, ainda menos sendo mulher. A mulher que faz politica em Cabo Verde é quase que considerada “vadia”, alguém que não tem responsabilidade”, lamenta a jurista.

Admite, no entanto, que hoje já não é tanto assim. As primeiras a “dar o rosto” na arena política terão enfrentando dificuldades e barreiras que hoje, diz, já quase não se põem porque “a mentalidade é outra”. O machismo e discriminação “terrível” de outrora, vindos também de mulheres, são hoje bem menores.

Hoje tudo é diferente. Já tivemos mulheres presidentes de câmara, mulheres no governo enquanto ministras… E a mulher hoje tem feito um percurso diferente. A condição económica da mulher, a autonomia financeira, dá-lhe poder de decidir e de entrar para a política sem muitos condicionalismos”.

Contudo, Joana Rosa acredita que o fundamental depende da personalidade da pessoa e daquilo que ela quiser.

“Há que ter determinação”, resume.

Cresceu na ilha do Maio. Como via, dali, a vida política do país?

Fui sempre uma jovem rebelde. Mesmo antes de 90, nunca cheguei a militar no partido de então [PAICV] porque, com a minha rebeldia, opunha-me a certas práticas. Na altura o meu então marido, ainda muito jovem, era delegado do Governo no Maio. Havia muita movimentação da OMCV [Organização da Mulheres de Cabo Verde, então vinculada ao PAICV] mas eu nunca participei porque opunha-me a certas práticas. Havia sempre muitos comentários sobre festas da OMCV mas, eu nunca participei e esquivava-me das actividades porque não me agradava como as coisas se passavam. Mesmo a nível daquilo que era a administração do país na altura, de como aquilo era controlado pelo partido…E na verdade quem governava eram os primeiros secretários do partido. Sempre gostei da política. Prestava bastante atenção ao que acontecia e fazia as minhas críticas em relação àquilo que era o sistema da altura. Em 85 vim viver para Praia e em 90 comecei a militar no MpD. Mas ainda antes de começar a militar já participava nas acções de rua, nas actividades que se faziam, comícios no cinema da Praia, arruadas nos bairros... Disponibilizei-me desde sempre.

Como “entrou” para a política activa? Quem a levou para o MpD?

Eu já frequentava a sede, que ficava na rua Madragoa se não estou em erro. Havia uma movimentação de pessoas à volta do novo partido. Foi uma coisa espontânea. Muitas pessoas se aproximaram espontaneamente do novo partido. Depois, passei a estar mais vinculada e participei das campanhas eleitorais. Logo nas primeiras eleições eu fiz campanha aqui na Praia. Fui ao Maio, mas na altura não era candidata. Na Praia, eu fazia parte do núcleo de Terra Branca que era onde morava. Fazíamos as nossas reuniões e acções de terreno. Eu tinha uma situação incaracterística porque o meu marido era do PAICV. Em casa já tínhamos decidido que não íamos deixar a política misturar-se com a nossa vida pessoal. Não falávamos de política. Foi um acordo que fizemos. Mas, claro, era mal visto pelos outros. Sobretudo pelo partido dele. Havia críticas. Era incaracterístico, um militante do partido com uma mulher na política activa no lado oposto. Então foi um pouco complicado. Havia intromissões na nossa vida íntima. Lembro-me de uma célebre reunião convocada para se tratar desse “fenómeno”. Ele depois disse-me que tinha sido confrontado com a situação e que lhe disseram que ele teria que fazer escolhas. Da minha parte, nunca recebi pressões do meu partido quanto a este assunto. Fiz o meu percurso e ninguém no MpD ousou alguma vez intrometer-se na minha vida privada.

E hoje, conciliar a carreira política com a gestão da vida familiar é um desafio?

Não há conflito. Tenho dois filhos e acho que eles sempre souberam conviver bem com a situação da mãe, o estar ausente por vezes devido a compromissos. Tenho sabido fazer uma boa gestão da minha vida familiar; tenho férias anuais, fins-de-semana em família. Claro que conto com a compreensão do meu marido e dos meus filhos quando me ausento para visitas ao círculo, ou missões ao estrangeiro.

“Mulheres não se apoiam”, diz-se. Mito ou verdade? Como é a relação entre as mulheres na política?

Acho que há um fundo de verdade. Não se aplica na generalidade mas, há uma certa verdade nisso. E acho que tem a ver com um pouco de ciúmes, sobretudo em sociedades pequenas, como a nossa. Muitas vezes é a própria mulher que não aceita o destaque da outra. Mas há de parte a parte. Entre mulheres, entre homens também. No parlamento tenho tido boas relações com as colegas e também dentro do partido, na Direcção Nacional. Não tenho queixas. Fazemos o nosso percurso de forma natural. Não há que pisar o outro para se ascender. Isso não faz a minha personalidade. Faço política porque gosto e dou o quanto posso. Devo dar e não espero retorno. Faço a minha militância de forma desinteressada e assim não tenho conflitos com a minha consciência. E tenho autonomia de pensamento: digo aquilo que penso. Isso é uma virtude minha, de não levar nada para casa. Expressas as minhas opiniões de forma livre. Sou conhecida por ser uma pessoa muito frontal. Às vezes custa-me caro, porque criam-se inimizades.

Isso afectou, de alguma forma, a sua ascensão dentro do partido?

Não! Eu faço aquilo que gosto, digo aquilo que penso, não espero nada de ninguém. Vou às eleições e quem vota em mim é o povo. Sinto-me uma mulher feliz porque tenho recebido aceitação da população em relação à minha candidatura. O resto, depende de vários factores, factores regionais, há muita coisa…

Sente que alguma vez, pelo facto de ser mulher, foi preterida no partido ou no parlamento?

Não. Assim, de forma directa não. Mas em determinada altura senti alguma coisa… Não de forma directa mas, numa determinada situação, através de um comentário de um colega… Até me irritei, porque vi que a minha condição de mulher estava a ser posta como factor negativo para uma determinada posição. Então disse claramente na Comissão Política do partido que não tenho medo de enfrentar “tubarões” e que faço política porque gosto. Não espero absolutamente nada do meu partido. Faço política de uma forma livre e fico feliz por isso. Por não depender de favores, de padrinhos. Isso dá-me alento e sinto-me mais á vontade.

Margaret Tatcher disse, em certa ocasião, que a missão do político não é agradar a todo o mundo.

É verdade. Não se consegue agradar a toda gente. Ainda mais na política há vários interesses. Querendo ou não, há sempre focos de interesse e isso às vezes pesa de certa forma. Mas estar-se na política é já uma condição propensa a conflitos. Acho que o que se tem feito agora, o empoderamento da mulher, essa luta para que haja mais mulheres nas listas, que as mulheres deixem de ter medo de estar na política… Bem, há uma questão que contribui para amedrontar, contribui para a menor presença de mulheres na política e que tem a ver com a devassa da vida privada. Há ainda essa tendência no meio pequeno que é o nosso e deve ser combatida.

É então favorável à lei da paridade. Acredita que irá contribuir definitiva­mente para que haja mais mulheres na política?

Acredito que sim. Devo confessar que antes – quando se falava em lei de cotas – eu era contra. Dizia sempre: “não quero cotas, quero sim que as minhas capacidades sejam reconhecidas”. Mas, hoje demos um passo interessante, não impondo quotas mas pensando em paridade, na tal igualdade que a Constituição da República garante a homens e mulheres. A Lei da Paridade trará certamente mais mulheres para as listas, mais mulheres para a política, no parlamento e em cargos electivos. A lei é extensiva aos cargos na administração pública também para garantir uma presença equitativa de mulheres nos cargos de direcção. E as mulheres têm capacidade para lá estar. Só não estão [mais] porque há sempre o factor homem. O homem está sempre à frente, porque está em maior número, fazem o lobby e este lobby funciona. Então a mulher fica sempre num segundo plano. Acredito então que vamos ter mais mulheres no parlamento, na administração e já temos sinais, vendo como as mulheres já são a maioria nas universidades e mesmo no ensino secundário.

Acha que, para além de aprovar a lei, será necessário um trabalho de sensibilização junto das mulheres para que se aproximem mais da política?

Este estímulo já existe e [no MpD] começou com a criação das Mulheres Democratas e tem trazido benefícios. Na última convenção do partido estivemos quase um dia a debater esta questão da paridade, defendendo as listas zebras para ter mais mulheres nas listas. E tivemos ganhos. A nível da Direcção Nacional temos neste momento quase o mesmo número de mulheres e homens. Na Comissão Politica já não… São apenas quatro mulheres para cerca de 20 homens. Portanto, aqui estamos ainda longe do desejável. Mas é normal porque temos que subir degrau a degrau, até chegar ”lá”. Há que haver mais vontade política também. Porque normalmente quem lidera as direcções são os homens. Os homens estão bem mais presentes na política activa e mais visíveis. A mulher por vezes fica um pouco retraída, não aparece. É só ver na altura de preparação das listas: quase que se tem que andar com uma lupa à procura de mulheres para fazer parte das listas. Contudo, a situação tende a melhorar e hoje já há mulheres que se manifestam interessadas. E isso será um ganho. Estou em crer que nas próximas eleições teremos mais mulheres, porque já há interesse. As mulheres já não querem ficar atrás, a preparar tudo, a fazer campanha, estando presentes em tudo o que sejam acções partidárias para quando chegar às listas elas estarem sempre atrás.

Como dirigente e tendo em conta as eleições que se aproximam, tem essa atenção de já ir perscrutando, fazer esse trabalho de “olheiro” como no futebol?

Acho que todos nós temos essa responsabilidade na Comissão Politica, de trazer mais mulheres, de cuidar para termos paridade. Normalmente, tratando-se de uma mulher tem que comprovar que é competente. O homem já “é” competente á partida. Isso tem que acabar. Temos que fazer jus à igualdade constitucional. Nem precisaríamos de ter leis para isso. Só estamos a pensar em leis porque na verdade, se for de livre vontade, vamos ter é que ficar mais quatro ou cinco décadas á procura de igualdade. Essa paridade não é só para beneficiar as mulheres, também visa proteger o homem. Não se trata aqui de supremacia exagerada de um sexo sobre o outro. Ao fim ao cabo todos fazemos parte desta sociedade, todos nós queremos dar o nosso contributo. E somos todos capazes.

Representatividade é importante. A deputada representa uma ilha que, não obstante o seu grande potencial, continua a ser encarada como “periférica”. Como vê o interesse das jovens maienses pela política?

Penso que o factor Joana Rosa tem contribuído e muito para que na sociedade maiense haja hoje uma certa paridade. Por exemplo, a nível dos vereadores na Câmara Municipal do Maio temos paridade; Na deputação também temos, e eu fui cabeça de lista; Nos serviços, nas delegações da ilha temos mais mulheres do que homens. Acho que temos muitas meninas hoje interessadas em estar na política. Recebo mensagens de elogios de pessoas que estão interessadas e me dizem que querem seguir a via política como a Joana Rosa. E acho que isso tem contribuído para a sociedade maiense. Porque, de certa forma viram na Joana Rosa e mesmo em outras, a nível nacional, que tenham aparecido mulheres muito capazes e que estejam a fazer percurso a vários níveis e que têm servido de espelho. Temos que estar sempre disponíveis e deixar de estar escondidas e lutar por aquilo que queremos. A nossa democracia é jovem e, ao longo dos tempos, vamos ganhando maturidade e as mulheres vão ganhando consciência de que estando em lugares de decisão estarão a dar o melhor para o país, mostrando a sua capacidade. A sociedade de hoje já é um pouco diferente, lutas foram ganhas. Mas, estamos ainda muito aquém do desejado. Temos que fazer mais. Não dependerá só dos homens. Nós, as mulheres, teremos que fazer um pouco mais. Muitas vezes ficamos amarradas ao circunstancialismo de estarmos num meio quase que reservado ao homem. Então vamos entrando, aos poucos, vamos mostrando a nossa capacidade, determinação e o nosso querer fazer. E isto vai servir para que venhamos a ter, num futuro próximo, uma sociedade mais justa do ponto de vista da igualdade. Estamos, afinal, não a dar benesses às mulheres mas a garantir um direito constitucional.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 904 de 27 de Março de 2019.

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Autoria:Chissana Magalhães,30 mar 2019 10:36

Editado porJorge Montezinho  em  1 abr 2019 7:04

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