Dom Ildo Fortes, Bispo da Diocese do Mindelo: É urgente cuidar e proteger a família

PorAntónio Monteiro,21 abr 2019 9:34

​Na semana da celebração da Páscoa o Bispo da Diocese do Mindelo em entrevista ao Expresso das Ilhas, teceu considerações sobre a mais importante festa cristã e manifesta a sua preocupação com a crise que atravessa a família cabo-verdiana. “Temos lares que dificilmente se poderá chamar de lar, com dores e sofrimentos morais e psíquicos terríveis. É caso para perguntar que valor ocupa a vida e a integridade da pessoa em determinados ambientes”, questiona Dom Ildo Fortes. Para o prelado a resposta está na fé cristã que tem de ir para além de uma crença ou de um assunto individual, para se tornar compromisso e cumplicidade na família, na relação com os amigos, no trabalho, na política e em todas as relações sociais.

A Páscoa é a mais importante quadra para os cristãos do mundo inteiro. Qual a sua mensagem para os católicos cabo-verdianos?

A Páscoa é uma mensagem e um acontecimento de amor. O acontecimento relevante que fazemos memória e celebramos com fé, é a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo. Tudo o que moveu o Filho de Deus a caminhar livremente para Jerusalém e aí dar a vida por todos, foi precisamente o Seu amor incondicional pela humanidade. O escândalo maior que os primeiros cristãos deram ao mundo religioso judeu e ao mundo cultural grego da época foi olhar e abraçar a Cruz, como fonte de vida e libertação. Em tempo algum as pessoas querem pôr em destaque ou têm apreço por uma cruz; sobretudo, onde impera a ânsia doentia do poder e da grandeza, a busca desenfreada do prestígio e o egocentrismo. À cultura da violência e da morte, Jesus contrapõe com a cultura do serviço, da esperança, da vida e do amor. Com Jesus, a pessoa humana passa a estar no centro. Os que habitavam as periferias existências são colocados no centro da atenção. Páscoa é vida nova, tudo aqui que a nossa sociedade tem falta e necessidade; Assistimos a injustiças de todo o género, violências, desorientação e tristezas de sobejo. Quem celebra a Páscoa de verdade, quer compromete-se com a emergência de uma nova humanidade, quer caminhar por sendas de paz e comunhão e semeia esperança credível que faz sonhar com um futuro risonho. O acontecimento mais desconcertante da história da humanidade, foi este de Deus que entra a na história: fez-se homem e homem na mais extrema humildade, mostrou que o caminho da felicidade não está em servir-se dos outros, mas em servir os outros. Dar a vida é o Seu lema de vida! A mensagem central da Páscoa é que Cristo está vivo: Ressuscitou dos mortos pelo poder de Deus e garante uma vida plena, maior, com sentido a todos aqueles que o acolhem e o seguem de perto.

Família, juventude e educação constituem o centro das atenções da sua Carta Pastoral para o ano 2018-19. Porquê o foco nestes três temas e sobretudo na família?

O foco na família é tão evidente; porque, se há alguma instituição que nos nossos dias temos a obrigação e é urgente cuidar e proteger, é precisamente a família. Isso é para todos os tempos e gerações, mas com muito mais razão hoje em que a família está demasiada fragilizada. Os membros da família humana cabo-verdiana experimentam dificuldades tremendas, a vários níveis: económica e financeira, a nível relacional, na capacidade de educar as suas crianças e os jovens; temos assistido a situações de violências preocupantes, nunca antes visto. Temos lares que dificilmente se poderá chamar de lar, com dores e sofrimentos morais e psíquicos terríveis. É caso para perguntar que valor ocupa a vida e a integridade da pessoa em determinados ambientes. O respeito ou melhor, a ausência dele é coisa preocupante! Uma sociedade sem educação é uma sociedade sem futuro. Há dias o neurocientista António Damásio advertia que é necessário “educar massivamente as pessoas para que aceitem os outros”, porque “se não houver educação massiva, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”.Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia.Eu temo o rumo que a lacuna na educação e a condução das nossas cidades têm tomado. E infelizmente, muitas organizações, grupos e estruturas de poder, em vez que promoverem o bem comum da família, o seu empoderamento, a sua harmonia, a boa e sã ocupação dos tempos livres dos jovens, são promotores de iniciativas que directa e inderectamente estão fragilizando, destruindo e dispersando a família. A família é o tesouro da humanidade. Se quisermos uma humanidade renovada onde reine a justiça, a fraternidade e a paz – (e isso é que é progresso) – deveríamos todos cuidar da família. Os três temas surgem também nesta sequência: a Igreja teve recentemente três Sínodos dos Bispos. [Encontro que reúne bispos do mundo inteiro, bem como peritos em determinadas áreas e convidados, para se debruçar sobre um assunto em concreto e encontrar luzes e caminhos]. Estes Sínodos, dois foram sobre a Família (um Ordinário e outro Extraordinário) e outro, bem recente, em finais de 2018, foi sobre a Juventude. Por isso, também ao ritmo do pulsar da Igreja Universal, quisemos contemplar esses temas na nossa acção pastoral. Aliás, note-se que estão profundamente ligados: família, juventude e educação. Juventude e Educação porque a nossa terra é uma terra com um índice de juventude muito elevado, o que é uma bênção e uma riqueza muito grande para um povo, mas constitui precisamente um desafio enorme: como ocupar esta gente, que esperança e oportunidades lhes oferecer? Nós estamos cientes que há pensar seriamente naquilo que estamos a oferecer aos nossos jovens. Se não estamos a iludi-los com falsas e fáceis promessas de felicidade, tão passageiras quanto efémeras. Eles são sem dúvida a esperança e protagonistas da nossa história, mas há que ajudá-los a serem sólidos e indicá-los os caminhos que fazem deles mais homens e mulheres. Enfrentar as dificuldades, responsabilidades e contrariedades da vida é coisa para as quais não estamos a formar a nossa juventude. Ajudar a ter presente os outros e a estar numa atitude construtora e de serviço, também é coisa para a qual não se dá muita atenção. Recentemente afirmava o Papa aos jovens que esta vida tem significado no serviço a Deus e aos irmãos. Há que pôr em marcha uma Revolução do serviço porque não existe vocação ao egoísmo. Viver a vida, dando uma resposta afirmativa aos outros é o primeiro passo para ser feliz!

A resposta da Igreja Católica à questão da Família leva em conta que o conceito de família tradicional mudou?

A família é a instituição mais antiga que temos. Felizmente conhecemos muitas famílias em que o conceito não mudou em nada, para bem delas e da sociedade. Ou seja, sabem colocar o amor, o diálogo, a fidelidade dos esposos em primeiro lugar, como um valor a preservar. Conheço muitos pais que vivem e se dedicam generosamente aos seus filhos, são pais presentes, atenciosos, que cultivam a terapia da ternura, que se interessam pelos seus, ao nível dos estudos, da saúde, da religião, do desporto… que sabem e arranjam tempo para brincarem e passearem com os seus. Pais que educam para o civismo, para a justiça, a responsabilidade, o cuidado do ambiente em que vivemos…. Tudo isso é tradicional e bom. E como resultado, são as pessoas mais equilibradas e felizes que conheço e as que maior bem fazem aos outros e a este pequeno país.O Concílio Vaticano II ocupou-se, na Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade do matrimónio e da família. Definiu o matrimónio como comunidade de vida e amor, colocando o amor no centro da família.Outras, infelizmente há que ou descuidaram desses valores ou não os tiveram na educação, por isso andam muito à deriva, estão à merce de todos os perigos e ameaças que o mundo moderno pode trazer. Aquilo que não se recebe no berço e no calor familiar, dificilmente conseguimos assimilar depois.Como já dissera na Carta Pastoral: escasseiam as famílias que levem a sério a educação como missão, negligenciando princípios fundamentais que assentam suas raízes no Evangelho de Jesus Cristo e na sã tradição secular que plasmou o tecido humano da identidade cabo-verdiana. «Na raiz destes fenómenos negativos está muitas vezes uma corrupção da ideia e da experiência de liberdade concebida não como capacidade de realizar a verdade do projecto de Deus sobre o matrimónio e a família, mas como força autónoma de afirmação, não raramente contra os outros, para o próprio bem-estar egoístico (FC 6). «O lugar que o amor deveria ocupar foi arrebatado por vários tipos de prazeres (desde o sexo às drogas) e mais ainda pelo amor a si próprio – o narcisismo que, com a difusão do individualismo moderno e pós-moderno, se transformou, não num simples problema de indivíduos, mas numa das características mais típicas da nossa cultura».O que é novo para Igreja e para a sua acção pastoral são os desafios do tempo presente e em mudança permanente; nem sempre é fácil ler e discernir os sinais que estão à nossa volta e dar-lhes uma resposta adequada. Todavia, frente a isso, a doutrina da Igreja não é nem pode ser nova, no sentido de ser outra. A doutrina da Igreja mergulha as suas raízes no Evangelho de Jesus Cristo, que é sempre uma proposta nova de esperança e vida. A forma de a dizer é que pode ser nova, não o seu conteúdo!Diante das situações novas que surgem sobre o modo de conceber e viver em família, a posição da Igreja é esta: acompanhar, discernir e integrar a fragilidade. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objecto duma misericórdia «imerecida, incondicional e gratuita».

Escreveu na sua Carta Pastoral que “entre as ameaças graves que pairam sobre a família, está a ideologia de género”. Qual é o mal que esta ideologia poderá trazer à nossa sociedade?

As ameaças contra a família são mais que muitas: na Carta Pastoral fazemos referência a algumas: uma bem grave e preocupante é o uso abusivo e excessivo do álcool, por toda a parte (muitas vezes exponenciado por actividades que fomentam o consumo do mesmo) e com consequências gravíssimas para as famílias e para a sociedade (ao nível financeiro, desempenho profissional, relacionamento harmonioso e familiar, etc.); Também tem sido consumido e de modo descarado outros estupefacientes e por parte de camadas tão jovens, nas imediações das nossas nas escolas, nas praças, nas festas, etc. Deveríamos nos envergonhar de toda estas situações que para além de serem um perigo enorme para os próprios e para um futuro risonho, causa muitos constrangimentos nas famílias e na sociedade em geral.A Ideologia de género penso que muitos nem sabem do que se trata. A Posição da Igreja sobre ela é clara e não é novidade. Constitui um perigo para a família porque por ela vamos entrando em todos os outros relativismos e excessos que cada um ache que deva pensar ou fazer. Essa ideologia está confirmada por entendidos em ciências que não tem base nem fundamentos biológicos ou científicos. Aprovar tal ideologia e outras que lhe está por trás, para além de ser uma oposição clara aos valores consagrados pela humanidade em geral e à ordem da nossa natureza, é abrir caminho para um desnorte toral em matéria de sexualidade e valores da família. Mas nós já escrevemos isto, que passo a citar: «Papa Francisco chamou de demoníaco e diz que é maldade ensinar a ideologia de género às crianças. Já Bento XVI tinha dito que ensinar tais doutrinas é um pecado contra Deus Criador; pois, Deus criou o Homem: homem e mulher os criou (Gen 1, 28); Ignorar isto e ensinar o contrário é ir contra Deus.Na Exortação Apostólica do Papa Francisco Amoris Laetitia (nº285) se chama a atenção que: «a educação sexual deveria incluir também o respeito e a valorização da diferença, que mostra a cada um a possibilidade de superar o confinamento nos próprios limites para se abrir à aceitação do outro. Para além de compreensíveis dificuldades que cada um possa viver, é preciso ajudar a aceitar o seu corpo como foi criado, porque “uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. (...) Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus Criador, e enriquecer-se mutuamente”. Só perdendo o medo à diferença é que uma pessoa pode chegar a libertar-se da imanência do próprio ser e do êxtase por si mesmo. A educação sexual deve ajudar a aceitar o próprio corpo, de modo que a pessoa não pretenda “cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela”».

Como vê a introdução da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica no currículo escolar defendida pela Associação dos Professores Católicos de Cabo Verde?

Disciplina que encontramos em muitos países desenvolvidos da Europa e do mundo e em que a educação para os valores morais é uma prioridade. Esta é uma possibilidade que está contemplada no Acordo entre o Estado de Cabo Verde e a Santa Sé e que a Igreja em Cabo Verde está muito empenhada em colaborar porque está convicta da grande mais-valia que isto pode trazer à sociedade cabo-verdiana, aos jovens e às famílias.Alguns, talvez por ignorância ou desconhecimento quando ouvem falar das aulas de EMRC, pensam que a Igreja está a quer ir dar catequese ou impor a sua doutrina nas escolas. Não é nossa intenção fazer proselitismo em escolas públicas. Nada disso! Em todos os estados laicos (atenção laicos, não ateus) como o nosso, essa questão é tão pacífica. Até porque se trata de uma disciplina opcional, como não poderia deixar de ser. E a maioria dos pais que têm os seus filhos nas escolas, sendo cristãos e católicos, têm todo o direito de poder optar por oferecer uma formação complementar aos seus filhos.«Mas parece-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é, simultaneamente, «dever gravíssimo» e «direito primário» dos pais. Não é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender tirar-lhes. O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária, acompanhando a função não-delegável dos pais, que têm direito de poder escolher livremente o tipo de educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos seus filhos, de acordo com as suas convicções. A escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento. Este é um princípio básico: «qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo».Cabo Verde é o que é graças à sua história marcadamente cristã. A sua matriz antropológica e social é óbvia e claramente assente em valores cristãos. Os seus valores e o modo de ser e agir na família, na convivência social, nas organizações, na política, são o que são graças a esta história. Se quisermos consolidar a nossa identidade, da qual penso que nos orgulhamos muito, há que fazer tudo para conservar este bem. E a educação moral e religiosa pode ser um contributo valiosíssimos para ajudar a surgir uma nova humanidade.

Como é vivida a fé na sociedade cabo-verdiana nos dias que correm?

De maneira muito breve, diria que a fé na nossa sociedade corre o risco de se tornar um adorno ou uma prática ritualista para muitos. O fenómeno da fé é algo muito complexo e pessoal que não nos podemos precipitar a tecer considerações de qualquer maneira. Há que respeitar muito o que cada um vive nesta matéria porque ela é sagrada.Falando concretamente dos nossos cristãos, precisamos de uma fé que passe mais dos ritos e das piedades para a vida e para a prática; para o compromisso social. A fé cristã tem de ir para além de uma crença ou de um assunto individual. Ela é compromisso e cumplicidade na família, na relação com os amigos, no trabalho, na política, no comércio, enfim, em tudo onde decorre a nossa vida.Jesus não foi apenas um pregador da mensagem do Reino: Ele criou e viveu laços muitos especial com os seus, com base no amor e na amizade verdadeira, mas ocupou muito do seu tempo a estar com os pobres, com os marginais, com os doentes. A sua opção fundamental foi pelos excluídos da sociedade e nós temos de o imitar que queremos dar credibilidade à nossa fé. Os cristãos devem ser pessoas do seu tempo, estar no mundo como bons cidadãos e irmãos, mas sem se confundirem com o mundo. O Mundo é para eles o campo de missão. Específico de um cristão é transformar o mundo com a sua presença. Santificar-se no mundo e santificar o próprio mundo em que vivem! Um cristão é para o mundo aquilo que a alma é no corpo: pronto a dar ânimo e alegria de viver! Porque eles, tendo-se encontrado com Jesus Cristo, têm uma razão de esperança que mais ninguém tem.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 907 de 17 de Abril de 2019.

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Autoria:António Monteiro,21 abr 2019 9:34

Editado porDulcina Mendes  em  21 abr 2019 16:36

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