No próximo dia 8 de Setembro é assinalado o Dia Internacional da Literacia e em Cabo Verde não existe nenhum estudo sobre o tema. Entretanto, para falar da literacia é preciso saber diferenciar o analfabeto, aquele que não é capaz de ler nem escrever, e o analfabeto funcional, aquele que é capaz de ler e escrever, mas não o suficiente para atender às exigências da vida cotidiana. Neste segundo o assunto torna-se sério quando há exemplos de estudantes universitários.
Maria (nome fictício) estuda o 4º ano de Relações Públicas na Universidade de Cabo Verde e diz que tem o hábito de ler notícias sobre famosos e, só de vez em quando, lê notícias nacionais ou um livro. Maria explica que isso acontece por ter dificuldades em interpretar o que lê.
“Quando utilizam expressões difíceis acabo sempre por interpretar mal o texto inteiro. Eu levo bastante tempo para ler algo porque tenho, quase sempre, que reler as frases até compreender o que foi dito”, diz.
Estudante de Publicidade na Universidade Jean Piaget, Carmem (nome fictício) afirma que quase nunca lê. A estudante diz que não lê notícias, mas, ao menos uma vez por ano, lê um romance sem dificuldades de interpretação.
“Mas, os apontamentos da universidade, ou até mesmo as leituras obrigatórias de cada disciplina temos bastante dificuldade em ler, interpretar ou até mesmo em expressá-las”, completa, afirmando que se as aulas fossem dadas em crioulo teria muito mais facilidade de compreensão.
Esta fonte queixa-se ainda do método usado pelos professores. “Muitas vezes limitam-se a ler a matéria sem se preocuparem com a explicação”, lamenta.
O que diz uma especialista
Elvira Reis, linguista e docente na Universidade de Cabo Verde, explica que aprender a ler e a escrever exige o domínio da língua que se está a aprender. Muitas vezes, prossegue, porque as crianças não entendem a gramática da língua, ocorre, conforme conta, uma alfabetização que não satisfaz as necessidades comunicativas.
Necessidades comunicativas, segundo Elvira, são necessidades de se expressar em qualquer situação, de compreender aquilo que as outras pessoas dizem ou de ler um jornal, um artigo, ou de transmitir uma mensagem na língua alvo.
A linguista elucida que alfabetizar significa explicitar e que é a representação pictórica de uma língua que a pessoa tem no seu repertório linguístico e, que por isso, o seu conceito não se aplica ao contexto cabo-verdiano.
“Cabo Verde é um dos países de África onde a taxa de alfabetização é alta porque nós estamos a contar com pessoas que passaram pela escola, têm um certificado, mas essas pessoas continuam não tendo competência de compreensão nem competência de expressão suficiente na língua portuguesa”, acrescenta.
Elvira Reis diz que a competência da compreensão é muito” pouco desenvolvida, essencialmente na adolescência. Entretanto, diz que a universidade onde lecciona recebe alunos que têm bom domínio da língua portuguesa e outros que têm um nível de proficiência linguística muito baixo. A linguista faz saber ainda que a nível nacional há adultos formados que têm graves problemas de expressão na Língua Portuguesa.
“A competência da compreensão é muito pouco desenvolvida porque os adolescentes desenvolvem uma espécie de aversão à língua portuguesa, não querem falar português, não têm muito hábito da leitura, estão mais ligados a outras coisas que acabam por afirmar a sua identidade cultural”, garante.
Possíveis causas
Para a linguista Elvira Reis, o problema do analfabetismo funcional passa pela desvalorização da língua materna, Segundo defende, deveria existir um sistema de ensino coerente com a língua alvo, de modo que, a língua materna não “engula” a língua que se está a aprender.
“E em toda a parte do mundo aprende-se outras línguas a partir da sua língua materna. Porque nós temos uma coisa que é chamada de consciência metalinguística que é desenvolvida na nossa língua materna. Desde o nosso desenvolvimento interno trénico nós começamos a construir a plataforma linguística no nosso cérebro que é muito forte, tem um poder muito grande no nosso repertório linguístico”, explica.
Elvira Reis opina que a expressão e a interacção oral é a mais fraca e menos trabalhada no contexto de sala de aula. Para a linguista, os professores deviam ensinar o português e não exigir.
“Os professores ao invés de ensinarem a falar começam por exigir. A criança não sabe falar o português, mas não pode falar crioulo, então nós temos alunos que chegam à universidade com um histórico de terem entrado mudo e saído calado do ensino secundário. Chegam a dizer “eu não participava, eu não falava”, complementa.
A leitura, a exposição através da comunicação social, da matéria em língua portuguesa, nas palavras de Elvira Reis, aumenta a compreensão num país onde o português não é verdadeiramente, a língua do quotidiano.
Conforme esta especialista, ignorar a língua mãe pode justificar o facto de os alunos cada vez falam menos ou dominam menos o português no contexto da universidade ou do ensino secundário. Elvira Reis diz ainda que o crioulo pode ajudar a encontrar os caminhos para a aprendizagem de outras línguas.
“Nós falamos e expressamos na nossa língua materna sem nenhum esforço, assim como respiramos. E se a língua materna não é importante para aprender línguas eu não entendo porquê que os países do mundo insistem em fazer todo o processo de ensino e aprendizagem na língua que as crianças dominam”, questiona Elvira afirmando que embora o crioulo seja visto como a causa de as crianças não aprenderem o português, o país tem uma população adulta que “lê e não compreende, ouve e não compreende”, apesar de ser um país de língua portuguesa.
Continuando a sua explicação Elvira afirma que as línguas aprendem-se através de línguas, e que por isso os professores deviam aproveitar o facto de os alunos se expressarem na língua materna.
“A escola não funciona em língua portuguesa, a aula da língua portuguesa é ministrada em português, mas os alunos contam as historinhas em língua materna, fazem as queixinhas em língua materna. As únicas coisas que são intrínsecas das crianças são exteriorizadas em língua materna”, explana.
As vulnerabilidades de um analfabeto funcional
A linguista Reis explica que um analfabeto funcional tem graves problemas de realização pessoal, em termos de circulação, e que é uma pessoa limitada em termos de criatividade, de expressão e em termos de comunicação.
“Eu penso que alguém que não consiga expressar os seus pensamentos, desejos e sentimentos deve ser uma pessoa mais retraída, tem mais receios por exemplo, de viajar, de entrar em contacto com pessoas que não dominam a sua língua”, exemplifica.
O dia mundial da literacia foi criado pela UNESCO em Novembro de 1965 e celebrado pela primeira vez em 1966. As celebrações desta efeméride ocorrem anualmente em todo o mundo para lembrar a importância da literacia como uma questão de dignidade e direitos humanos, e para avançar na agenda de alfabetização rumo a uma sociedade mais letrada e sustentável.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 927 de 04 de Setembro de 2019.