Jovens e Democracia

PorPaulino Oliveira do Canto,5 jun 2020 7:51

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Em Cabo Verde, o protagonismo juvenil destacou-se sobremaneira ainda na luta contra o sistema colonial, com destaque para a mobilização de jovens estudantes africanos oriundos e que residiam nas antigas colónias europeias.

Nesta empreitada, valeu-se uma juventude organizada no espaço universitário, fazendo o aspeto identitário cabo-verdiano e africano, o símbolo maior de resistência, contestação e luta. O compromisso e a participação cidadã por parte da juventude cabo-verdiana através de diversos movimentos políticos e movimentos socioculturais foram intensas nos períodos coloniais e no período da transição democrática. Neste contexto, é de destacar a pujante força de uma juventude, que teve acesso ao ensino superior fora do país, e sua vontade de participar ativamente na vida política e nas instituições públicas, causando o descontentamento no interior do partido único como um dos fatores cruciais e que motivou a transição democrática cabo-verdiana, tal como nos testemunhou Cláudio Furtado, em 1997, na sua tese de doutoramento “Génese e (Re)produção da classe dirigente em Cabo Verde”.

Entretanto, passada a fase de restauração democrática, a dinâmica e transformação engendrada no seio da juventude cabo-verdiana vêm enfrentando uma ligeira desaceleração da sua importância e visibilidade; e parecem à procura de um novo papel dentro do novo arranjo político-social de que fazemos parte.

Antes de mais, não é fácil definir “jovens” em Cabo Verde, sobretudo para o conceito padrão de juventude para as pesquisas estatísticas, se considera “jovens” as faixas etárias de aproximadamente 15 a 24/25 anos. Se levarmos isso em conta podemos correr o risco de excluir uma boa parte das pessoas que se sentam verdadeiramente jovens. Portanto, a nossa reflexão estende-se a todos os que se consideram jovens e se representam nessa categoria, mas com uma atenção específica ao grupo etário que teria nascido já num regime verdadeiramente democrático, com oportunidades de vivência num contexto sociopolítico distinto.

Tentámos fazer, também, um breve recorte dessa realidade na intenção de percebermos algumas das limitações/desafios que existem no seio da juventude cabo-verdiana para a sua plena participação na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Limitações que nos interpelam como desafios a serem pensados e transformados, para que consigamos avançar na perspetiva de consolidar a nossa Democracia, entendida em três aspetos básicos, a partir da formulação Martha Harnecker: i) o substancial, cujo propósito fundamental é a procura de soluções para os problemas mais sentidos pela população cabo-verdiana - alimentação, segurança, habitação, trabalho, educação, entre outras conquistas que permitem avançar para uma sociedade com menos desigualdades sociais; o representativo, que se refere fundamentalmente ao regime político (representação política) e sublinha a liberdade dos cidadãos para eleger os governantes e nos direitos civis do cidadão; e o participativo, que torna a organização e a mobilização da juventude neste caso, os alicerces fundamentais para uma sociedade efetivamente democrática. Essas são os três aspetos que unidos e fortalecidos pela ação popular na construção da democracia que desejamos e necessitamos, podem orientar o processo democrático que permite abraçar as causas da juventude e integrar as suas vozes nas mais altas esferas de decisão.

Três dimensões que, em termos estatísticos, de forma muito resumida, podem recair sobre quatro principais indicadores do que podemos denominar de Índice do Desenvolvimento Juvenil: i) Educação/Formação; ii) Emprego / Renda; iii) Saúde e iv) Família.

Segundo as projeções demográficas do INE 2010/30, estima-se que Cabo Verde tem uma população de pouco mais de meio milhão de pessoas, aproximadamente 537 661 mil. O Censo 2010 aponta que 54,4% dos cabo-verdianos tem menos de 25 anos de idade e 70,4% tem menos de 35 anos.

A juventude é, no entanto, o grupo da população com registo de maior taxa de desemprego: 25,7% dos jovens de 15-24 anos; e 11,2% dos jovens com 25-34 anos estão desempregados (INE, 2019). Igualmente, são os mais expostos à pobreza e à exploração laboral, recorrendo frequentemente ao trabalho informal e precário para ganhar algum sustento familiar, particularmente jovens provenientes de famílias com menos recursos financeiros. É cada vez mais exigente a inserção dos jovens no mercado do trabalho.

Pese embora, o acesso à educação básica tenha aumentado de forma substancial (em 2017, a taxa de alfabetização dos jovens entre 15-24 anos era de 99% - INE, 2017), a educação voltada para uma formação humana, cidadã e comprometida com os valores fundamentais de uma cultura política e participativa na sociedade civil não se fizeram suficientes no contexto das mudanças sociais que vem acontecendo na sociedade cabo-verdiana.

Atualmente, os processos educativos formais constituem um grande desafio para o avanço da construção democrática. Os jovens são educados e formados por aspirações individuais, com vista ao sucesso pessoal no estudo e no emprego. Há em nossa subjetividade uma ideia forte de concorrência, e cada vez menos de socialização e partilha, por isso são necessários novos processos educativos que incentivem o coletivismo e a autonomia indispensáveis para que se construam novas subjetividades baseadas na justiça e na solidariedade e enraizado fortemente no compromisso ético para inaugurar uma sociedade mais comprometida com os princípios democráticos e de participação.

A mercantilização da educação formal também dificulta muito o envolvimento dos jovens na sua realidade de forma crítica e participativa. Precisamos de processos formativos em que os educandos são também educadores, para que tenhamos espaços onde os cidadãos se formem como sujeitos enraizados nas questões da sua cultura, da sua comunidade e da sua diversidade. Desafia-nos então, a urgência de darmos voz às manifestações engendradas no seio da comunidade cabo-verdiana, e garantirmos visibilidade e organização aos processos que nos singularizam enquanto povo enraizado no ethos cultural - a Morabeza Crioula.

Estes indicadores atingem de forma muito mais forte os jovens que são relegados das arenas participativas, especialmente os com maiores dificuldades do acesso a Educação / Formação, Emprego / Renda, a Saúde, e que vivem num ambiente familiar pouco propício para o autocrescimento. Não menos importante, ressaltar a dificuldade de mobilidades internas motivadas pela condição natural do arquipélago, a de descontinuidade geográfica, que marca uma diferença substancial entre jovens do meio urbano e rural recalcada pelas desigualdades de oportunidades e acesso aos vários serviços de qualidade. Muitas vezes, os jovens no campo se vêem fadados a seguir o modus operandi e vivendi dos seus pais e seguem as correntes migratórias em direção aos centros urbanos atraídos pelo fetiche do consumo, que se encontram nesses lugares. Grosso modo, é possível dizer que é cada vez menor a realização substantiva dos seus direitos sociais, como meio de se autoconstruir e, assim, de facto, atuar na perspetiva da construção democrática.

É sobejamente conhecida a situação familiar cabo-verdiana. Só para termos uma ideia, em 2015, Cabo Verde registou uma incidência de pobreza absoluta global na ordem dos 35%, o que significa que 179.909 pessoas são consideradas pobres, ou seja, vivem com um consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza. A pobreza absoluta extrema fixou-se em 10,6%. Esta situação afligeem proporção maior a camada jovem, com representação de 25,5% entre 15-24 anos (INE, IDRF 2015). Um outro fator é a fecundidade na adolescência, pois,em 2016, foram atendidos nos serviços de saúde reprodutiva um total de 10.440 grávidas, das quais 2.132 em idade precoce (20,4%) (INE, 2017). Além disso, 40% das famílias é monoparental e pelo menos 55,9% das crianças em Cabo Verde vivem sem a presença do pai (INE, 2017). As responsabilidades parentais devem ser urgentemente assacadas para futuros líderes que conduzirão este país a um porto seguro fundado nos princípios Democráticos.

Diante deste quadro, muitos jovens cabo-verdianos têm assumido comportamentos que configuram desvio de comportamento, nomeadamente o consumo excessivo de álcool e outras drogas e a delinquência juvenil, enfraquecendo a sua sã participação no processo democrático cabo-verdiano. Outras vezes, colocando-se em fuga na emigração para a terra longe à procura de melhores condições de vida. Outros engrossam as fileiras dos trabalhadores sazonais nos campos, em obras de infraestruturação pública, na agricultura de sequeiro, na construção civil, a maioria das vezes inseridos de forma precária e informal. Essa é a luta diária da maioria da juventude cabo-verdiana, uma luta pela sobrevivência. Entendo que decorre daí os jovens serem assolados por uma grande apatia ou desinteresse político. Portanto, antes de serem desafiados a construir um país cada vez mais democrático, são desafiados a conseguir condições materiais de vida para sobreviverem e garantirem o seu lugar, a sua vez e voz nas suas comunidades e na sociedade cabo-verdiana.

Nesse sentido, pode-se afirmar que temos ainda um longo caminho a percorrer com a nossa democracia, que nos parece ainda restrita aos marcos da formalidade. Neste âmbito, resulta uma relativa dificuldade do jovem em se ver como sujeito histórico, capaz de transformar a realidade e com isso participar efetivamente d(n)a construção democrática.

Essas são dimensões da luta pela construção democrática e por isso, questões que nos afetam a todos, como eternamente jovens, e diretamente ligadas à história soberana desse Arquipélago.

Diante deste cenário, para onde estamos a caminhar?

O Guineense, Carlos Lopes, distinguido pela Revista “Financial Afrik” como o economista do ano 2019 e pelo jornal espanhol “El Pais”, que o colocou na lista das 10 personalidades africanas do ano, muito por causa do lançamento do seu livro “África em Transformação”, no qual apresenta oito desafios para a transformação do continente, disse numa entrevista concedida a RFI:

eu tenho a plena certeza de que o futuro da Democracia na África e no mundo tem muito a ver com a juventude da nossa população. Os níveis da participação são muitos elevados e há uma grande energia. Existem, por enquanto muitas dificuldades de participação plena; porque as instituições não estão adaptadas, existe um diálogo difícil entre os dirigentes e a juventude, que tem a ver com forma como a política foi concebida. Mas, os jovens perseveram e estão a mostrar um talento e uma capacidade muito grande. Estamos num momento, de facto, definidor daquilo que vai ser a relação internacional entre populações muitos jovens concentrados fundamentalmente em África, e populações em envelhecimento que vão estar concentrados fundamentalmente nos países mais ricos.

É necessário sublinhar aqui que está a acontecer um conjunto de lutas protagonizadas por jovens cabo-verdianos, organizados e comprometidos com as ideologias democráticas. Jovens que procuram agir de forma diferente da lógica da competição e do individualismo e buscam ressignificar as relações interpessoais, através de novas formas de interação, participação e reconhecimento na sociedade cabo-verdiana, como é o caso da música. Jovens que experimentam novas formas de organização, onde os espaços de exercício do poder são socializados em interação com o povo, com critérios comunitários e morais enraizados no bem-comum. Uma luta com um caráter social extremamente importante para a saúde da Democracia cabo-verdiana, onde as esferas do poder partilham de valores, como a cooperação e solidariedade, que espelham um caráter pedagógico essencial para a nossa sociedade.

Podemos perceber também que nossas lutas hoje assumem um caráter global. Além de imprimir o caráter e as urgências de uma juventude engajada fortemente nas lutas dos grandes desafios, como género, ambiente, migrações, racismo, desigualdade social, entre outros, e dessa forma protagonizando novos processos de educabilidade e de socialização que fortalecem a construção democrática. Outros movimentos buscam pela via cultural aludir às características singulares de um povo lutador fundamentado no seu ethos cultural africano, transformando essa sociedade numa perspetiva cada vez mais democrática.

A nossa luta é pela transformação desse cenário que dificultam a sua construção. Assim, a democracia exige defensores para levantar a bandeira da juventude que entendem que ela só pode se tornar palpável para todas/os se vivermos uma nova práxis. Dessa maneira, enxergamos a via democrática como um importante instrumento na construção do caminho para a transformação, superando qualquer situação de exclusão. É preciso um novo conceito da democracia, em que o coletivismo/comunidade prevalece como condição sine qua non para todo o Ser Humano.

Devemos, como jovens comprometidos com o futuro de Cabo Verde, cultivar na organização de cada micro espaço valores e práticas que instigam transformação na forma de pensar, tanto a nível material, na esfera produtiva, quanto a nível da esfera cultural e política, ou seja, como aponta-nos um filho amado desta ilha (Santo Antão), Paulino Dias: “a incorporação da democracia nos nossos valores, atitudes e comportamentos no quotidiano. Sermos Democratas (enquanto indivíduos) e não apenas Termos um Sistema Democrático”.

Dessa forma, cabe então perceber as novas formas e temas pelos quais os jovens se mobilizam na esfera pública, que também podem apontar para o quadro de crise das formas tradicionais de participação e socialização política de um modo geral. Talvez, não sejam os jovens que desconhecem a relevância de participar ativamente nas dinâmicas sociopolíticas capazes de aprofundar a cultura política e o processo de consolidação democrática cabo-verdiana, mas antes a forma predominante de se fazer a política ou as estratégias de mobilização não sejam as mais adequadas para os incentivar como pilares fundamentais da sociedade, gerando neles, muitas vezes, a indiferença e algum desinteresse.

No geral, é importante perceber o porquê desse afastamento ou desinteresse da juventude pela política e esferas participativas fundamentais no processo da consolidação da Democracia, sobretudo numa “geração online” de revolução das TIC’s, onde as redes sociais conferem um poder considerável aos jovens, permitindo a ampliação da participação, que sobremaneira facilita o controle das ações governamentais, a transparência e permitiu a extensão da presença da sociedade civil nas políticas públicas. Pois, os jovens têm se apropriados dessa ferramenta de forma muita expressiva e hoje é praticamente inviável em se pensar uma ação governamental sem se pensar em redes sociais.

Por conseguinte, devemos estar cientes que a intolerância face ao oposto, às opiniões contrárias e, consequentemente, a sua negação e falta de reconhecimento afastam os jovens desse círculo, num contexto que precisa ser contornado. Trata-se de um situação que se configura na auto-entrega voluntária de confiança em demasia nos representantes políticos cabo-verdianos, o que tem vindo a sufocar aos poucos as dinâmicas sociais. Cada indivíduo, jovem neste caso, é um ator político e, mais do que isso, deve interiorizar que, enquanto cidadão, tem esse dever, de vigiar o cumprimento das propostas legislativas, das decisões e dos programas políticos.

Finalmente, para dizer que temos jovens com forte sentido de responsabilidade, com sede para aprofundar os seus conhecimentos, que lutam para poder contribuir, mas, que no final, vêm os seus projetos frustrados por insuficiências ou ausências de estruturas e mecanismos capazes de aproveitar das oportunidades e dos talentos dessa juventude. Acredito, que a juventude cabo-verdiana tem sede de trabalhar, sentir-se útil no processo de desenvolvimento do seu país, contudo, a incapacidade das estruturas e mecanismos para lograr dessas dinâmicas tem constituído uma grande barreira nesse processo. Ainda não se deu real atenção com políticas públicas claras para a associação juvenil ou comunitária, para autossustentabilidade das economias familiares e locais e, igualmente, para minimizar os fenómenos que atingem a capacidade dos jovens pela negativa.

Termino a minha apresentação citando Nelson Mandela“Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pessoas convivam em harmonia e com oportunidades iguais (...). Se preciso for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer”.

Comunicação apresentada no âmbito da “Semana da República”,
organizada pela Presidência da República de Cabo Verde

Santo Antão, Porto Novo, 15 de janeiro de 2020. 

Paulino Oliveira do Canto

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Autoria:Paulino Oliveira do Canto,5 jun 2020 7:51

Editado porSara Almeida  em  7 jun 2020 19:07

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