A África estaria melhor se tivesse mais mulheres na liderança. “Sem dúvida nenhuma. É uma evidência”, diz Anne-Marie ao Expresso das Ilhas. “Em África estamos ainda muito atrasados nesse sentido, tirando algumas excepções, como o Ruanda, Cabo Verde, Tunísia, Senegal, África do Sul. Os países africanos têm de pôr mulheres em posição de liderança e não é apenas uma questão moral”.
Anne-Marie Dias Borges, nascida em França, filha de pais cabo-verdianos da ilha de Santiago, é hoje considerada uma das 100 mulheres mais influentes de África, posição a que chegou depois de anos de trabalho árduo no sector da informação. Depois de ter ido para Inglaterra, onde tirou uma licenciatura em Estudos Africanos, é contactada pela BBC, no último ano do curso, para fazer um estágio. Começou como assistente de produção, passou pela BBC Afrique Radio, onde esteve dez anos e onde foi votada várias vezes como a apresentadora mais popular. Depois, fez um curto desvio até Paris, para ser apresentadora de um programa de política na Africa24, considerada a CNN africana, e regressou a Londres, onde hoje é jornalista sénior, apresentadora e produtora da BBC Business. Entrevistou, ao longo dos anos, políticos, homens e mulheres de negócios e celebridades africanas. Experiência que lhe permite falar, com conhecimento, das diferenças de género que ainda existem em África.
“Se a África quer desenvolver-se, tem que incluir aqueles 50% da população”, sublinha, durante a conversa telefónica com o Expresso das Ilhas, que decorreu em português, crioulo, francês e inglês. “Há um provérbio africano que diz que o pássaro precisa das duas asas para voar, se queremos desenvolvimento durável, temos de voar com as nossas duas asas, se não, não adianta. A África do futuro não pode ser desenvolvida sem a inclusão das suas mulheres ao nível de tomada de decisão. É isso que fará a diferença, as mulheres têm de tomar decisões em conjunto com os homens, não é concorrência, é equilíbrio. Temos de entrar no ciclo de criar mulheres líderes que inspirem outras mulheres”.
As mulheres mais influentes de África
Este reconhecimento anual, organizado pela Avance Media, pretende isso mesmo, além de celebrar estas mulheres, quer que as mesmas sirvam de inspiração para a próxima geração de líderes em África. São mulheres que ascenderam no mundo dos negócios e da política, que estão à frente de tomadas de decisão, tanto a nível local como a nível internacional. Fazem parte da lista deste ano, por exemplo, a antiga presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, a nigeriana Amina Mohammed, a número dois das Nações Unidas, ou a camaronesa Vera Songwe, actual secretária-executiva da UNECA.
“É uma nomeação que levo muito a sério, porque hoje em dia a mulher africana ainda não atingiu o nível onde devia estar”, diz Anne-Marie ao Expresso das Ilhas. “Há ainda muitas diferenças de tratamento que devíamos melhorar. Espero, com este reconhecimento, ser capaz de mudar muita coisa. Acho que a mulher africana ainda carrega um peso para onde quer que vá, que é o peso da cultura e da história. Embora as coisas estejam a melhorar, acho que ainda há muito para ultrapassar”.
“Não percebo porque é importante continuarmos a insistir que a educação da menina vale tanto como a educação dos meninos”, sublinha, enquanto procura a palavra certa na língua que melhor exemplifica a emoção que pretende transmitir, “mas a verdade é que em África ainda é preciso explicar esta questão às famílias, que é bom investir na educação das meninas. Sabemos que nas nossas culturas as famílias dizem que o rapaz vai estudar, ter uma carreira e a menina é a mulher do homem, o futuro dela é ser uma esposa, a rapariga é somente a mulher do futuro marido”.
“Isso aconteceu comigo, recordo-me muito bem das minhas avós e tias me dizerem que tinha de aprender a cozinhar e a tratar da casa ou nenhum homem me ia querer e eu a sentir que a minha vida seria zero, não valeria nada. O que eu quero? Que as pessoas entendam que a menina não é apenas a mulher do futuro homem, a menina vai ser a mãe da nova geração”.
As mulheres em Cabo Verde
Apesar dos economistas já terem demonstrado que quando os países investem nas mulheres a economia desenvolve-se mais, porque as mulheres têm mais tendência do que os homens a reinvestir o dinheiro nas suas comunidades, construindo escolas, hospitais, etc., a verdade é que os dados também mostram que as mulheres continuam a ser o elo mais fraco da sociedade africana: são as mais pobres, são as que sofrem mais violência, são as que têm menos oportunidade de emprego, são as menos alfabetizadas.
Cabo Verde não foge a estes números. A taxa de pobreza das famílias, chefiadas por mulheres é de 33%, em comparação com os 21% das que são chefiadas por homens. Apesar de Cabo Verde estar entre os melhores países, relativamente ao índice que mede as Disparidades Globais entre Géneros, publicado pelo Fórum Económico Mundial, e também no Índice de Igualdade de Género do BAD: é o 5º entre os países de rendimento médio, o 6º na África Subsariana, e o 36º entre 144 países do mundo inteiro. No entanto, esta posição deve-se sobretudo à classificação em três das quatro áreas do índice: educação, saúde e representação política. Na quarta área, participação e oportunidade económica, a classificação de Cabo Verde é baixa – ocupa o 115º lugar. As mulheres cabo-verdianas têm menor probabilidade de se ocuparem com trabalho remunerado do que os homens e tendem a entrar no mercado de trabalho mais tarde, e estão sujeitas a uma maior vulnerabilidade de rendimentos do trabalho informal, de baixa remuneração, e de trabalho inseguro. Uma vez que quase metade (48%) dos agregados familiares cabo-verdianos são chefiados por mulheres, a vulnerabilidade dos rendimentos das mulheres tem um impacto negativo na saúde e na educação das crianças e na continuidade da pobreza intergeracional. À semelhança de muitos outros países em desenvolvimento, o sector informal é grande, possivelmente cerca de 59%, sendo a maioria mulheres. De acordo com a ONU Mulheres, “a situação das mulheres no empreendedorismo é incipiente, está ligada ao comércio informal, com acesso limitado à tecnologia de produção moderna e às competências empresariais, bem como aos serviços financeiros”.
Apesar das condições serem hoje um pouco melhores, não estão assim tão longe das que levaram a mãe de Anne-Marie, nas suas próprias palavras, a “fugir” de Santiago. Chegou a França em pleno inverno, a uma cidadezinha perdida nos Alpes, perto da fronteira com a Suíça, grávida, sem dinheiro, sem falar francês, sem documentos. O frio que apanhou deixou-a com problemas de saúde até hoje. “A nossa infância foi muito modesta, uma vida humilde, mas sempre com dignidade. Desde pequenos, os nossos pais investiram na escola e sempre nos encorajaram a ser os melhores”, conta a jornalista. “Antes mesmo de nascer as probabilidades estavam contra mim. Por isso, sei que temos de ultrapassar para alcançar algumas metas”.
E é esta experiência pessoal que Anne-Marie quer passar também para as gerações mais novas, que a origem de cada um não é uma fatalidade. Mas para isso, sublinha, é preciso que os decisores tenham uma visão real. “Não queremos mais palavras. Discursos bonitos e promessas não faltam, mas precisamos de uma visão séria de inclusão de mulheres a todo o nível. Nas nossas culturas ainda há o medo das mulheres poderosas. Entendo que muitos líderes africanos não querem a mudança porque a mentalidade é: se todas as mulheres forem para a escola, quem cuida das crianças, dos homens? Muitas vezes o problema é este, básico, não tem nada de filosofias complicadas. E não são apenas os homens a pensar assim, muitas mulheres também o pensam. Por isso é que apresento sempre provas: os bancos, por exemplo, preferem dar crédito às mulheres porque a probabilidade da dívida ser paga é muito mais alta. Os dados mostram que a não inclusão das mulheres na economia africana faz com que o continente perca, por ano, 95 mil milhões de dólares. Podemos mostrar e temos tudo a ganhar quando investimos nas nossas meninas e nas mulheres. Temos de ter mais fé no potencial das nossas meninas, porque é na base, na educação que tudo começa. E a nível governamental temos de ter líderes visionários, que ainda nos faltam. Ouvimos discursos muito bonitos, mas em termos de resultados é tudo ainda muito fraco”.
“Para passar aos actos temos de ser realistas”, continua Anne-MArie. “No dia a dia, como podemos ajudar as mulheres? Precisamos de as valorizar. As mulheres têm de perceber o seu próprio potencial. Falo com muitas mulheres que me dizem que não têm futuro. Um homem tem certezas, as mulheres têm sempre muitas dúvidas. É nisso que temos de trabalhar, as mulheres têm de se valorizar, todas têm valor, não são apenas as que dirigem as grandes empresas. Temos de questionar os decisores: se uma mulher é casada, com filhos e decide arranjar trabalho fora de casa, tem infra-estruturas? E pode pagá-las? O que vemos muito em África é que as mulheres conseguem um trabalho, mas faltam todas as estruturas de apoio. É aí que a Europa está mais adiantada e porquê? Porque há mais mulheres em posição de tomada de decisão. As estatísticas mostram que trinta por cento das mulheres deixam o emprego no espaço de cinco anos por causa dessa falta de estruturas. As leis da paridade são muito bonitas, mas sem as infra-estruturas de apoio, nada vai mudar”.
No final da conversa com o Expresso das Ilhas, Anne-Marie, a jornalista franco-cabo-verdiana que é uma das 100 mulheres mais influentes de África pergunta se pode deixar uma mensagem. “Mulheres africanas, acreditem no vosso potencial. A vossa condição de hoje não é definitiva. Acreditem em vocês”. Fica a ideia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 978 de 26 de Agosto de 2020.