Da cidade para o campo: Os novos agricultores apostam na qualidade

PorAntónio Monteiro,6 set 2020 7:40

O aumento populacional dos maiores centros urbanos do país, em especial da Praia, tem favorecido um fenómeno cada dia mais patente aos olhos de todos: gestores, consultores, advogados e quadros de vários ramos do funcionalismo público estão deixando a cidade rumo ao campo para se dedicarem em regime de par-time ou a tempo inteiro ao agronegócio, uma actividade que além de aliviar o stress citadino, contribui para uma renda adicional aos novos agricultores.

O Expresso das Ilhas foi ouvir a experiência do bancário Carlos Moura e do sociólogo Rony Moreira que se dedicam há já alguns anos a esta actividade que descrevem como uma nova janela de oportunidades, mas apontam também constrangimentos de ordem administrativa ligados ao sector.

Quem viaja para os lados da Cidade Velha, São Martinho ou para o interior de Santiago depara-se com uma proliferação de espaços, propriedade de pessoas que já deixaram ou pensam deixar a sua primeira habitação na Cidade da Praia para se dedicarem ao negócio agropecuário.

“Havendo área suficiente, havendo água, muito pouca gente vive melhor que um agricultor em Cabo Verde. Isto porque temos um mercado que tem carência de produtos alimentares, só produzimos um pouco mais de 20 a 25 por cento daquilo que consumimos. Portanto o nosso maior obstáculo é terreno, água e organização. Se tiveres estas três coisas, lugar aquilo que estás a fazer e vai para o campo”, começa por dizer Rony Moreira, referindo à sua própria experiência pessoal.

O activista social está neste negócio há seis anos, desde que terminou os estudos em Portugal, mas ainda os ganhos são bastante reduzidos. “Com três anos de seca consecutiva, não há como ganhar. A última vez que consegui ter um bom facturamento foi em 2015”.

Com o dinheiro Rony Moreira construiu uma pequena estufa na área que cultiva da propriedade familiar situada no interior de Santiago, localizada nas imediações da barragem de Poilão, na fronteira entre os concelhos de São Lourenço dos Órgãos e Santa Cruz.

Neste momento faz apenas produção de hortícolas, por falta de água. “Tenho que usar a pouca água que existe, por isso tenho de produzir hortícolas”.

Aliás, o mercado para estes produtos está constantemente a crescer devido ao aumento significativo da população citadina e à mudança de hábitos alimentares nas últimas duas décadas. “Uma boa parte da população tem hoje a preocupação de se alimentar mais conscientemente. Há a introdução de novos produtos, que não havia antes. Por exemplo, há 20, 30 anos a produção de hortícolas era muito diminuta, quase insignificante, mas hoje a sua produção tem um peso percentual muito elevado em Cabo Verde. Isso dizer que as pessoas passaram a comer mais e melhor em Cabo Verde”, analisa.

A preocupação em se alimentar melhor, que cria este nicho de mercado, é mais acentuada dos grandes centros urbanos do país, nomeadamente na Praia, Mindelo e Assomada onde surgiu uma nova classe de consumidores com maior poder de compra.

“ É uma questão de organização. É o que costumo dizer, o nosso maior problema tem sido as pessoas, não é falta de água, este é o nosso menor problema. O nosso maior problema são as pessoas. Porque se é possível produzir num país como Israel, por que não é possível produzir aqui em Cabo Verde. Tem a ver com a organização.

O agronegócio é altamente rentável

Para Rony Moreira o agronegócio é altamente rentável, mas há que quebrar ainda algumas barreiras. A primeira tem a ver com status quo do camponês que não é uma profissão prestigiada. “As pessoas preferem não se assumirem como camponeses. Então muitas pessoas ao invés de fazerem trabalho de campo preferem vir para a cidade da Praia fazer qualquer coisa”, aponta.

Felizmente as coisas estão a mudar paulatinamente. Os novos agricultores que saem do funcionalismo público para abraçar este ramos de actividade já não precisam ter complexos, pois transferem para o labor agropecuário conhecimentos científicos e de gestão que os diferenciam dos agricultores tradicionais que têm dificuldade em mudar de mentalidade. Então torna difícil introduzir grandes mudanças, “ou pelo menos ir muito além daquilo que fizeram até agora”, explica o sociólogo.

Outro constrangimento que os novos agricultores enfrentam, num sector que é responsável por boa parte da criação da riqueza nacional, tem a ver, de acordo com Rony Moreira, com a forma como são tomadas medidas para o sector rural. Existe um plano nacional da agricultura que não é cumprida, e as decisões são tomadas avulsamente, afirma.

Nossa indústria é maioritariamente agroalimentar

As pessoas ainda não perceberam que o campo, pelo menos aqui na ilha de Santiago, Santo Antão e Fogo esteve sempre ligado à produção da riqueza nacional. Quem conhece um pouco da história do país, pelo menos da ilha de Santiago, pode facilmente constatar este facto. Mas o mais interessante ainda é que a nossa incipiente indústria é maioritariamente agroalimentar”, aponta.

Apesar de estar ligado ao campo desde criança, Rony Moreira não mudou de armas e bagagens para o interior. Continua morar na Praia, onde realiza trabalhos sociais, políticos e ligados à sua área de formação.

“É possível fazer as duas coisas, até porque a minha formação de sociólogo permite-me perceber melhor a relação que existe entre a cidade e o campo”, considera.

Já Carlos Moura, formado em organização e gestão de empresas, que se dedica à consultoria e a actividades empresariais na área da pecuária, não consegue definir qual é a sua principal actividade neste momento. “Se me perguntar se das actividades a que me dedico neste momento há um que é a tempo inteiro, digo-lhe que são todos a tempo inteiro. Isto porque saio de manhã da casa, passo pela minha propriedade para dar orientações, ver como estão os animais, como estão as plantas e depois vou para o escritório para tarefas específicas. Ou às vezes o contrário”, refere.

O bancário em licença de longa duração explora uma propriedade no vale de Palmarejo-Grande. Carlos Moura produz neste momento carne bovina e suína e animais de capoeira.

“Nesta linha tenho a minha actividade pecuária e eu tenho um talho que abasteço com carnes da minha produção e também com carnes da produção que eu compro em terceiros quando a minha capacidade de produção não é suficiente. Neste momento produzo ovos, carne bovina e suína, galinha coelhos, patos e carneiros”, enumera.

Moura está neste negócio desde 2005, numa propriedade que seu pai adquiriu em 1981. Como faz questão de realçar, só trabalha com produtos naturais, portanto animais de terra.

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“Este é o slogan que eu utilizo junto das pessoas de darmos atenção à questão da saúde, portanto, na linha positiva do que o produto de terra traz para a saúde. Por causa disso, em minha casa não compramos nada que é congelado em matéria de carne. O talho que eu forneço não trabalha também com congelados, só com produtos nacionais”, sublinha.

O empresário considera que tem tido um retorno positivo da criação de animais, na medida em que os investimentos que vem fazendo são cobertos por esta actividade.

“Tenho recuperado o capital investido e outros custos associados ao capital e ainda tem sobrado alguma margem”.

Enquadramento do fenómeno

Carlos Moura explica este fenómeno de regresso ao campo como uma forma de as pessoas se libertarem do aperto que se vive na Praia devido à crescente pressão demográfica sobre a urbe.

“Uma outra análise que nós fazemos é estar num meio tão cheio com todo o stress do trabalho, ir para o interior acaba por nos aliviar do stress citadino.Quando você está no interior o barulho é menor, ainda por cima estar ao pé dos animais e das plantas para mim é uma terapia”.

“A outra análise que eu faço tem a ver com a procura de uma renda adicional, pois a vida hoje está bastante cara, e a procura de uma renda adicional, na minha óptica, como uma das outras razões que estão a levar as pessoas para o interior para além da procura de qualidade de vida”, considera.

Para Carlos Moura a questão dos novos agricultores devia suscitar um conjunto de reflexões, pois as pessoas que abraçaram este ramo de negócio já produzem renda e contribuem para a criação da riqueza do país e por esta razão devem merecer uma atenção especial das autoridades.

“Somos um país que depende muito da importação, que importa grande quantidade de produtos alimentares desde carne a produtos agrícolas. Pessoas como eu que resolvem regressar ao campo são uma mais-valia na medida em que não precisamos de pequenas ajudas do governo. Precisamos, sim, que as estruturas de decisões tenham regulamentos, normas e leis que permitam que as coisas fluam naturalmente”, conclui. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 979 de 2 de Setembro de 2020.

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Autoria:António Monteiro,6 set 2020 7:40

Editado porFretson Rocha  em  7 set 2020 7:45

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