Elter Carlos, professor de filosofia na Faculdade de Ciências Sociais, Humanas e Artes da Uni-CV: O pensamento cabo-verdiano tem na literatura a sua forma privilegiada de expressão

PorAntónio Monteiro,25 out 2020 12:34

Decorreu, na passada quinta-feira, na Universidade de Cabo Verde, em formato online, a III edição da Conferência Cabo-verdiana de Filosofia, Literatura e Educação, organizada pela Coordenação do Curso de Filosofia, da Faculdade de Ciências Sociais, Humanas e Artes da Uni-CV, em colaboração com Instituto Camões, o Instituto de Filosofia da Universidade do Porto e o Movimento Internacional Lusófono. Sob o lema: “Trocas Narrativas e Experiência de Leitura Plural”, a conferência contou com 23 comunicações de especialistas de Cabo Verde, Portugal, Alemanha, Brasil, Espanha. Em entrevista ao Expresso das Ilhas, Elter Carlos, criador da conferência e presidente da comissão organizadora desde 2013, fala dos resultados desta conferência, cujo objectivo principal foi dialogar a filosofia e a literatura no espaço cabo-verdiano e lusófono, e estimular o estudo sobre o pensamento cabo-verdiano a partir da poesia, da literatura e das artes.

Qual foi o objectivo central desta conferência?

O Objetivo central da conferência é, desde a 1ª edição, promover o diálogo entre Filosofia, Literatura e Educação em Cabo Verde e no espaço lusófono, contribuindo assim para o lançamento da exploração de uma filosofia cabo-verdiana a partir das expressões poética, literária e artística. Também contrastar com a tendência actual, de que Cabo Verde não foge à regra, em valorizar mais as técnicas e a tecnologias, secundarizando o valor da filosofia, das artes e humanidades, como se fosse possível um desenvolvimento integral do ser humano e de uma sociedade democrática sem as humanidades em constante diálogo com as tecnologias e as técnicas. Uma sociedade que não valoriza em grau de igualdade todas as áreas do pensamento corre o risco grande de formar cidadãos limitados e, por isso mesmo, “cabeças cúbicas”, na expressão do filósofo Agostinho da Silva. Paulo Freire chama essa educação desconectada da vida de “educação bancária”, similar a quem faz um depósito…

Podia explicar o lema da conferência: “Trocas Narrativas e Experiências de Leitura Plural”?

Na verdade, o lema sublinha a importância das narrativas na formação humana, principalmente hoje em que muito se fala no fim de narrativas explicativas. Por isso, quisemos sublinhar o seu valor na educação, embora isto não significa que a educação seja uma doutrinação através das narrativas. Talvez, o mais importante é mesmo estimular o sujeito humano no processo da autodescoberta de si através das narrativas, textos fundadores e não só, que explicam a sua condição pessoal, social, histórica e cultural. É que a pergunta pelo sentido da nossa existência, isto é, a ideia sobre Quem somos e Quem seremos depende da pergunta sobre Quem fomos. E as narrativas históricas, ficcionais ou outras, são importantes neste sentido. Também trocas narrativas é o convite à partilha de narrativas e textos no espaço lusófono que é, por excelência, um espaço plural de muitas línguas e mundividências. Como dizia o filósofo francês, Paul Ricoeur, “a narração faz parte da vida antes de fazer parte da vida da escrita”. E ler arte literária é já “trocar narrativas” porque o leitor coloca no lugar das várias personagens, criando uma identidade múltipla e plural. Fala-se, neste sentido, numa alteridade narrativa, isto é, numa experiência de “outrar”, um eu que é, ao mesmo tempo, um outro.

Menos Cabo Verde, todos os outros países participantes têm uma longa tradição filosófica e literária. As suas comunicações corresponderam às expectativas?

É verdade que estes países têm uma tradição filosófica forte. E também literária. Eles desenvolveram reflexões nas duas áreas. Tivemos desde o início uma expectativa muito grande. E assim aconteceu mesmo: foram muitos especialistas que têm dedicado bastantes anos de estudos à filosofia e literatura. E eles, de facto, mostraram como a filosofia e a literatura podem ser propostas de educação da humanidade e projecção dos povos e das nações.

O objetivo da conferência foi dialogar a filosofia e a literatura no espaço cabo-verdiano e lusófono, e estimular o estudo sobre o pensamento cabo-verdiano a partir da poesia, literatura e artes. São a poesia, a literatura e as artes as formas privilegiadas da expressão do pensamento cabo-verdiano?

O pensamento cabo-verdiano tem na literatura, entendemos aqui todos os géneros, talvez a sua forma privilegiada de expressão. É claro que reconhecemos o valor da oralidade, literatura oral, e outras manifestações estéticas e culturais. Mas a literatura e a poesia têm esse dom de nos dar imagens da realidade de forma condensada; fornecem à filosofia uma construção imagética e metafórica que a filosofia necessita para a sua própria emergência. É que, a filosofia encontra no labor poético-literário um laboratório de experiências reais trabalhadas linguisticamente, tanto na língua portuguesa como na língua cabo-verdiana, ou mesmo em outras línguas. Por isso, não criam os filósofos conceitos abstratos no vazio, mas sim estes nascem da experiência vivida. Vivências que a literatura nos dão de forma plena. Aliás, muitos textos literários são, no fundo, a elucidação clara de conceitos que a nível filosófico não se consegue explicar com facilidade. Encontramos isto muito presente nos textos em prosa de Eugénio Tavares e tantos outros escritores. Países com grande literatura têm, ou poderão vir a ter, grande filosofia. Penso que é difícil mencionar nomes de escritores e poetas, sob pena de colocar alguns e não colocar outros. Mas diria que desde o século XIX ao século XXI encontramos escritores com um pensamento vigilante e com forte dimensão filosófica. A filosofia contemporânea é desafiada, por exemplo, por Ricoeur e tantos outros, a abrir-se ao não filosófico: ao poético, ao literário ou ao artístico. Também ao mito, à metáfora, e a todas as linguagens.

Há uma razão plausível para a não inclusão da música cabo-verdiana como uma das formas mais genuínas da expressão do pensamento cabo-verdiano?

A música cabo-verdiana é, sem dúvida, a instância onde se sente a forte presença do pensamento cabo-verdiano. Mas a música está relacionada com a literatura cabo-verdiana. Vejamos a questão da morna, de compositores como Eugénio Tavares, B.Leza, Manuel de Novas, etc. São músicas que dão a pensar propostas de novos mundos dentro do mundo vivido em determinadas épocas, com a vista a uma ontologia do ser cabo-verdiano e a uma estética musical emancipatória. E digo o mesmo no funaná, no batuku, na coladeira. Com certeza, a relação entre música e pensamento será o lema de uma das edições que virão no futuro da conferência. E porque não a pintura? Ou a dança? O lema varia em cada edição. Mas podemos adiantar que o lema da IV Edição há-de relacionar com a ideia de “Imagens Pensantes”, ou seja, mostrar que as imagens, e consequentemente, a fotografia, pintura, cinema, escultura, etc, são fontes do pensamento. Fazem parte de um pensamento sensível e estético, não inferior à razão tecnológica e científica, mas complementar a essas formas de racionalidade. E o pensamento cabo-verdiano começa a ganhar mais força nestas dinâmicas de criação artística. Mas nem todo o sentir é estética ou reflexão nos tempos atuais, onde a massificação do sentir e do pensar é visível. Por isso, devemos libertar desse pensamento já formatado pela massificação do sentir e instalar um pensamento cujo centro é a própria aprendizagem do sentir que é já um acto de pensamento encarnado na vida.

Uma questão que foge um pouco do âmbito da nossa entrevista. Na minha opinião o pensamento filosófico continua a ser essencial para a “experiência da verdade”, mas há já muito que os grandes impulsos vêm de outras áreas do saber, nomeadamente da física, da química, etc, e não do labor filosófico propriamente.

Sim, o pensamento filosófico contribui muito para o desencadeamento da “experiência da verdade”, justamente para mostrar aos humanos que o próprio conceito de experiência, a partir de Hans Georg Gadamer, deixar de ser a mera experiência técnica, conceptual e metódica para passar a englobar a totalidade da experiência humana do sentido. Pode-se assim compreender que literatura, arte, narrativas, mitos, metáforas são igualmente fontes de verdade. Assim, a experiência da física ou química, por exemplo, não são nem superiores nem inferiores a experiência estética dada pela literatura ou as outras artes. São complementares. Acredito que um grande físico ou cientista acaba sempre por partir de, e cair, em posturas filosóficas, sobretudo quando se depara com os próprios limites do conhecimento produzido pela razão humana que, como se sabe, é ela mesma finita. E por o ser, não alcança a complexidade do conhecimento. Kant mostrou isso na sua Crítica da Razão Pura: os limites da razão pura. Einstein dizia que o sentido da vida é um sentimento. E não deixa de ser verdade. E quem melhor do que a arte, a religião, a literatura ou a filosofia para enfrentar o sentimento de contingência? Da finitude? É só pensarmos nas situações-limite da COVID-19 que vivemos hoje, sem ter a certeza de quando surgirá uma vacina eficaz. Qual o papel da música, da pintura, da religião ou da leitura literária na resignificação do nosso ser em tempos difíceis?

Para que serve a filosofia hoje?

Hoje, mais do que nunca, é urgente a instalação e o robustecimento do pensamento filosófico nas arenas socias, políticas e culturais. As sociedades cuja filosofia fez, e faz, parte do seu desenvolvimento espiritual são as onde o grau de humanismo e cidadania é forte. Mesmo quando cometem “erros grandes” a nível moral, estas sociedades são capazes de reconhecê-los e assumi-los depois. As crises que assombram o mundo actual a nível ecológico, social e político mostram por si que a cultura do pensar, em todas as áreas do saber e em todas as instâncias do estar, é um desafio inadiável. A filosofia não serve para nada no sentido utilitarista do termo. Está servindo para. Somos em Cabo Verde fruto disso. É só vermos o papel fundante que teve (e está tendo ainda) a nossa literatura que nasce no século XIX, com forte dimensão filosófica. Essa literatura projectou os nossos horizontes históricos; isto acontece com todas as Revistas e escritores posteriores. E com os nossos escritores e poetas de hoje. Ora, não é por acaso que a UNESCO elegeu o mês de Novembro de cada ano como o mês da filosofia, sendo o seu dia a terceira quinta-feira de Novembro. Neste ano de 2020 cai a 19 de Novembro. Também o filósofo Jacques Derrida fala no Direito à Filosofia. De facto, um estado de direito democrático precisa de um forte aparato argumentativo e crítico. E a filosofia, mas também a literatura, instâncias de formação por excelência, fornecem-nos estas competências, estas formas de viver o espaço público.

Que tratamento será dado aos resultados da conferência?

Os resultados da conferência podem ser vivenciados a vários níveis: através das vídeo comunicações que ficaram como registo on-line, no canal YouTube do evento, para efeitos de estudos e reflexões pedagógico-científicas e culturais. Através do livro digital que sairá a partir dela [organizada pela UNICV, Camões, IF-FLUP e MIL] e que constará nos repositórios da Uni-CV e através do próprio contributo ao pensamento cabo-verdiano e lusófono que vai-se fazendo história nas várias edições. Desejamos que no futuro os frutos sejam mais visíveis. Estamos a plantar…. e temos de ter paciência para colher. E o retorno de cidadãos cabo-verdianos e de tantos outros países têm chegado diariamente, elogiando o impacto da conferência. De certeza, nas próximas edições teremos mais países envolvidos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 986 de 21 de Outubro de 2020. 

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Autoria:António Monteiro,25 out 2020 12:34

Editado porSara Almeida  em  26 out 2020 8:58

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