“É preciso pensar na criança pela criança que é, e não pelo adulto que será”

PorSara Almeida,6 jun 2021 8:30

Assinalou-se ontem, 1, o Dia da Criança, mais uma vez comemorado de forma contida devido à covid. A efeméride foi pretexto para uma conversa com a psicóloga clínica Kika Freyre, que nos fala de como as crianças cabo-verdianas têm vivido e reagido à situação presente, do cansaço dos pais, da correria louca dos curricula escolares, do uso das “telas”, entre outros factores que têm moldado o nosso dia-a-dia.

A vida não está em standby, e aos pais é pedida uma intensificação da aproximação afectiva, que sejam gentis com as crianças, consigo próprios”. Em pandemia, ou em qualquer situação, aqui em Cabo Verde como em todo o mundo, há três palavras que a psicóloga destaca como essenciais para uma infância saudável: “proteger, amar e respeitar”. Sem pressas. Deixando que as crianças sejam somente crianças.

Sabemos que há um impacto da covid na saúde mental. Como têm reagido as crianças, em Cabo Verde, a esta pandemia?

De uma forma geral, ainda vivemos uma situação privilegiada em Cabo Verde, em relação à pandemia. Não convivemos tanto com a morte, o medo e os internamentos de familiares como acontece em outros países. Mas o impacto nas crianças é visível. As alterações de comportamento são gritantes. Medos, pesadelos, inseguranças, baixa no rendimento escolar têm denunciado que emocionalmente o coronavírus também age, mesmo sem a sua contaminação. E a alteração da rotina escolar também quebrou a ordem minimamente estruturada do dia-a-dia. Em Cabo Verde, a ida à escola, para muitas crianças, tem um significado imenso em relação à alimentação, à segurança, ao comprometimento com a vida, ao sentido de pertença ao grupo, que, de alguma forma, afrouxou com as divisões de turmas para se manter um número possível de estudantes em sala de aula. As adaptações eram necessárias, mas tiveram e têm tido o seu custo. Para algumas crianças, este tem sido o pior ano lectivo das suas vidas, afastadas dos amigos, vendo as matérias a correr aos galopes sem conseguir acompanhar, os pais sem paciência em casa. Não tem sido fácil. Tenho atendido crianças tendo crises fortes de ansiedade, soltando os fios que deveriam atribuir sentido às suas vidas. A pandemia está demorando muito a passar, temo pelo que virá com as férias escolares. Bem ou mal, nas férias passadas os pais estavam em teletrabalho em casa. Agora já não. Agora a Netflix domina e, de certa forma, a aglomeração também, porque no caso dos adolescentes, eles têm-se aglomerado mesmo com máscaras e algum cuidado e é a forma que têm encontrado de aguentar passar por esta crise que vai se cronificando com o tempo...

A pandemia intensificou a ligação das crianças (que já são nativos digitais), à tecnologia e ao digital. Que impactos isso poderá ter?

O digital, por si, não é o problema. Há, inclusive, canais, aplicativos, jogos com propostas educativas e culturais bem interessantes e que muito podem acrescentar ao processo educativo e ao entretenimento. Em idades diferentes, os impactos serão diferentes. Mas importa saber do comportamento da criança diante deste estímulo digital: se acompanha histórias simples, se demonstra compreensão da linguagem, se exibe respostas às cenas dos desenhos, se repete palavras, se imita, se insiste em repetir várias vezes apenas parte do programa, se relata o que assistiu... é possível tirar-se proveito para o neurodesenvolvimento da criança a partir da tecnologia. Mas não só de tecnologia se pode passar pela infância. Não dá para ser a programação de uma manhã inteira, de uma tarde inteira. A tela não olha nos olhos, não compartilha a atenção, não interage. A criança precisa interagir com outras pessoas para se desenvolver. Precisa do contacto, da presença do outro, da presença de outra criança. Tivemos relatos de situações na clínica de crianças pequenas que regrediram na fala no Estado de Emergência em 2020. Não falavam com ninguém. O dia inteiro diante da TV, passivas e os pais em teletrabalho sem hora para terminar. Nível de estimulação quase zero numa altura em que a estimulação é imprescindível. Haver o digital não é o problema, haverá cada vez mais propostas digitais e isso é bom. O problema é o tempo que os pais direccionam para os filhos estarem diante do digital. Isso sim, precisa de ser revisto. E as horas seguidas de aulas on line, a cobrar que as crianças assimilem a matéria é, no mínimo, uma falta de respeito pela infância.

Ao mesmo tempo, houve a desmaterialização das relações. Menos contacto físico. Também aqui, o que se vê e antevê nas crianças?

Eu vejo que as crianças têm uma capacidade de adaptação imensa e têm lidado com este menos contacto físico de forma magnífica. Muitas relações tiveram que ser resignificadas, mas as pessoas que verdadeiramente importam para boa parte das crianças estão dentro da sua própria casa e o contacto físico com estas não mudou. De modo que a plasticidade emocional das crianças é tamanha que quando o contacto físico geral voltar a ser permitido, este reestabelece-se. Se não voltar mais e continuarmos ainda por um bom tempo tendo que manter as máscaras e o distanciamento, não vejo esta como uma fonte de sofrimento para as crianças. Elas vão aprendendo a lidar com o presente, afinal de contas ninguém vive o presente de forma mais genuína que uma criança. Deveríamos aprender com elas ou pelo menos não desaprender quando crescêssemos...

Referiu numa entrevista em 2020 que “Vamos conviver juntos com o tédio e com tudo de bom que ele também oferece”. Quais as vantagens do tédio para as crianças?

O tédio requer brincadeiras não planeadas. Requer conexão entre pais e filhos. Requer disponibilidade. Muitas vezes não temos, é verdade, e acho que no início da pandemia foi bem pior. Para quem tem crianças pequenas, haver em casa este tempo em que “não há nada para fazer” não quer dizer que não se fará nada, quer dizer que não há nada planeado. É o tempo da criança criar, inventar brinquedos e brincadeiras. Verificar onde a luz do sol bate na sala a cada momento do dia. Perceber que a temperatura climática muda em diferentes momentos do dia. Conhecer sobre as plantas e o universo do cuidar. Cozinhar com seus brinquedos. Brincar livre. Há tanto por fazer. Mas as crianças querem fazer junto. As crianças querem fazer com os pais. E é a ausência destes momentos que irá demarcar a vivência da pandemia e não a pandemia em si. A proximidade traz sentimento de segurança, de protecção, de vinculação segura, primordial para se atravessar a crise em que vivemos. Portanto, estes tempos livres vivenciados entre pais e filhos, sem planos, sem precisar de brinquedos elaborados serão a matéria-prima das memórias afectivas deste tempo de infância vivido actualmente.

Esse tédio não levará, ao invés, à procura dos meios digitais e hiperexcitação?

Não é o tédio que levará à procura de meios digitais e hiperexcitação. Nós somos cada vez mais estimulados a correr e correr, sem nem saber para onde. Cada vez mais o tédio, o ócio, o tempo livre são vistos como “perda de tempo”. E o que resulta disso? Um mau humor insuportável, quase que como uma segunda pandemia. As pessoas passam cada vez mais tempo no telemóvel, nas redes sociais. O tempo do sono foi invadido e quando se desliga o telemóvel para dormir, a mente está inquieta, ainda cheia de estímulos. A cabeça não desliga na mesma velocidade. No dia seguinte: um mau humor terrível, são evitadas as aproximações. A capacidade de tolerância míngua, a paciência também. A capacidade de compreensão e empatia se esvai. Acolher o outro requer de nós a impressão da energia e nem sempre esta energia está recarregada e disponível. Entre os adolescentes, então, a sensação de desligar o telefone pode ser comparada ao estado de não existir. Estar desconectado equivale ao mesmo que não estar ali. Socialmente é preciso estar sempre disponível, em linha, ainda que ninguém te procure. E por vezes o dar-se conta desta solidão é apavorante. É adoecedor. Estamos cada vez mais distantes do silêncio, da inactividade e isso faz com que não saibamos lidar com ambos. Precisamos que as pessoas nos percebam, que nos dêem o seu “like” e não ver o “like” do outro é não ser popular e não ser popular é coladinho com não existir, não significar. Vivenciar o tédio ajuda-nos a lidar com estas situações com serenidade. Quanto menos tédio, mais pânico o silêncio trará, por não sabermos o que fazer com ele.

Falando sobre a Escola e a maneira como o ensino tem sido feito. Como os avalia, por exemplo a nível das aulas a distância, mas também ausência de intervalo?

Do que tenho percebido, quer com crianças, quer com adolescentes, pior que as aulas à distância (que não são uma realidade comum, as escolas em geral não têm utilizado este modelo) e a ausência de intervalo livre (porque intervalo há, só que em outro formato, agora dentro das salas), a queixa maior está na divisão das turmas, que acabou por dividir e separar amigos mais próximos. Cada escola seguiu a sua linha para estabelecer que alunos agrupar, mas esta queixa tem sido unânime na terapia. E para além desta, a questão dos conteúdos a correr. Eu, muito sinceramente, não sei se estas alterações todas poderiam ser bem melhor aproveitadas se se pudessem alterar efectivamente os programas das disciplinas, se fosse possível verificar o que é fundamental aprender a cada ano enquanto se vivencia uma pandemia e não meramente correr atrás de dar todo o programa com uma carga horária quase que pela metade. O meu medo é depois não haver sequer saúde mental nestas crianças para utilizar o que aprenderam... e assusta-me ver os pais querendo a todo custo os filhos em sala de aula a consumir matéria atrás de matéria, finalizando o ano lectivo já quase sem saúde mental... Sem saúde mental nas crianças. Sem saúde mental nos professores. Sem saúde mental nos pais. Afinal, quem ganha com essa correria? Para onde estamos correndo e fazendo-os correr? E corremos tanto assim, por quê?

A exigência para com os pais também tem sido maior. Quais acha que têm sido os maiores desafios e, da sua observação, qual o “estado” dos pais?

As crianças requerem dos pais cada vez mais presença, o tempo todo. E os pais estão exaustos. O modelo de teletrabalho extrapolou muito os limites das horas diárias de trabalho. Teletrabalho + teleaula ainda para algumas crianças, dias sem aulas para outras tantas e os pais tendo que suprir estes vazios. Não sei se os pais têm continuado a apresentar estímulos para as crianças, se têm conversado com elas na hora do banho, nas refeições, nas brincadeiras. São momentos tão importantes de partilha do tempo junto, de reforçar os laços afectivos, que parecem óbvios, mas não o são. Não sei se os pais têm conseguido respirar e lembrar-se de que são pais. E o que acaba acontecendo é uma pressão tão grande sobre o comportamento dos filhos, uma cobrança para que deixem as fraldas, que durmam nas suas camas, que não usem telas, que fiquem quietinhos e disciplinados. Vejo pais arrancando os cabelos porque os filhos não estão a agir assim. Propaga-se a cultura da expectativa irreal e com ela a culpa de que não temos sido bons pais, não sabemos fazer nada bem. Enfraquecemo-nos e caímos nestas armadilhas sociais. Precisamos aprender sobre estratégias com as crianças: estratégias anti-monstros, estratégias anti-bruxas para lidarmos com medos reais de fracasso parental que nos fazem acreditar que nada somos. Se eu pudesse dizer algo aos pais, diria que procurassem ser gentis com eles próprios e compreender que há dias em que conseguimos ser super, há dias em que conseguimos ser metade do planeado, há dias em que conseguimos ser só um pouquinho e ainda há dias em que nada parece funcionar e nos sentimos inúteis... e mesmo assim, está tudo bem.

Acha que as crianças se vão recuperar disto tudo? Afinal, há uma geração que está a perder passos marcantes da sua vida.

Eu não diria que há uma geração que está a perder passos marcantes da sua vida. A vida está acontecendo. Estes passos actuais são passos marcantes para todas as gerações. Nunca convivemos com nada parecido: uma crise sanitária, económica, política, humanitária... tudo ao mesmo tempo. A vida não está em modo pause para continuar quando a pandemia passar. A vida está sendo vida com a pandemia e as marcas que a pandemia nos deixará, a todos, a todas as gerações, são reais. Não temos como saber como será no pós-pandemia. Sequer sabemos quando chegará esse tempo... Eu tenho sempre muita prudência diante da ‘psicologização’ deste tempo pandémico, como se fosse possível teorizar sobre ele e vender manuais, estratégias e cursos para as diferentes tipificações de reacções. Eu acredito que as crianças estão vivenciando experiências reais que pedem de nós, adultos, uma intensificação da aproximação afectiva e aceitação das diversas e inconstantes emoções que manifestam. Não há um modelo de cação, de criação que possa ser descrito como o ideal para se passar por uma situação como a que estamos vivendo neste momento. Os passos marcantes das nossas vidas estarão sempre relacionados ao nos sentirmos amados, ou não. Sejamos gentis com as nossas crianças. Amá-las de modo que se sintam amadas é tão potente que restaura até as marcas da criança abandonada/esquecida/desamada... e num tempo que sequer havia Covid-19.

Saindo da pandemia para o geral: o que, como psicóloga e consultora, a preocupa mais a nível da condição infantil em Cabo Verde?

A questão das violências várias contra a criança, dentro de casa, principalmente. A sexual é a mais abominável. Mas as crianças sofrem também muitas outras violências que recebem muito menos atenção: a violência física, a violência psicológica, a negligência. Há pais que para parecerem «amigos» dos seus filhos, «não estão nem aí» para eles, não se importam aonde vão, com quem, o que fazem, que notas tiraram, se hoje era dia de aula ou não e isso passa aos filhos uma leitura de descaso, de não haver importância. E muitos comportamentos disruptivos surgem de uma tentativa de ser dada importância, de apelar ao medo de perder para tentar chamar a atenção dos pais. Os filhos têm buscado tanto a atenção dos pais, tanto. E nem sempre os pais têm estado disponíveis a perceber os seus filhos. Há crianças, adolescentes lindos, amáveis a implorar atenção dos pais e pais a cobrar e cobrar cada vez mais desempenho escolar, como se sobreviver a uma pandemia não importasse nada. Como se nada mais importasse a não ser o sucesso. Há muitos pais precisando de acolhimento, eu sei. A condição infantil está preocupante porque há pais que estão numa bola de neve de acúmulos de frustrações seja com o casamento, com o trabalho, com a situação económica e contando com cada vez menos rede de apoio, porque está difícil em casa de todo o mundo. Mas imagina se em cada casa houver afecto manifesto. Se em cada casa for possível amar-se e declarar amor. Imagina se em cada casa as pessoas pudessem verdadeiramente sentir-se amadas sem que lhes fosse cobrado nada em troca. Imagina o tanto de gente feliz que poderíamos ter neste Cabo Verde...

No dia 4 de Junho assinala-se o dia nacional contra o abuso e exploração sexual de menores. Vi um post da vossa clínica [Cereus – Psicologia e Arte] que refere a importância da educação sexual dizendo que não é a criança que deve escolher quando a receber. O que defende?

Defendo que não podemos andar a repetir lições de segurança às crianças e responsabilizá-las pelo cuidado com o próprio corpo. Esta é uma tarefa do adulto. As crianças precisam de educação sexual desde bem pequenas. E educação sexual é educar para a igualdade, para as relações saudáveis, para a segurança sobre os limites e o consentimento em relação ao próprio corpo. É educar para o respeito, para a prevenção de ofensas, para o questionamento. Educação sexual requer repensar toda a forma de educação violenta e não respeitosa contra a criança, talvez por isso seja tão difícil a sua aceitação. Requer ensinar a criança a lidar com o corpo de forma positiva, explorando suas sensações de prazer, sem precisar de sentir vergonha, pois é a partir da vergonha que se formam os pactos de segredo na situação de violência sexual. É a vergonha de ser descoberta que faz a criança calar e esconder. Educação sexual ensina a criança a dizer não e a ouvir-se e respeitar a negação quando ela se sente desconfortável. Passar à criança este poder de consentimento irá auxiliá-la a perceber quando uma relação se torna abusiva. Educação sexual ensina à criança os limites do seu corpo e do corpo do outro. Ensina que a criança não “tem que” cumprimentar com beijo toda a família ou sentar no colo de alguém se ela não se sente confortável para isso. Ajuda a criança a perceber que não deve guardar segredos que envolvam toque, beijos, ‘festinhas’ no seu corpo nem de alguém. Educação sexual leva a criança a entender que se alguém tocar em seu corpo de maneira que lhe cause medo, vergonha, nojo, dor, incómodo, um adulto de confiança sempre desejará saber e que se isso acontecer, a criança não terá feito nada de errado. Em poucas palavras, de forma bem resumida, esta é a Educação Sexual que eu acredito e defendo.

Quais deviam, face à situação geral da criança, e à situação particular da criança na pandemia, ser as prioridades de Cabo Verde, para uma infância inclusiva, feliz, e com bons frutos?

Se em Cabo Verde fosse garantida a cada criança a possibilidade de ser criança na sua infância, tantas preocupações futuras seriam desnecessárias. Que as crianças fossem crianças, somente. Com saúde, educação, segurança, afecto. Parece tão básico, não é? Mas para muitas crianças, é tão distante, utópico. Uma infância feliz já é inclusiva e já traz meio caminho andado a dar bons frutos na vida adulta. Mas é preciso pensar na criança pela criança que é e não pelo adulto que será. Não precisamos queimar etapas. Quando não respeitamos o processo de desenvolvimento de uma criança, estamos a ser violentos. A autonomia forçada só irá gerar pessoas cheias de medos, inseguranças, carências. A infância precisa ser uma época de descobertas, de surpresas, construções, de prazeres, uma época onde acumulamos o nosso arsenal de saúde mental que alimentará toda uma vida. Ela não precisa mesmo de ser uma corrida, uma competição, um tempo de cobranças nem para as crianças, nem para os pais, nem para os Professores. Amadurecer é um processo que precisa ser consolidado e não acontece pela via da frustração. Proteger, amar e respeitar. Aos meus olhos, os verbos essenciais para uma infância saudável, para gerar seres humanos saudáveis, seja em Cabo Verde, seja em qualquer ponto do planeta.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1018 de 2 de Junho de 2021. 

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Autoria:Sara Almeida,6 jun 2021 8:30

Editado porSara Almeida  em  7 jun 2021 14:10

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