“Eu era magrinha. Mas a minha avó e a minha mãe já as conheci cheiinhas. Depois de ter o primeiro filho comecei a engordar. Como não queria ser gorda, comecei a ir ao ginásio. Emagreci um pouco, mas não tanto quanto queria. Comecei também a fazer dieta e, então, durante algum tempo estive bem”, conta Carlisa, de 39 anos.
Entretanto, devido a um período mais conturbado da sua vida, deixou de ir ao ginásio e desleixou-se com a alimentação. Foi antes da pandemia. “Não posso culpar a pandemia, embora ela tenha tornado mais difícil ‘entrar nos eixos’”. Foi também nessa altura que o seu sobrepeso se aproximou quase da obesidade.
“Estava com um IMC de quase 27 (devia ser menos de 25)”. Por vaidade, mas também com medo de ter diabetes, doença de que a avó padece e que muitas complicações lhe tem trazido, decidiu fazer alguma coisa. E de há meio ano para cá, criou uma rotina de exercícios físicos diários e dieta. Já conseguiu emagrecer 5 kg. Hoje, com 70 kg e 1,67 m de altura está quase a sair da linha “laranja” do sobrepeso. “Pela minha experiência o mais difícil vai ser manter, mas estou confiante”, diz.
País a engordar
Carlisa está entre os quase 30% da população cabo-verdiana, entre os 18 a 69 anos, que apresentam excesso de peso.
Uma percentagem apurada pelo IIº Inquérito de Doenças Não Transmissíveis (IDNT II), realizado em 2020, pouco antes do confinamento (não há estudos que contemplem a pandemia e impacto), e no qual foi possível conhecer o índice de massa corporal da população.
Mostra o estudo, que 44.2% dos adultos em Cabo Verde apresentam excesso de peso e obesidade, e 14,3% estão já na obesidade.
O Inquérito, cujo relatório deverá ser apresentado em breve, permite fazer uma comparação com o anterior (IDNT I), de 2007, e mostra também que houve um aumento da prevalência do excesso de peso e obesidade, em todas as faixas etárias analisadas.
De acordo com esse primeiro IDNT, cerca 26% dos inquiridos tinham sobrepeso e 11% obesidade. Ou seja, na altura, mais de um terço dos adultos (em concreto 36,2%) sofria de “sobrenutrição”. Hoje é quase metade.
Este é, incontornavelmente, um fenómeno que preocupa as autoridades sanitárias. A obesidade “para além de ser uma doença em si, é um factor de risco para a maior parte das doenças crónicas, nomeadamente para a diabetes e a hipertensão”, entre outras, observa a coordenadora do IDNT II, Emília Monteiro. Além da Massa Corporal, durante o Inquérito foi também medido o Perímetro Abdominal, “um indicador, mais do que da obesidade, de risco de doenças cardiovasculares”, sublinha.
Os riscos são, pois, reconhecidos. “Em Cabo Verde, apesar de não temos dados sobre a relação entre a obesidade e as doenças crónicas não transmissíveis, as informações provenientes da GLOBAL BURDEN OF DISEASE STUDY (GBD, 2019), mostram que os hábitos alimentares inadequados dos cabo-verdianos foram o sexto factor de risco que mais contribuiu para a perda de anos de vida saudável”, destaca por seu turno Rosa Semedo, Secretária Executiva para Segurança Alimentar e Nutricional, do Ministério da Agricultura e Ambiente (um dos principais parceiros do Ministério da Saúde na questão do excesso de peso).
Entretanto, alguns dados em particular merecem destaque.
Mulheres e idosos
“Quando estratificamos por sexo a situação é mais critica na mulher, com 54,9% de excesso de peso e obesidade e 22,5% obesa”, resume Rosa Semedo.
Porquê elas? O próprio metabolismo feminino, uma maior quantidade de massa gorda (para assegurar a capacidade reprodutiva), entre outras razões “biológicas” ajudam a explicar a maior prevalência. Mas não justificam tudo. Há também factores sociais e ambientais a ter em conta.
Por exemplo, de acordo com o INDT II, as mulheres são também, na verdade, mais sedentárias do que os homens e quanto fazem exercício são actividades de intensidade mais moderada.
Em 2007 (IDNT I), os dados mostravam que 28% de mulheres e 25% dos homens estavam com sobrepeso e, 14,6% de mulheres contra 6,5% de homens estavam obesos.
Outra conclusão comum a todos os estudos é que a prevalência de excesso de peso na população cabo-verdiana é maior entre os idosos, e tende a subir consoante a idade, ou seja, quanto mais idade, mais gordura.
Crianças e adolescentes
“Os meus filhos não têm sobrepeso. São até bastante magrinhos. Mas eu vejo que na escola deles há cada vez mais crianças ‘fofinhas’. Não me lembro, na minha infância, de ser assim. Mas também não me lembro de comer ‘matutano’, e agora até para lanche na escola levam”, conta Carlisa.
O INDT II (tal como o primeiro) não incidiu sobre as crianças e adolescentes, tendo tido como objecto de estudo a população dos 18 aos 69 anos. É porém possível encontrar dados da infância no “Estado Nutricional da População Cabo-verdiana – Avaliação Antropométrica”, resultante do Inquérito às Despesas e Receitas Familiares,2015, lançado pelo Instituto Nacional de Estatística em 2018.
Segundo esse relatório estatístico, 18% das crianças com menos de 5 anos já apresentavam risco de sobrepeso e 9% já estavam com pré-obesidade.
Em termos de taxa de prevalência em crianças dos 0 aos 11 anos, mostrava-se que a taxa era de 12%, no que toca ao excesso de peso e 6,5% eram já obesas (18,5%, portanto, estava acima do peso recomendável).
Por outro lado, “o grupo etário onde se registam as prevalências mais baixas é o grupo dos adolescentes, com 7,0% (sobrepeso) e 1,7% (obesidade)”, lê-se no Relatório do INE.
Não há dados posteriores a 2015. Também não há estudos que mostrem o impacto da pandemia da COVID-19 na obesidade.
Maus hábitos
Mas, olhando para o historial das balanças, afinal, porque estamos a ficar mais gordos?
“A obesidade é complexa e multifactorial. Entre os factores associados, destacam-se: hábitos alimentares inadequados, sedentarismo, factores culturais, socioeconómicos, psicológicos, e ambiente obesogênico. Além disso, é importante destacar as especificidades genéticas de cada indivíduo, que influenciam no ganho de peso corpóreo”, resume Rosa Semedo.
Na questão dos hábitos alimentares, há que realçar que, a par com a transição epidemiológica (das doenças infecciosas para as crónicas), a transição demográfica (a pirâmide demográfica está a inverter-se), entre outras, está também a transição alimentar e nutricional
“A transição nutricional também já se fez e agora vamos tentar corrigir e reeducar as pessoas”, alerta Emília Monteiro.
Em tempos de globalização e afins, a dieta dos cabo-verdianos tem pois mudado, e apesar do aumento de alimentos, a quantidade não é acompanhada muitas vezes de qualidade, em termos nutricionais. Assim, é preciso reforçar que, como explica por seu turno Rosa Semedo, “a obesidade está associada a maior consumo de alimentos calóricos, como açúcares e derivados (bebidas açucaradas, guloseimas, refrigerantes, etc.), fast foods, produtos ultra-processados, que normalmente são mais acessíveis à camada populacional com menor rendimento”.
Obesidade e pobreza
A ideia de que obesidade tem a ver com opulência mostra-se, pois, errada. Pelo contrário, ela tem mais a ver com vulnerabilidade económica.
“É notável a ascensão da obesidade em países em desenvolvimento, como Cabo Verde e outros países africanos”, aponta a técnica do MAA.
Um relatório publicado pelo Banco Mundial, em Fevereiro de 2020, por exemplo, mostra que mais de 70% dos 2 mil milhões de indivíduos com sobrepeso e obesidade do mundo vivem em países de baixa ou média renda.
Os estudos internacionais mostram ainda, conforme continua Rosa Semedo, “a vulnerabilidade do grupo feminino e a dinâmica da obesidade na pobreza.”
Também, a coordenadora do INDT II, Emília Monteiro aponta a correlação peso/ camada social.
“A maior parte das pessoas com nível de obesidade muito grande, neste momento, pertencem a uma camada social mais baixa”, corrobora.
A tendência é comprar produtos que saciem rapidamente a fome, muito calóricos.
“A quantidade de calorias recomendadas sobrepassa o recomendado. Triplica, às vezes, mas a maior parte dessas calorias, são calorias vazias, ou seja, calorias que dão energia, mas não aportam muitos nutrientes. Então o facto de uma pessoa estar com sobrepeso não quer dizer que nutricionalmente esteja bem”.
Contudo, a médica especialista em Medicina Preventiva e Saúde Pública alerta para outros factores que têm de ser levados em conta na malnutrição.
Um deles tem a ver com as prioridades. Por exemplo, uma peça de fruta não é tão cara como uma bebida alcoólica, ou mesmo um refrigerante. Mas a preferência vai muitas vezes para estas últimas.
O gosto de cada um, também conta. E outro factor, a referir, é a facilidade de consumo.
“Acabamos por introduzir uma camada enorme de comida industrializada no mercado, as pessoas sentem que é mais fácil, é mais rápido, e acabam por consumir o que já está feito.
Então são vários factores que implicam a decisão de uma pessoa consumir, ou não, uma alimentação mais saudável” resume.
Além disso, a própria literacia nutricional não é muito elevada.
“As pessoas ainda não têm ainda muita consciência do malefício de uns produtos e benefícios de outros. Por exemplo, a media de consumo em Cabo Verde é 3,2 peças de frutas e vegetais por dia, quando o recomendado é 5. Ou seja, estamos muito aquém do recomendado e a percepção que as pessoas têm é que consomem bem”. O mesmo para o consumo diário de sal: sendo que o recomendado é 5 gramas, a média diária é de cerca do dobro.
Uma geração
Tal como todas as outras acções de promoção de saúde também o combate ao excesso de peso e obesidade implica vários intervenientes e, claro, tempo.
“Eu digo sempre que são mudanças de gerações”, refere Emília Monteiro. Isso quer dizer que muitas vezes não se consegue ver o impacto no curto prazo. “Acabamos por dizer que não surte efeito”, o que a longo prazo não é bem assim.
Para começar, neste combate, urge a já referida reeducação alimentar, que permita, também, comer bem a pouco custo.
Um exemplo, é o maior aproveitamento dos produtos agrícolas, como as folhas de alguns vegetais que hoje se deitam fora, mas são muito nutritivas e já fizeram parte da alimentação rural.
Outro passo importante é ajudar, pela literacia nutricional, a definir prioridades, ao mesmo tempo que se reeduca a parte cultural.
“A qualquer visita, se é adulto, oferecemos uma bebida alcoólica que é bem mais cara do que uma maça. Mas oferecer uma maça não faz sentido. É uma questão cultural. Portanto, como disse, é mudança de gerações”, justifica a médica.
Entretanto, já várias medidas foram tomadas, sendo que muitas estão já em curso. Entre elas está o Programa de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde e parceiros, ou o MexiMexê - Programa Nacional de Actividade Física e Saúde, do Ministério da Juventude e Desporto. Mas é preciso criar, por exemplo, cidades mais amigas do exercício físico. Cidades com ciclovias utilitárias, por exemplo.
A legislação também é importante. Aqui, também já há passos dados e outros em preparação. Entre os últimos está a criação de um regulamento para legislar, numa primeira fase através da proibição, a disponibilização de açúcar, sal e gordura.
“Ainda não é controlar na parte da produção, mas pelo menos a disponibilização”, adianta Emília Monteiro.
Pequenas acções acabam por ter muito impacto, considera.
Quanto a medidas legislativas já tomadas há, por exemplo, a proibição da venda de doces junto às escolas. Uma lei que ninguém cumpre, nem fiscaliza.
“A própria sociedade deve ser o fiscal dessas acções. A própria escola não devia permitir isso, no recinto escolar”, adverte Emília Monteiro.
Ademais, sendo uma mudança de gerações (e, entenda-se por geração considera-se 25 anos), a apostas tem mesmo de ter especial atenção, na verdade, nas crianças e portanto as escolas.
Também Rosa Semedo, apresenta um conjunto de medidas contra a obesidade, ressaltando que “as medidas de mitigação devem basear sobretudo nos factores de risco, através da promoção da alimentação e estilos de vida saudável”.
Entre essas medidas aponta a produção de alimentos comunitários, bem como reforçar a rotulagem nutricional. A sobretaxação de alimentos ultraprocessados e “regular a comercialização, propaganda, publicidade e promoção comercial de alimentos e bebidas ultraprocessados”, são outras que indica.
E também para Secretária Executiva para Segurança Alimentar e Nutricional, a aposta nas escolas é fundamental. Assim, aponta como medidas que devem ser tidas em conta: o aumento do acesso e consumo de alimentos saudáveis nas escolas, nomeadamente frutas e vegetais e a Introdução (e reforço) de questões de educação alimentar e nutricional no currículo escolar.
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Considera-se que uma pessoa padece de obesidade quando o Índice de Massa Corporal (IMC) é superior a 30kg/m2. De acordo com o Banco Mundial, desde 1975, a obesidade quase triplicou e é actualmente responsável pela perda de 4 milhões vidas todos os anos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1037 de 13 de Outubro de 2021.