Qual é a situação energética do país?
Estamos num contexto de crise energética à escala global. Cabo Verde faz parte deste mundo e sente esse impacto. Mas, excluindo essa situação emergencial, o país tem as bases criadas em relação ao futuro energético, tem um plano que está a ser implementado e que que irá, certamente, preparar e tornar o país mais resiliente a eventuais choques que normalmente acontecem e sobre os quais o país não tem controlo. Respondendo concretamente, digo que neste momento estamos numa situação de dificuldade, mas estamos convencidos de que as políticas e as medidas que estão a ser implementadas vão, não só mitigar a situação, em termos de melhorar a situação energética do país, mas também preparar o país para ser menos dependente de factores externos, como estamos actualmente.
Esta situação a nível internacional, e como disse Cabo Verde não pode ser alheio esta situação, teve como resultado imediato um aumento do custo da electricidade e agora o aumento do preço dos combustíveis. O governo anunciou medidas para mitigar o aumento da electricidade, não poderia ser feito o mesmo em relação aos combustíveis?
Em relação aos combustíveis há uma variação mensal. O preço oscila mensalmente e evidentemente hoje, amanhã ou no próximo mês poderemos ter descidas. E é isto que se tem verificado. Há meses em que há aumento e noutros meses redução. Estamos num contexto em que verificamos três subidas consecutivas, situação derivada do contexto que o mundo atravessa, mas hoje nesse quadro de turbulência, a previsibilidade em relação ao futuro é difícil. Estamos a falar de medidas de redução, mas o próprio mercado, nos últimos dias, registou uma queda significativa de cerca de 4% do valor do Brent, que é a nossa referência para fixação do preço no mercado interno. Se eventualmente essa tendência se mantiver, haverá, naturalmente, oscilações favoráveis no sentido de redução. Mas permita-me explicar, em relação aos combustíveis, e à parte energética de uma forma geral, o início da crise. Essa crise energética começou a ser germinada há um ano e meio, quando houve uma redução significativa do preço, causada pelo Estado de Emergência imposto pela pandemia que parou tudo. O preço dos combustíveis caiu significativamente. Com a retoma das actividades começa a haver um aumento da procura e a oferta, que tinha sido suspensa para se ajustar à demanda, não acompanhou ainda esse processo, não acompanhou a procura. Esse desfasamento é que é o principal factor em relação à tendência altista do preço de combustíveis. Esse ajuste vai-se fazer progressivamente, por isso nós acreditamos que a situação que temos é circunstancial e, no caso do combustível, é mesmo mensal, de periodicidade mais curta. Acreditamos que podemos, se tudo correr normalmente, regressar rapidamente à situação de preços mais baixos.
Isto leva-nos à questão da transição energética, para o aumento da utilização das energias renováveis. Foi um processo que conheceu um crescimento relativamente acelerado numa fase inicial, mas entretanto não tem havido grande evolução. Quando é que se dá próximo passo?
Quando falamos de alterações podemos dizer que estamos a construir um novo sector energético. E aqui estamos, de facto, a construir um novo sector energético. Há várias peças que terão que ser construídas. Investimento na capacidade de produção, na melhoria de infra-estruturas estratégicas como a infra-estruturas de rede, infra-estrutura de armazenagem, que é um imperativo para Cabo Verde, o quadro legal e institucional. Há um conjunto de medidas que terão de ser construídas e implementadas de forma articulada. Os
dois primeiros anos foram de planeamento e estruturação dos planos de acção e de mobilização de recursos. A parte da operacionalização acelerada estava prevista para 2020, mas a pandemia suspendeu tudo. As actividades estão a ser retomadas agora. Penso que o ano de 2020 pode ser considerado um período atípico em que não havia procura e agora o processo está a ser retomado. As metas fixadas no nosso plano, de alcançar em 2025 os 30% e ultrapassar em 2030 os 50%, vão ser mantidas, numa perspectiva de aceleração que é o que queremos fazer agora para compensar o período COVID que teve efeitos, não só na execução e implementação das actividades que estavam em curso, mas também no próprio mercado. Estamos a avançar no domínio das renováveis. Queremos é acelerar esse processo para compensar o período de suspensão de um ano e meio de pandemia. Para se poder perceber o ritmo e a complexidade da introdução de mais energias renováveis no país, nós, neste momento, queremos passar dos 20% de penetração de energias renováveis verificados em 2018 e, considerando os investimentos em curso, daqui a dois anos queremos chegar a 26% para nos permitir, em 2025, chegar aos 30%. Temos projectos em curso que nos permitem alcançar essas metas. Estamos a falar de cerca de quase 45 megawatts de capacidade de produção. Esses 45 megawatts representam cerca de seis milhões de contos de investimentos. Isto significa que por cada 1% de penetração renovável temos, em média, cerca de um milhão de contos de investimentos. É o que está a ser feito, com vantagens evidentes, uma vez que a produção renovável além de reduzir a dependência do país relativamente aos combustíveis fósseis, também vai contribuir para reduzir o custo da electricidade, porque é uma produção competitiva.
Quando é que nós, como consumidores, vamos sentir uma redução do preço da electricidade por causa do aumento das energias renováveis e consequente redução do consumo de combustíveis fósseis?
Podemos dizer que hoje já se estão a sentir esses efeitos, só que menos, porque, globalmente, a produção de electricidade não dependente de combustíveis fósseis representa cerca de 20%. Isso mostra não só a injecção na rede em grande escala de produção, mas também da própria micro-produção para autoconsumo. Por exemplo, temos empresas, instituições e até particulares que apostaram na micro-produção para autoconsumo e que, neste momento, têm a factura reduzida, ou seja, pagam menos por efeito do consumo evitado. Isto é, consomem menos energia da rede do que aquilo que consumiriam se não tivessem um sistema de micro-produção para auto-consumo. Respondendo concretamente à sua pergunta: já se sentem os efeitos, mas ainda não o suficiente, porque temos ainda um nível de penetração reduzido. Estamos a querer aumentar e com os projectos em curso vamos reduzir ainda mais essa dependência. Mas mesmo assim, quando falamos de 30% continuaremos 70% dependentes de combustíveis fósseis que em função das flutuações afectam o preço internamente. Acreditamos que, já num horizonte de médio prazo, em 2030 teremos já mais de 50% de energias renováveis. Aí vamos ter menos muito menos impacto porque menos de metade da electricidade é produzida a partir de combustíveis fósseis. É um processo progressivo. Porque é que não se pode fazer isso tudo hoje? É como eu disse, há limitações da natureza técnica, mas também de parte económica. Porque Cabo Verde tem experiência de poder fazer chegar próximo da meta de até 30% de energias renováveis sem infra-estruturas de armazenagem. Podemos aproximar-nos. Porque nós temos duas fontes de energia altamente intermitentes: o sol e o vento. Em média, por ano, podemos dizer que temos 8 horas por dia de sol, mas às vezes há nuvens. No caso de Cabo Verde os estudos revelam que são cinco horas e meia por dia em que temos radiação solar para produção de electricidade a partir do sol. Nas outras horas tem haver sistemas de armazenagem para podermos ter energia renováveis fora desse período. Isso exige investimentos. Sabemos hoje que investimentos em infra-estruturas de armazenagens é mais do dobro dos investimentos feitos nas infra-estruturas de produção. Nós também não queremos ter energias renováveis a qualquer custo e isso impõe um ritmo de investimentos de acordo com orientações, que que estão a ser seguidas no nosso plano, de ter máxima penetração renovável possível, mas com mínimo custo possível. É nesse quadro que temos essa progressividade de redução da nossa dependência de combustíveis fósseis. Acredito que o país está na direcção certa na aposta iniciada nas energias renováveis.
Essa taxa de penetração não seria maior se tivesse ouvido uma resposta mais efectiva na micro-produção de que falava?
Entre 2018 e 2021 a capacidade de micro-produção foi duplicada. A estatística feita recentemente demonstra isso. Isso significa que hoje já temos muita micro-produção no país para auto-consumo. Houve também crescimento da micro-produção no sistema de distribuição e bombagem de água. Neste momento, a micro-produção tem sido um factor importante na redução dessa dependência e vai continuar a sê-lo. Daí a política do governo na promoção da sua massificação. Iniciamos através de projectos demonstrativos. Todos os hospitais regionais e centrais do país têm instalados sistemas solares fotovoltaicos o que permitiu obter poupanças na ordem de 30% do saldo da factura energética. E isso incentivou outras empresas, instituições e os consumidores domésticos a adoptar essa solução. Hoje muitas empresas investiram significativamente e vão continuar a investir na micro-produção graças à política de promoção, quer de incentivos fiscais e aduaneiros concedidos a equipamentos para micro-produção, mas também graças a programas de bonificações de taxas de juros para particulares ou micro-produtores que queiram recorrer a sistemas de crédito. Tudo isto está a contribuir para a massificação da micro-produção e acredito que esta dinâmica continuará a avançar. Nós, no plano, estávamos a prever 12 megawatts para serem alcançados em 2030 com a micro-produção. Mas hoje já estamos próximos de 7 megawatts e acreditamos que conseguiremos superar esse valor antes de 2030.
A mobilidade eléctrica é outra das coisas que tem sido muito falada em Cabo Verde. Esta aposta prevê um aumento das energias renováveis, porque se não, não faz sentido apostar na mobilidade eléctrica quando para termos electricidade continuamos a estar dependentes de Fuel e da sua importação para produção de electricidade...
Isso faz parte da nossa estratégia. A mobilidade eléctrica é para acompanhar a transição energética, daí que o plano preveja a aceleração, a massificação da mobilidade eléctrica e a interdição mesmo de importação de veículos térmicos a partir de 2035. Está previsto no nosso plano, como orientação de meta para se deixar de importar veículos térmicos. Isso significa que a partir dessa altura o país terá todas as condições energéticas para termos energias renováveis também no sector de transporte. Mas até lá o processo tem de ser progressivo. Temos um plano, trabalhamos e mobilizamos recursos quer de assistência técnica, quer financeiros para implementação da carta política energética. Vamos, já em Dezembro arrancar a segunda fase de um projecto que prevê essencialmente, nesta fase inicial, apoiar a aquisição de 600 veículos eléctricos e de cem postos de carregamento privados. Prevê também o estabelecimento de uma rede com um mínimo de 40 postos de carregamento a nível nacional em todas as ilhas. Há igualmente um quadro regulamentar que está a ser trabalhado para veículos eléctricos. Há projectos piloto que já estão a ser implementados como é o caso de autocarros urbanos, que numa fase inicial abrange Praia e Mindelo com um autocarro em cada cidade. Outro é a utilização de autocarros escolares eléctricos. São processos que já temos em curso. Depois temos de apostar na capacitação de profissionais, porque temos que ter profissionais capacitados para dar respostas ao que a nova realidade de mobilidade eléctrica exige.
Já é possível, para quem esteja interessado, avançar com a abertura de um posto de carregamento de veículos eléctricos?
A nossa carta da política define que a operação e a exploração dos postos de carregamento públicos será feita por concessão. Vamos lançar um concurso para concessão e exploração dos postos. Na fase inicial não há investimento porque não há mercado. Nós estamos a criar esse mercado. Evidentemente que quem entra na área, o interessado na exploração de concessão, vai ter de fazer investimentos futuros na expansão dos postos de carregamento. Tudo isto está estruturado. Regras, critérios de selecção dos operadores, tudo isto já está feito para até ao final do primeiro semestre do próximo ano concluirmos o processo de selecção dos operadores, a sua contratação, permitindo que, no final do próximo ano, tenhamos os primeiros de carregamento públicos. Até agora, o que está previsto na carta de política energética está a ser cumprido. Os números de veículos eléctricos, a resposta da própria administração pública com as decisões tomadas pelo governo e alguns ministérios que já têm veículos eléctricos, entidades privadas, empresas. Já temos essa realidade não só na ilha de Santiago, mas também no Sal, São Vicente e Boa Vista. Já há veículos eléctricos a circular no país e tem havido uma resposta favorável, porque os veículos eléctricos são uma forma futura de termos menos custos no transporte. A utilização de veículos eléctricos também representa redução de custo na circulação de pessoas.
Quando estes postos de carregamento forem uma realidade já está estabelecido um preço para a electricidade?
Isso vai ser matéria de regulação.
Para terminar vamos falar da questão da certificação energética a nível das habitações. Em que fase é que estamos nesse processo?
Quando se fala na transição energética há duas componentes importantes que é termos mais energias limpas, com menos emissões de gases e, por outro lado, a componente de promoção da eficiência, ou seja, sermos mais eficientes no consumo, na distribuição e também na produção. Na parte do consumo trabalhamos na questão legal, não só na etiquetagem dos equipamentos electrodomésticos para orientar e permitir aos consumidores tomarem melhores decisões em matéria de consumo energético dos electrodomésticos que adquiram. No caso dos edifícios, aprovamos o código de eficiência energética nos edifícios. Isto vai servir de orientação em termos de soluções de construção mais eficientes do ponto de vista de consumo energético, tanto na questão da iluminação, como de temperatura, etc. O código foi aprovado não há muito tempo. Está agora na fase da sua implementação. Várias acções de sensibilização, formação e articulação já foram realizadas, sobretudo com os profissionais da área de construção. É um processo que irá ser gradual. Já criamos também outras condições, que são importantes antes de se avançar e começar a exigir essa certificação, que é a regulação dos serviços de eficiência energética. Podemos ter que ter serviços de empresas na área da auditoria energética e na área também da certificação e, portanto, toda essa moldura base em termos do quadro legal institucional já está criada e começamos a ter empresas interessadas em posicionar-se nessa área.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1041 de 10 de Novembro de 2021.