Vidas perdidas e a prevenção como máxima

PorSara Almeida,28 nov 2021 7:33

Todos os anos os acidentes rodoviários provocam mais de 1,3 milhões de vítimas mortais nas estradas de todo o mundo e um número quase 50 vezes maior de feridos. Em Cabo Verde, embora não haja dados recentes, as estatísticas têm vindo a mostrar uma diminuição de acidentados.

Mas ainda muito há a fazer para se cumprir o objectivo (ainda falhado) de reduzir para metade a mortalidade nas estradas. Para além dos números, a memória dos que partem e a dor dos que ficam mostra a importância desta problemática.

Era véspera de Nhu Santiago, 24 de Julho de 2021. José Júnior Tavares Gonçalves, conhecido por Joel, de 25 anos, caminhava pela estrada de Achada Fazenda, no concelho de Santa Cruz, na companhia de um irmão e de um primo. Joel trabalhava na Praia como electricista, mas vinha passar os fins-de-semana com a mulher e os dois filhos que vivem na localidade. Desta vez, vinha também celebrar Nhu Santiago com a sua mãe e restantes familiares. Um momento sempre de alegria e festa.

Ninguém imaginaria como em segundos esse momento de felicidade se tornaria em um momento de dor e desespero. Nessa noite, na estrada sem iluminação, uma ultrapassagem mal feita causou o atropelamento de Joel. Como testemunhos revelariam mais tarde, a Hilux que o atropelou estava sobrelotada e os passageiros instavam o condutor, alegadamente embriagado, a aumentar a velocidade. Deu-se o embate. Depois, o condutor, assustado e com medo de ser agredido pelos familiares da vítima ou pela população, fugiu. Porém, horas depois, ainda antes do amanhecer, apresentou-se na esquadra local.

Alcides Sanches, outro irmão de Joel, lembra que quando recebeu a notícia, não acreditou. Só quando a irmã lhe ligou em prantos, inconsolável, percebeu que era verdade. Joel fora colhido por uma viatura. Polícia e ambulância tardavam, contaram-lhe, e o acidentado foi levado para o hospital de Santa Cruz por um carro que prestou socorro. Daí, e como estava a perder muito sangue, foi encaminhado para o hospital da Praia. Entrou em coma, e foi operado à cabeça. O cérebro tinha sido lesionado.

As informações dos médicos às vezes alimentavam a esperança, outras, retiravam-na. A família do condutor da Hilux, conta Alcides, esteve presente também no hospital procurando ajudar, lidando com a tragédia como podia.

Após uma semana, as máquinas foram desligadas e Joel foi declarado morto. O luto continua. O caso está na Justiça.

Ano negro

Celebrou-se no passado dia 21, o Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada. Também neste mês de Novembro, a 30, assinala-se em Cabo Verde o Dia Nacional de Segurança Rodoviária. A data, recorde-se, foi escolhida em memória daquele que é considerado o mais trágico acidente de viação registado no país. O acidente, ocorrido a 30 de Novembro de 2001, na localidade de Monte Vaca no concelho da Praia, causou 16 mortos e dois feridos graves.

Não há dados públicos sobre o número de mortes em Cabo Verde no último ano (Até à data de fecho desta edição e apesar dos pedidos do Expresso das Ilhas, não foi possível apurá-los). Mas uma breve pesquisa sobre as notícias de acidentes mostra-nos parcialmente a problemática. Só no mês de Junho, além de Joel, foram noticiados, pelo menos dois acidentes com vítimas mortais e vários feridos, no Sal e no Fogo.

É do Fogo, aliás, que surgem os poucos números já tornados públicos este ano. Em Julho, e após mais um óbito na estrada, ocorrido a 4 desse mês, o Comando Regional da Polícia Nacional mostrava-se preocupado e garantia estar a acompanhar a situação, que “não é normal” tendo em conta anos anteriores, conforme o comandante regional.

Em declarações à Inforpress, o comissário Hermínio da Veiga avançava que, no 1º Semestre do ano, a ilha tinha registado 79 acidentes graves, contra os 58 registados no mesmo período de 2020. Dos acidentes resultaram 58 feridos, mais 33 que no período homólogo, e nove vítimas mortais, mais oito que no igual período de 2020. Nas estatísticas não consta um indivíduo acidentado em São Filipe, mas que veio a falecer na Praia.

O “elevado número” de mortos, avançou ainda, deve-se ao acidente de 18 de Março na localidade de Achada Furna, com seis óbitos e sete feridos.

Posteriormente, a 10 de Setembro um novo acidente na ilha elevou para 10 o número de vítimas mortais. Mais 9 do que no ano transacto…

A nível nacional, sem números concretos é difícil saber se 2021 foi também um ano negro para todo Cabo Verde. E de qualquer forma, o ano transacto, devido à pandemia e constrangimentos na mobilidade, poderá não ser um bom ponto de comparação.

A julgar pelos acidentes noticiados, o país poderá ter falhado o cumprimento do objectivo de Desenvolvimento Sustentável que estabelecia a redução para metade de “o número de mortos e feridos devido a acidentes rodoviários” até 2020.

Porém, na verdade, o falhanço é relativo, tendo em conta que apesar das oscilações, o país tem vindo a registar, lado a lado com um aumento exponencial de viaturas (o país tem agora 81 mil veículos em circulação, quando em 2016 tinha cerca de 66 mil), um decréscimo das mortes na estrada, bem como da média de vítimas mortais por 100 mil habitantes.

Em 2015, por exemplo, houve 35 vítimas mortais e 871 feridos, em 3.478 acidentes. Números melhores do que em 2012 quando o número de vítimas mortais foi de 50, os feridos 1026, e os acidentes 3.715. Depois, em 2016 houve um aumento para 41 vítimas, mas o número de mortos caiu para 30, em 2017 (o número mais baixo registado nos últimos, em mais de uma década, pelo menos).

Quantas vítimas, afinal?

Em todo o mundo, a cada hora, há 155 óbitos em acidentes rodoviários. Ao fim de um ano, são 1,35 milhões, as vítimas. Os dados, tomados mundialmente como referência, são do último Relatório Global da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o Estado da Segurança Rodoviária, datado de 2018.

Mas nem tudo é mau. O relatório documenta que, apesar do aumento no número total de mortes, as taxas de mortalidade (proporcionais ao tamanho da população) se estabilizaram nos últimos anos.

No que toca a Cabo Verde, o relatório traz os dados relativos a 2016. Nesse ano, houve um aumento de mortes face a 2015. Foram assinalados, como referido, 41 óbitos (mais seis do que no ano anterior), o que dá uma média de 25 mortes por 100 mil habitantes. No relatório anterior, publicado em 2016, eram 26,1.

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Porém, salvaguarda-se, há provavelmente uma subnotificação de base estatística: a OMS estima que o número de mortes em Cabo Verde nesse ano tenha sido de 135 (e não de 41, como registado). Algo que terá a ver com a forma como os óbitos são contabilizados.

Seja como for, a sinistralidade tem de ser vista muito além das estatísticas, apostando é na prevenção. E para isso é preciso olhar as causas.

Além dos condutores

As causas de acidentes mais apontadas pelas autoridades desde sempre são os comportamentos negligentes dos condutores, como uso de telemóveis, incumprimento das regras de trânsito, consumo de álcool, excesso de velocidade, ultrapassagens imprudentes…

É pouco frequente que se fale das leis e condições das infra-estuturas rodoviárias. As estatísticas mais antigas mostravam que 95% da sinistralidade em Cabo Verde tinha a ver com falhas decorrentes do condutor, e apenas 5% com problemas nas infra-estruturas, sinalização ou automóveis. Hoje o discurso de prevenção tende também a focar-se nesses aspectos extra-condutor. (Ver caixa)

Na verdade, a própria OMS no seu relatório destaca que apesar dos números sombrios, no mundo (tal como em Cabo Verde) e mesmo com o aumento da população, há uma estagnação dos acidentes. Isso terá a ver com uma melhor legislação quanto aos principais factores de risco (como excesso de velocidade, álcool, etc); infra-estruturas mais seguras (como pistas exclusivas para ciclistas e motociclistas) e melhores padrões de segurança para veículos.

São medidas que contribuíram, segundo a OMS, para a queda das mortes no trânsito em 48 países de renda média e alta.

“No entanto, nenhum país de baixa renda demonstrou redução no total de óbitos, em grande parte por falta dessas medidas”, acrescenta.

Por exemplo, África, no geral, continua a ter uma taxa de risco de morte no trânsito de 26,6 por 100 mil habitantes quando na Europa é de 9,3. Isto, quando o continente africano tem apenas 3% dos veículos matriculados a nível mundial.

As referidas regras que devem ser tidas em conta foram alvo de uma avaliação, por país, no Relatório sobre o Estado da Segurança Rodoviária da agência da ONU. E há vários itens em que Cabo Verde não é bem avaliado. Por exemplo, o limite máximo de concentração de álcool no sangue era em 2016 de 0,08 g/l. e diferenciado para condutores. Entretanto, com a lei do álcool o limite já passou a 0,005.

O país era também mal avaliado na questão do uso do cinto de segurança (que só é obrigatório nos lugares da frente), nas normas aplicadas aos veículos (por exemplo a Norma de impacto frontal) e ainda na segurança infantil, apontando falhas a nível dos sistemas de retenção de crianças.

Em 2018, o Ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, anunciava a intenção de rever o Código de Estrada com vista a integrar algumas práticas e recomendações da ONU, nomeadamente na introdução de novos limites e restrições em algumas áreas. Entre as medidas estão também previstas a de redução do limite de velocidade dentro das localidades; baixar a tolerância de álcool no sangue (inclusive para zero nos condutores profissionais) e introduzir a carta por pontos. O novo código ainda não foi aprovado, avançou.

Sobreviventes

Quando se fala da sinistralidade rodoviária, claro que as vítimas mortais são o destaque. Mas não menos importante são as vítimas que ficam marcadas para toda a vida devido a um acidente. Por ano, estima-se em 50 milhões os feridos ou incapacitados devido a acidentes de viação, de acordo com a OMS. Em Cabo Verde são milhares. Em 2015 foram 871 feridos, em 3478 acidentes ocorridos.

Um deles é Mário Moreira. No dia 15 de Agosto de 2015 a vida deste condutor de hiace, conhecido por Zinho, mudou para sempre. Era feriado e a bordo da usa hiace iam 15 passageiros.

Na localidade de Monte Negro cruzou-se com um condutor de ligeiro que seguia “com excesso da velocidade, completamente embriagado e fora da faixa de condução”.

O carro bateu na hiace, junto à porta do condutor, tão forte que a carrinha “capotou”. Seguiu-se o alvoroço dos assustados passageiros. Entre as vozes estava a de Zinho que “de imediato” sentiu que não podia mexer o corpo. Pediu ajuda gritando que iria morrer. O carro de bombeiros demorou a chegar, lembra Zinho.

Não viu o que se passou com o outro veículo, mas testemunhos relataram que o automóvel parou numa ladeira abaixo. Além do condutor, estavam no carro mais três pessoas. Uma viria a falecer.

Para Zinho começava um longo processo. Esteve 15 dias internado no hospital da Praia, sem que conseguisse movimentar o corpo. Daí, foi evacuado para Portugal, onde foi operado. Informaram-no de que tinha uma lesão da coluna. Reagiu bem ao tratamento, iniciou o processo de fisioterapia e regressou a Cabo Verde ao fim de seis meses. As despesas das suas consultas foram cobertas pelo seguro do automóvel. Aqui continua com a fisioterapia e já recuperou quase todo o movimento do corpo.

Zinho ainda não consegue andar, mas acredita que um dia vai conseguir. Está esperançoso. Mas também revoltado. O condutor do automóvel leva a sua vida normal. E nem ele, nem nenhum familiar procurou Zinho para, sequer, lhe dizer umas palavras de conforto.

Vítima de um grave acidente de viação, Zinho sabe o custo que isso tem. E apela a todos os condutores para não dirigirem “bêbados” e que moderem a velocidade…

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Década de Acção pela Segurança no Trânsito

Se o actual cenário se mantiver, na próxima década, os acidentes de trânsito devem causar 13 milhões de mortes e deixar 500 milhões de pessoas lesionadas. A maior parte destas vítimas será de países de baixa e média renda.

Para reverter o cenário, a OMS arrancou há cerca de um mês com a “Década de Acção pela Segurança no Trânsito 2021-2030”. A meta, alinhada com os ODS, é prevenir pelo menos 50% das mortes e lesões no trânsito até 2030. Como base da açcão, a agência e parceiros, desenvolveram um Plano Global para a Década de Acção.

Entre as iniciativas defendidas estão acções para tornar as caminhadas, as bicicletas e o uso do transporte público seguros; medidas que garantam estradas, veículos e comportamentos seguros, e a promoção de um bom serviço de emergência. Também aponta recomendações para o fortalecendo as leis, aumentando a fiscalização, redesenhando as vias rodoviárias e usando dados concretos. Na essência, este Plano – que serve para orientar os planos nacionais, sejam governamentais, sejam da sociedade civil - pede aos parceiros que sejam mais ousados na acção, “usando as ferramentas e os conhecimentos adquiridos na última Década de Acção para mudar de rumo”. 

Com Neidy Pereira (estagiária)

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1043 de 24 de Novembro de 2021.

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Autoria:Sara Almeida,28 nov 2021 7:33

Editado porFretson Rocha  em  28 nov 2021 18:11

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