Foi em 2016 que Corsino Tolentino, combatente da Liberdade da Pátria, diplomata, intelectual, e figura de proa em Cabo Verde, foi diagnosticado primeiro com a doença de Parkinson. Afinal, diagnósticos posteriores viriam a revelar que se tratava, especificamente, de Paralisia Supranuclear Progressiva (PSP).
Começou então um diário da sua vida com a doença. Como o próprio escreve na introdução do livro: “Testemunhar é a forma que encontrei de exigir ao Estado de Cabo Verde a mínima protecção às mulheres e aos homens que sofrem da Doença de Parkinson (DP) e suas variantes e para que cresça a intervenção consciente nos projectos de pesquisa onde, em geral, o paciente não é tido nem achado”.
Resgatando para o “dono da doença” a última palavra, de Janeiro de 2019 a Fevereiro de 2020, Corsino Tolentino relata a sua vida com a PSP, que encara com realismo, mas sem dramatismo. E no seu diário vemos a doença a progredir, até gastar “toda a capacidade” dos seus dedos.
“Porém, ainda não usei todo o meu pensamento!”, lê-se na última frase. A 10 de Fevereiro de 2020. E a sua causa continua.
Mais do que um diário
“O livro é um testemunho pessoal, que também serve esse propósito de mecanismo terapêutico para o paciente autor, em si, enquanto relata a evolução da doença, mas tem um objectivo muito mais extenso, muito mais alargado, que no fundo é um objectivo solidário. Em estilo muito característico do meu pai, ele quis que essa potencial tragédia se transformasse num acto benéfico para a sociedade cabo-verdiana em geral”, explica Leida Tolentino, sua filha.
Assim, do livro - que alia ao lado pessoal, muita informação científica, nasceu um projecto mais amplo: o projecto Doenças do Movimento em Cabo Verde (DDM-CV), que visa “estabelecer alguma conexão entre os portadores desse tipo de doença em Cabo Verde para que possam sentir-se apoiados e informados, mas também para que possam reivindicar os direitos do paciente”.
O DDM-CV actua, acrescenta, essencialmente em três vertentes: a literacia, advocacia e a pesquisa.
Neste momento, o projecto não tem ainda qualquer apoio institucional, contando apenas com a equipa base, Leida e o seu pai, e “aliados” da comunidade, nomeadamente pacientes, familiares e alguns profissionais de saúde, que têm ajudado a difundir informação importante inclusive na página e grupo de Facebook do DDM-CV.
O arranque tem sido feito com baby steps (pequenos passos), mas encontros-chave estão já a ser realizados e espera-se “que em breve já possamos dizer que temos apoio institucional e que o projecto já avança em todas as suas vertentes incluindo a pesquisa”, prevê Leida Tolentino.
Reivindicações
Na linha dos seus objectivos, o DDM-CV pretende realizar acções específicas junto ao Estado, para tratar a facilitação de acesso a medicamentos e serviços de apoio multidisciplinares.
Uma das reivindicações é a actualização da lista nacional de medicamentos “aliás, associada a várias doenças, e não só às doenças do movimento, para evitar que o doente esteja condicionado à importação temporária do medicamento”, aponta Leida Tolentino.
De acordo com promotora do DDM-CV, o processo actual é inadequado e extremamente burocrático, exigindo vários procedimentos junto ao médico neurologista, à farmácia, à entidade reguladora independente da saúde (ERIS)…
“Já tivemos uma audiência com o director de gabinete dos assuntos farmacêuticos, o dr Bruno Santos, visando que o seu gabinete possa dar resposta a itens específicos como a actualização da lista nacional de medicamentos, a eliminação da restrição de dosagens aplicáveis a todos os medicamentos e a participação dos médicos neurologistas e representantes da indústria farmacêutica nas discussões e tomadas de decisão referentes à actualização periódica da lista nacional de medicamentos”, conta.
Uma outra questão que deve merecer maior atenção é o apoio prestado, manifestamente insuficiente, a nível das terapias múltiplas e contínuas necessárias (como a fisioterapia, a terapia da fala, nutricionistas, psicólogos).
Em termos por exemplo da fisioterapia, o número de sessões cobertas pelo INPS “é insignificante. O doente fica sem apoio a esse nível durante praticamente meio ano”, refere.
“Portanto, há necessidade de uma abordagem multidisciplinar por parte das entidades responsáveis, e de acesso à informação e a recursos correspondentes”, resume.
Não tendo cura, a Paralisia Supranuclear Progressiva e outras doenças do movimento, requerem pois, tratamento multidisciplinar para, não só, retardar os efeitos da doença, como para apoiar o paciente emocionalmente.
“Há um risco grande de se cair em depressão e ter outros problemas não motores, associados à doença. Nesse aspecto temos muito ainda que fazer, e isso encaixa-se na vertente advocacia do projecto que visa precisamente essas acções junto ao Estado”, que temos vindo a referir.
“Actualmente os pacientes com doenças de movimento em Cabo Verde, independentemente do seu nível socio económico, enfrentam um desafio enorme em relação a esses últimos aspectos”, reforça.
Paralisia Supranuclear Progressiva
Mas o que é, afinal, a Paralisia Supranuclear Progressiva (PSP)?
Como explica Leida Tolentino, é um tipo raro de doença do movimento que embora tenha sintomas comuns com a doença de Parkinson, também tem distintos e é muito mais rara (apenas 6 a 7 casos por 100.000 indivíduos). Este tipo de Parkinson atípico é também mais agressivo na sua evolução.
Os sintomas distintos, que ajudam a fazer o “diagnóstico diferencial, são a dificuldade de movimentos oculares e também a menor resposta à medicação padrão, usada em casos de Parkinson”. Também pode ocorrer que o sentido de olfacto seja reduzido. “Não foi o caso do meu pai”, conta.
Quanto aos sintomas comuns com o Parkinson, destacam-se a rigidez muscular, a lentidão de movimentos, chamada bradicinesia, e a perda de equilíbrio, com quedas frequentes. Na verdade, os estádios iniciais da doença é facilmente confundida com DP.
A doença, de nome estranho e só por si assustador, é, além de rara e também por causa disso, quase desconhecida. Na família de Corsino Tolentino, ninguém nunca tinha ouvido falar dela, nem sequer Leida, que não sendo neurologista nem exercendo funções clínicas é neurocientista e, portanto, tem conhecimento profundo do sistema nervoso.
Entretanto, o projecto DDM-CV pretende, além de dar a conhecer a doença de Parkinson e esta Paralisia Supranuclear Progressiva, abordar outras doenças do movimento de foro neurológico e degenerativo, como a Coreia de Huntington, Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), Atrofia Multisistemas (AMS), e as distonias.
Família
O paciente, “o dono da doença”, é a figura central. Mas a verdade é que as vítimas das Doenças do Movimento, são em número muito maior. O impacto de quem convive com os doentes é grande.
“Inestimável”, define Leida. “Envolve todos os aspectos da vida familiar, desde o aspecto físico ao psicológico, ao emocional, ao social”.
“No nosso caso, a minha mãe e a minha irmã, é que têm estado na linha da frente, 24h, 7 dias por semana, com o meu pai, a dar-lhe apoio. Apesar de termos um cuidador que também ajuda nas actividades da lida diária, levantar-se, lavar-se, vestir-se, comer, etc, a família em si é a principal rede de apoio”, conta.
A família, aliás, está constantemente presente no diário de Corsino Tolentino, como elemento fundamental para o apoio na doença, destacadamente o suporte emocional.
“O meu pai diz a uma altura do livro que o apoio dos amigos e da família tem sido importante. Às vezes fazem-no esquecer que a PSP existe”, observa Leida Tolentino.
No livro, também o médico neurologista Mário Rosa (um dos clínicos que acompanhou Corsino Tolentino), no seu testemunho, sublinha o lado da família. “Além de ter de viver com a progressão da doença e antecipação dos períodos difíceis que se avizinham, tem de gerir o dia a dia de aumento de tarefas associadas ao acompanhamento dos doentes”, aponta. O efeito burn-out, como anota, é uma consequência conhecida. E para o evitar é importante a divisão dos cuidados e partilha das preocupações e estratégias.
Assim, todo o projecto DDM-CV reforça a empatia para com os familiares destes pacientes, e directa ou indirectamente, pelas vertentes (a literacia, advocacia e a pesquisa), tem um efeito multiplicado de apoio.
Algumas descrições da doença
Voltando ao diário de Corsino Tolentino, aí é possível ver (ler) algumas manifestações e evolução da doença.
A PSP, como outras doenças do movimento, provoca rigidez muscular. A cara torna-se esfíngica, “tenho saudades das minhas gargalhadas”, lamenta a certa altura o autor.
O risco de quedas acentua-se, e o livro regista um episódio de queda no domicílio do qual resultou um traumatismo que levou a internamento hospitalar. A obstipação, de que o autor também se queixa, é comum.
O corpo fica pesado como chumbo e o movimento vai parando “Hoje , teimosas estão estas pernas!”
Há dificuldades em mover os olhos: “o meu olhar é frontal, o que quer dizer que os amigos passam ao lado, porque os meus olhos deslocam-se para a direita e para a esquerda com imensa lentidão”. Ocorre também “encerramento palpebral involutário” e “outras anomalias oculares como olhos secos e vermelhos, visão turva, e uma certa fotofobia”.
Lentidão de movimentos e alterações da postura estão presentes. “Estou também a desenvolver uma postura inclinada- devido à deficiência de equilíbrio e coordenação motora – e uma caminhada lenta e arrastada”.
E mais. Sobre a Memória: “Senti a memória falar. Posteriormente, ela reactivou-se e a do passado é muito boa e a do presente normal, havendo por vezes momentos de algum desorientamento”, escreve. Paralisia progressiva: “Sinto que a mente é forte mas o corpo está a tornar-se fraco”. A fala, obviamente também é afectada: “Assisto à incapacidade que se vai instalando de controlar os movimentos do corpo e da fala”…
O diário prossegue. Termina, depois de finda a última entrada, com as conclusões. E o último parágrafo é “Dizem que cada um tem a sua caminhada… Este é o testemunho de uma que não escolhi. Mas tenho uma certeza, é preciso alguém continuar para se melhorar a vida dos que padecem e identificar a cura!”
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“A Vitória é Hoje. A minha relação com a Paralisia Supranuclear Progressiva” tem prefácio de Germano Almeida e conta com um capítulo sobre as Doenças do Movimento em Cabo Verde, escrito pela neurologista Antónia Rodrigues Fortes. Recolhe ainda testemunhos do Professor doutor em neurologia Mário Miguel Rosa e do especialista em medicina interna Osvaldo Lisboa Ramos. As filhas, Nancy e Leida assinam os Posfácios. A edição é da Ilhéu Editora, São Vicente.
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Lançamento
A Vitória é Hoje. A minha relação com a Paralisia Supranuclear Progressiva foi apresentado na passada sexta-feira, dia 26, no Hotel Praia Mar. Juntamente com o lançamento decorreu a II conferência do Projecto Doenças do Movimento (a primeira foi em Abril), subordinada ao tema “Doenças do Movimento em Cabo Verde: Testemunhos e Terapias”. O evento, que contou com intervenções presenciais (nomeadamente do director nacional de saúde, Jorge Barreto) e via internet, seguiu a mesma linha do livro, juntando a uma partilha de várias informações sobre o tema, com a emoção e testemunhos pessoais de amigos de Corsino Tolentino.
Pretendeu-se, como contou Leida Tolentino ao Expresso das Ilhas, criar um “espaço de debate, aprendizagem, partilha e de reivindicação e que, após este evento, cada participante possa reflectir sobre o seu papel específico no alcance dos objectivos do projecto e possa agir nesse sentido”.
A gravação do evento está disponível na página de Facebook do DDM-CV.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.