“A sociedade tem dificuldade em compreender que os seres humanos não conseguem lidar com a natureza”

PorNuno Andrade Ferreira,5 dez 2021 8:56

Mudanças climáticas e globalização na génese de ameaças à saúde pública mundial. Cidades com grande concentração de pessoas e baixa cobertura vacinal são preocupação na actual pandemia.

Catedrático de Parasitologia e perito da Organização Mundial de Saúde (OMS), Santiago Mas-Coma gostava que o dinheiro investido para a recuperação económica pós-pandemia fosse canalizado para fazer as transformações de que o mundo precisa, na resposta às alterações climáticas e a tudo o que elas representam. Numa entrevista gravada antes da confirmação do primeiro caso da variante Omicron, o especialista espanhol lembra que o mundo está interligado e que o que acontece num país, mesmo que distante, rapidamente ressoa do outro lado do planeta.

Em Tenerife, ilhas Canárias, à margem da participação no Campus África, Mas-Coma apela a que se aproveite a oportunidade criada pela actual crise sanitária.

“Com base científica, não podemos desaproveitar uma situação como esta. Quero dizer, dificilmente vamos ter uma situação em que se tenha que investir tanto. Aproveitemos o dinheiro, colocando-o em sítios oportunos, tendo em conta o que se está a passar com as mudanças climáticas”, refere.

O professor da Universidade de Valência sublinha que, se é verdade que as alterações nos padrões climáticos não deixam ninguém de fora, são as populações dos países pobres quem mais sofre.

“Quem tem uma casa com paredes bem grossas, quem tem um ar condicionado em casa, se a temperatura subir aos 50 graus, carrega no botão e lá dentro estão 20 graus”, ironiza.

“É o que estamos a ver nas grandes migrações no continente africano, onde as secas estão a começar a originar grandes problemas”, complementa.

O investigador, que levou aos bolseiros do Campus África uma conferência sobre a relação entre mudanças climáticas e doenças infecto-contagiosas, alinha com as conclusões do último relatório do Painel Intergovernamental Sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) de que, aqui chegados, a aposta tem que ser na mitigação e adaptação.

“Fazer com que isto [as mudanças climáticas] aconteça de forma mais lenta, não à velocidade a que tem acontecido e que isso nos dê tempo de implementar e melhorar as energias renováveis”, espera.

Na análise dos actuais e futuros desafios de saúde pública, Santiago Mas-Coma vai mais longe, defendendo que estes estabeleceram as suas bases mesmo antes das alterações no clima, impulsionados pela própria globalização, que trouxe maior movimentação de pessoas, transportando consigo agentes patogénicos de um região para outra.

As interligações e interdependências são de tal forma grandes que, como nos demonstra a pandemia de SARS-CoV-2 e como exemplificam outras doenças infecto-contagiosas, uma ameaça num país pode rapidamente tornar-se um problema à escala planetária.

“Esta é a realidade e quer dizer que o que tens hoje no Vietnam, daqui a duas semanas ou dois meses repercute-se nos Camarões. O que se passa na África do Sul, amanhã reflecte-se no México. O mundo voa para cima e para baixo, os grandes cargueiros navegam para cima e para baixo”, insiste.

Covid, variantes et al.

Em meados de Novembro, quando conversou com o Expresso das Ilhas, Mas-Coma desconhecia que, dias antes (a 9/11), tinha sido recolhida uma amostra, a um cidadão sul-africano, que daria origem à identificação da variante B.1.1.529, baptizada Omicron, anunciada a 26 de Novembro.

Na altura, o perito da OMS reconhecia que a evolução favorável da covid-19 dependeria, em grande medida, do não aparecimento de variantes que suscitassem preocupação. Então, confessava-se preocupado com as grandes cidades, habitadas por milhões de pessoas e com baixa taxa de cobertura vacinal.

“África, alguns países em vidas de desenvolvimento do continente asiático, onde há imensa gente, também países da América do Sul”, ilustrava.

A vacinação, com a adaptação das vacinas às mutações do vírus, continua a ser a melhor arma para fazer face à ameaça representada pelo ‘novo’ coronavírus.

“Os países desenvolvimentos têm que enviar vacinas para os países em vias de desenvolvimento. Há que ajudá-los na distribuição e aplicação de vacinas”, apelava.

O aparecimento de antivirais, desenvolvidos pela indústria farmacêutica e que aguardam a aprovação das agências reguladoras para chegarem ao mercado, são outra esperança que se abre, permitindo o tratamento da doença na sua fase inicial, sempre que as vacinas se mostrarem insuficientes.

“Entre as vacinas, que apesar de não serem bloqueantes [da transmissão] estão a revelar-se muito eficazes, as medidas de protecção e, agora, estes medicamentos, poderemos continuar a funcionar”, acredita.

Presença habitual na comunicação social espanhola, Santiago Mas-Coma diz que, até agora, e desde que a pandemia começou, apenas se equivocou uma vez: quando achou que o regresso à “normalidade” seria mais lento e gradual, resultado do “respeito” pelo vírus e pela natureza.

“Equivoquei-me. Pensava que a demoraria mais tempo, mas estamos iguais a antes. A sociedade actual tem dificuldade em compreender que os seres humanos não conseguem lidar com a natureza”, desabafa. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1044 de 1 de Dezembro de 2021.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,5 dez 2021 8:56

Editado porDulcina Mendes  em  6 dez 2021 14:28

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