Para a nossa Democracia, o luto

PorAntónia Mosso,27 jan 2022 16:19

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Para a nossa Democracia ser aquela Democracia que, mesmo em permanente processo de construção e reconstrução, seja o garante dos nossos direitos e nos instigue para a sua defesa, teremos obrigatoriamente de fazer o luto.

Comemorar ganhos que na prática não são sentidos; vangloriar da democracia comparando-a com realidades incomparáveis; reiterar durante décadas o discurso do que a democracia precisa em vez do que vai ser feito para dar resposta ao que ela precisa; invocar os incontáveis atributos da Constituição; ou lembrar-se de dar “ acolhedoras palmadinhas nas costas da imprensa” em datas comemorativas, não levará a lugar algum. Porque oculta-se a verdade. E a verdade e a transparência institucional são as pernas que poderão, ainda que com muito esforço, nos tirar desse buraco de hipocrisia e irrealismo em que se enfiou o país. 

Para que tenhamos aquela democracia que almejamos. Aquela que nos faz sentir “mais gente” (dignos) e ter gosto de cá estar, viver e procriar; aquela que nos move a apropriar dos problemas coletivos, ter sentido de pertença à comunidade e responsabilidade, teremos de fazer o luto. E o luto, tem dessas peripécias, exige morte. Corte. Perda. Para que a nossa democracia no papel, passe a ser vivida, respirada por todos os poros das nossas relações sociais, teremos de cometer um homicídio coletivo. Sim, teremos de ser convidados a “pegar nas armas”. Matar, fazer o luto, e renascer. 

Matar a quem? Não. Nada disso. Matar o quê. 

Matar a mentira. A desinformação. A infoexclusão. A alienação e ignorância da população. Situação mantida a ferro e fogo pelos sucessivos governantes. Ou com açaimes à comunicação social ou com camufladas manobras de obstrução do seu trabalho. Como contrapartida, nasceria uma imprensa verdadeiramente livre, investigadora, apta a manter a população esclarecida, devidamente informada, mais interventiva, exigente e defendida de manipulações. A verdade precisa sair do poço, nua, implacável e omnipotente.

Matar o nepotismo e a partidarização da função pública. Ocupando os cargos públicos por pessoas que, por vezes, a única aptidão possuída é a fidelidade ao partido, prescinde-se da competência, do mérito, do espírito crítico, da denúncia do que vai mal, para dar lugar a cúmplices, cegos servidores do poder e defensores do seu tacho. Uma forma reles, pouco criativa, porém manifestamente eficaz de controle, de opressão e medo. É urgente que nasça (ou renasça) uma nova narrativa, limpa, e liberta de vícios. 

Matar o abuso de poder. O abuso de poder ou a torpe perceção de que por ocupar determinado cargo está-se acima das leis, das instituições e das normas sociais existentes tem ameaçado o Estado de direito. Caminha-se para um Estado antiético, com uma classe governativa indisciplinada, arrogante, deseducadora e enervada quando é chamada a prestar contas. Não admite ser escrutinada. Se as leis não protegem a população, o primeiro a ir ao tapete é a justiça. Seguem-se as liberdades individuais, a igualdade e os direitos humanos. Na verdade, não há valores democráticos que se mantenha ileso ao mau uso do poder. Se se nasceu torto, há que endireitá-lo. 

Matar o medo. O medo, o pináculo de todos os males. Medo de opinar publicamente sobre os assuntos. Medo de intervir. Medo de protestar. Medo de fazer uso da liberdade e dos direitos. Medo. Medo. Medo. Onde há medo, há ódio e ressentimento. Pode até haver uma certa paz, mas é ilusória. É podre. Não serve. Assenta no silenciamento de pessoas, no conformismo e na resignação. Não é difícil compreender a existência desse medo generalizado. Dessa transversal ausência de coragem para dizer onde deve ser dito o que precisa ser dito; ou de fazer o que precisa ser feito. De exigir o básico de um regime democrático. 

Se goza de boa saúde a mentira; o nepotismo e a partidarização da função pública; o abuso de poder; e se despencamos desamparados pela não observância das leis; o medo é tudo o que sobra, cresce e reproduz-se enquanto a democracia, por sua vez, revela-se nublosa e tonta. 

É sabido que em regimes autoritários o exercício da coragem paga-se com a violência, com a vida, ou a privação de liberdade. Em “democracias coxas” como a nossa paga-se retirando o prato às famílias. Com “facadinhas nas costas”. Com ostracismo subtil. É vergonhoso. Não aceitemos o medo. 

Para a nossa Democracia, o luto. A morte de tudo o que a corrompe e desvirtua. O abate à hipocrisia, à fantasia, ao populismo, à corrupção, a uma gestão da coisa pública apostada no medo, clientelismo e no obscurantismo. 

Merecemos o fortalecimento de todos os mecanismos de controle e fiscalização do poder. Merecemos viver no dia a dia os valores democráticos até que se torne algo orgânico e inatacável. Cultivar o livre pensamento, o debate. O protesto. A participação ativa e o envolvimento inclusivo de todos em prol do bem comum. 

Então para isso é preciso matar décadas de vícios confortavelmente instalados? Possivelmente. 

Para Étienne de la Boétie não precisamos fazer nada. Rigorosamente N-A-D-A. 

Étienne de la Boétie, francês, humanista, no século XVI, com 18 anos escreveu o Discurso da servidão voluntária, um verdadeiro hino à liberdade e reflexão sobre as preferências humanas para escolher a servidão em detrimento da liberdade. Questiona a tirania e a disposição da maioria em servir de forma voluntária aos tiranos, mesmo se sentindo prejudicados, acabando por fortalecer o seu poder. Como rotura ao cenário de abusos, arbitrariedades e medo, propõe que para derrubar os tiranos, nem sequer é preciso combatê-los. Não é preciso defender-se deles. Serão destruídos no dia em que o país recusar a servi-los. Não é necessário tirar-lhes nada, basta que ninguém lhes dê coisa alguma. Não é preciso que a população faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que nada faça contra si próprio. Basta não compactuar com o que não concorda. 

É o embrião do princípio da resistência pacífica como estratégia de luta para mudar tudo o que indigna, manipula, oprime e diminui os cidadãos. Estratégia de luta adotada ao longo da história por ativistas como Henry Thoreau, Mahatma Gandhi, Martin Luther King e outros. 

O estado da nossa democracia e da realidade política, económica, social e cultural do país não nos satisfaz. Sentimo-nos infelizes e marginalizados. Maltratados por um “sistema” perverso, obscuro e tóxico que se mantém até agora hirto e firme porque é vantajoso para uma minoria. E que é por nós todos apoiado. 

Para que a nossa “dita Democracia” passe a ser vivida, respirada por todos os poros das nossas relações sociais, teremos de cometer um homicídio coletivo. Sim, teremos de ser convidados a matar. Matar, fazer o luto, e renascer. Ou quem sabe até não fazer nada, mas no sentido de boicotar, não alimentar as más práticas. Dá trabalho? Dá. Será preciso homens e mulheres de fôlego? Com certeza que sim. Mas como já dizia o poeta o homem é do tamanho do seu sonho e com a democracia não é diferente. 

Mindelo, 27/01/ 2022 Antónia Môsso

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Democracia

Autoria:Antónia Mosso,27 jan 2022 16:19

Editado porA Redacção  em  30 jan 2022 23:13

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