Os custos invisíveis do roubo

PorSara Almeida,27 fev 2022 8:39

Por ano, há em Cabo Verde milhares de caçubodis, furtos, assaltos a residências. Para além dos danos e perdas monetárias, são actos que, em menor ou maior grau, têm também custos psicológicos para as vítimas. Geralmente o “trauma é leve, e ultrapassa-se sem ajuda, em curto tempo. Outras vezes, é algo que condiciona a qualidade de vida e bem-estar das vítimas por longo período. Depende da personalidade e estado emocional das vítimas, bem como da intensidade do acontecimento, e cada caso é, pois, diferente. Mas importa olhar esse lado esquecido da chamada pequena criminalidade e o preço pago por quem a sofre.

Carla já perdeu a conta às vezes que a roubaram. Por duas vezes, uma de manhã cedo, outra ao fim do dia, em diferentes zonas da cidade da Praia, levaram-lhe a carteira de esticão. Houve também aquela outra vez, em que a meio da tarde, e enquanto fazia uma chamada, lhe roubaram o telemóvel. “Pedi para deixar os cartões e o ladrão assim fez. Foi educado”, brinca. E também aqueloutra vez em que numa bomba de gasolina, enquanto abastecia, lhe roubaram a mala que tinha no banco de trás. A última vez foi assaltada em casa sem dar conta. Os larápios conseguiram retirar as suas janelas e entrar. E houve mais… Mas a vez que ainda hoje revive com terror foi a do penúltimo roubo sofrido. Ter-se-ão passado já cerca de sete anos e o evento continua a condicionar a sua vida. Nesse roubo, que aconteceu por volta das 20h de um dia de semana, uma amiga deu-lhe boleia até à entrada da rua onde vivia. Saiu do carro e seguiu pela pequena estrada, aparentemente deserta. Parou em frente à de um vizinho, com quem queria falar, e mesmo quando ia chamá-lo sentiu que lhe agarravam o pescoço. Gritou por instinto e de imediato foi agredida com uma pedra. Caiu. Na queda, o seu corpo ficou por cima da bolsa que tinha. Um dos assaltantes continuou a bater-lhe enquanto o outro tentava libertar a carteira. Desmaiou.

Carla acordou no hospital, levada por uma vizinha que a encontrou inconsciente na rua. Tinha o rosto muito magoado e muita raiva.

“Andei à procura de uma arma para comprar e matar o próximo que me assaltasse. Jurei que o próximo morria”, lembra.

As feridas no rosto passaram, não chegou a comprar uma arma, mas o medo ficou. Ainda hoje, tem receio de andar na rua depois de escurecer.

Nunca procurou apoio psicológico para ultrapassar o trauma que reconhece ter.

Tal como Carla, muitas vítimas também nunca procuram ajuda psicológica. É, aliás, percepção dos psicólogos que, face ao número anual de casos de roubos a procura deveria ser maior.

Essa opção tem a ver essencialmente com o facto de as pessoas pensarem que “têm ferramentas suficientes para lidar com a situação”, considera a psicóloga Paula Azevedo Ramos. Geralmente têm-nas, de facto. Outras não.

Impacto diferente

Qualquer roubo, explica a psicóloga, é uma forma de violentar a pessoa lesada. Assim, há sempre impacto quando uma pessoa é vítima de um roubo na via pública ou em casa. Esse impacto, contudo, depende essencialmente de dois aspectos: o primeiro é a própria pessoa e sua resistência individual, o outro é a intensidade do evento.

“Consequências sempre haverá, mas a forma como a pessoa as digere,” a forma lida com elas, vai “depender desse binómio”, reforça.

E normalmente o “indivíduo pode, com as ferramentas próprias que já tem, ultrapassar o impacto”. Ademais, essa resistência individual também se vai condicionando com o nosso próprio contexto de vida.” Como há muitos casos de roubo em Cabo Verde, “é bem provável que, mesmo antes de ter sido uma vítima directa, já tenha sido uma vítima indirecta”. Ou seja, toda a gente já ouviu relatos e desde cedo a pessoa começa a precaver-se, “a aumentar as resistências interiores, porque sabemos que qualquer um de nós pode ser vítima”, esclarece Paula Azevedo.

Porém, quando o binómio não é equilibrado, surge necessidade de apoio. Uma necessidade que esbarra numa resistência ao apoio psicológico, algo que não acontece quando se fala de feridas físicas.

“Quando nós estamos a falar de complicações a nível do foro psicológico, as pessoas têm menos propensão até em identificar a necessidade de apoio”, destaca a psicóloga. Assim, geralmente, os apenas casos chegam ao sistema hospitalar quando há algum episódio de emergência (por exemplo de histeria) ou quando as consequências do trauma já são muito vincadas e é evidenciada a necessidade do apoio, o que obriga a um trabalho mais moroso.

Também há psicólogos que actuam junto à polícia, mas não são propriamente accionados para este tipo de crimes. A nenhum dos entrevistados alguma vez foi oferecido este serviço durante a queixa (a Carla, designadamente, nem sequer no Hospital).

“A atenção é pouca. Temos sim psicólogos que actuam junto da polícia, que fazem esse trabalho, mas há a necessidade de se fazer mais, de se aprofundar”, aponta por seu lado Paula Azevedo.

Apesar desse défice, sublinha também, é através da polícia e hospital que muitos pacientes são encaminhados para a psicologia, onde não raras vezes fazem apenas uma consulta. Também há muita gente, lembra, que nem passa pelo hospital nem sequer apresenta queixa.

Clara

Clara também já tinha sido roubada algumas vezes. Já lhe roubaram o carro, que foi encontrado dias depois, já lhe roubaram um fio de ouro por esticão e a carteira, do mesmo modo.

Mas foi há cerca de meio ano, num domingo à tarde, que vivenciou um assalto que ainda a põe muito nervosa. É algo que “não se esquece.“

Eram umas 15h quando, depois de ir dar uma volta, regressou a sua casa, uma vivenda onde vive longos períodos de tempo sozinha, quando o namorado está fora. Ao chegar viu a fechadura da porta de entrada no chão. Passaram-se apenas umas fracções de segundo. Enquanto tentava perceber a razão para tal, a porta abre-se, alguém a puxa para dentro de casa, fecha a porta, e encosta-lhe uma faca ao pescoço.

A sua rua tem vários vizinhos, mas aquela hora estava deserta. Ninguém viu.

O ladrão, cujo rosto não conseguiu registar, ordenou-lhe que lhe desse dinheiro e telemóvel. Clara não reagiu, lembrou-se que sempre dizem que o melhor é não o fazer, e com a calma que lhe foi possível respondeu que dinheiro não tinha, mas deu-lhe o telemóvel.

O larápio disse que ia sair e ordenou-lhe que ficasse quieta. Que não saísse. Assim foi.

Quando ficou sozinha, todo o seu corpo começou a tremer.

Passado um tempo, conseguiu sair de casa e pedir ajuda a uma vizinha. Nem sabe como. “Descontrolei-me completamente psicologicamente e o meu corpo não reagia, só tremia”. Entretanto, a vizinha chamou a sua família e a polícia.

O ladrão tinha já arrumado várias coisas para levar: computador, televisores, entre outras coisas, tudo estava embrulhado em lençóis de Carla.

“Revirou-me a casa toda”, lembra.

Apanhado em flagrante deixou todo o saque para trás, incluindo um saco com uma t-shirt e ferramentas que terá usado para arrombar a fechadura.

Levou apenas o iPhone mas a sua perda foi o mínimo. Acabaria por gastar muito mais dinheiro a fortificar a casa com mais grades, sensores e câmaras. Durante um mês não conseguiu viver na sua casa. Deitou fora várias coisas em que ele poderá ter tocado e lavou várias vezes outras. E o dano psicológico foi incomensurável.

A cena que viveu vinha-lhe constantemente à cabeça e todo o tratamento contra a ansiedade, desenvolvida durante a pandemia, que andava a fazer junto a uma psiquiatra, sofreu retrocesso. Retomou consultas. “Eu não conseguia lidar com aquilo”, admite.

Até hoje, quando o namorado não está, dorme com uma faca debaixo da almofada e qualquer barulho a acorda. O pequeno percurso entre o carro e a casa é feito a medo, e liga alguém, quando tem de sair e entrar em casa à noite, para confirmar a sua segurança.

Não consegue esquecer a “sensação de impotência, de que aquilo vai acontecer outra vez e não vai ser possível controlar”, que sentiu.

“Em termos psicológicos fica sempre lá, eu não me esqueci, não se esquece, aprende-se a lidar. Tudo isso é cansativo ... “, desabafa.

Assaltos em casa, principalmente nos casos, como o de Clara, em que há confrontação com o assaltante, costumam ter um impacto significativo nas vítimas. Não raras vezes as pessoas, se tiverem opção, recusam-se voltar a morar na casa nos primeiros tempos. Contam como é stressante o processo apressado de entrar em casa a salvo e reforçam “trancas na porta”.

O impacto é, pois, geralmente muito maior na vítima do que o assalto na via pública, reconhece a psicóloga Paula Azevedo Ramos.

Tem a ver com a sensação de violabilidade. Temos aqui, outra vez, o binómio [personalidade vítima e intensidade acontecimento], porque quando estamos em casa, a nossa resistência individual é mais condicionada. Estamos na nossa zona de conforto, então qualquer coisa que nos venha a atingir, tem um impacto maior na nossa personalidade”. Isto para além da dúvida que fica: “se este entrou, será que outro não entra também?”

A condição psicológica de base de uma pessoa também é importante na forma como lida com estes acontecimentos.

“Se uma pessoa já tem por si só algum distúrbio ou algum factor psicológico agravante, a sua resistência é menor. Então, vai vivenciar a ocorrência de uma forma diferente”. A pessoa pode deslocar o sentimento para outras situações e o acontecimento pode potenciar outras doenças, ou os transtornos de base que já tinha. Foi o que aconteceu com Clara e a sua ansiedade.

Assim, no seu caso, está a receber apoio também pelo trauma sofrido no médico psiquiatra que já a seguia. Geralmente, porém, os casos são apenas seguidos por um psicólogo, embora o trabalho entre ambos os tipos de profissionais muitas vezes se intercale. Ou seja, por vezes é o psiquiatra que num primeiro momento trata o paciente e depois o envia para o psicólogo “dando conta de que a necessidade da pessoa é mais a nível psicológico”, como explica Paula Azevedo.

Outras vezes, em casos um pouco mais extremos, em que a pessoa apresenta transtornos vários e até sintomas depressivos, e que precisa de medicação, é o psicólogo que remete para o médico especialista.

Assim, há quem não precise de apoio psicológico, há quem apenas precise de psicoterapia e em casos mais graves, há mesmo quem deva ser atendido pelo psiquiatra. Cada caso é um caso.

Luís

Luís foi assaltado duas vezes. A primeira foi “culpa” dele, considera. Na companhia de um amigo, seguiram por uma rua que sabiam ser perigosa depois do anoitecer. Um rapaz apontou-lhes o que parecia ser uma pistola, mandou-os encontrar ao muro e roubou-lhes carteira e telemóvel. Não resistiu, e embora se lembre do evento, fala dele com um tom até bem-humorado.

“Culpei-me a mim mesmo por esse primeiro assalto. Sabíamos perfeitamente que não se podia ir por ali”, reitera.

O segundo assalto foi pior. Eram 2h da manhã, quando, ao estacionar o carro à porta de casa, foi surpreendido por um indivíduo que lhe apontou uma arma à cabeça. Disse que lhe desse as chaves do carro. Luís respondeu: “Faz o que quiseres, o meu carro não levas”. A discussão podia ter acabado muito mal, mas Luís nem pensou nas eventuais consequências. “Não tive tempo para ter medo”. Felizmente, o assaltante acabou por desistir e levou-lhe “apenas” o telemóvel. No rescaldo do assalto Luís só pensou em sair da Praia. “Isto não é sítio para criar os meus filhos”. Mas o tempo foi passando e esse pensamento também. De qualquer forma não considera ter ficado “traumatizado”. Continuou a fazer a sua vida normal e tentou relativizar o evento. “Fui eu. Podia ter sido outra pessoa qualquer, aconteceu. Não dei muita importância. Acho que o truque é mesmo não dar muita importância … “Continuou a fazer a vida normal…

Qualquer pessoa, homem ou mulher, pode estar sujeita a um trauma em caso de assaltos, principalmente à mão armada. Mas a verdade, que deve ser referida com cuidado para não afastar ainda mais o sexo masculino do apoio psicológico, é que há diferenças de género nas vítimas da dita “pequena” criminalidade.

“As mulheres tendem a ser mais cautelosas na reacção”, aponta a psicóloga. Quanto ao que se segue, “como eu disse, isso vai depender muito da resistência do indivíduo”, das suas ferramentas interiores. E o contexto vivido, onde todos já foram várias vezes vítimas indirectas, ajuda a relativizar, como o Luís.

A maior parte não precisa de ajuda psicológica, como fomos referindo. Quanto aos que precisam, encontram ainda a barreira de uma sociedade que não vê esse apoio com a verdadeira dimensão que deveria ter. Ainda falta educação para a saúde e derrubar preconceitos no que toca à saúde mental. E perceber que com uma boa rede de apoio, se minimizam os danos psicológicos e mentais, mesmo que causados por acontecimentos que já vemos como normais. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.

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Autoria:Sara Almeida,27 fev 2022 8:39

Editado porDulcina Mendes  em  28 fev 2022 15:48

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