Críticas à aparência física. Críticas pessoais no seu trabalho. Críticas à forma como exercem a maternidade. Críticas porque saem. Críticas porque ficam em casa. Críticas porque fazem. Críticas porque não fazem. Críticas que inibem. Críticas que debilitam.
“Na sociedade a mulher tem de ser a mãe perfeita, a profissional perfeita, tem de ser filha, prima, tudo na perfeição. Se não, é atacada e esse ataque vem das outras mulheres”, observa Marisa Carvalho, presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG).
É assim. Tem sido assim. E por isso esta é uma questão que deve ser lançada e deve merecer reflexão. Sororidade é não julgar, mas sim apoiar. E é ainda mais do que isso.
Sororidade
“O que nós entendemos por sororidade tem a ver com empatia”, com irmandade no feminino, explica a presidente do ICIEG.
Isto, continua, não quer dizer que todas as mulheres sejam amigas, nem sequer que gostem uma das outras – “a questão é exactamente fora do círculo privado”. Quer dizer que todas se unam para defender interesses comuns a todas.
Juntas, incentivam-se, apoiando-se ou simplesmente deixando de ser tão críticas umas para com as outras, as mulheres podem alcançar mais objectivos e mais rapidamente.
Ou seja, “a ideia é que as mulheres elevem as outras mulheres, elogiem publicamente, sejam a voz daquelas que não podem ou não têm voz e também ajudem a combater a grande questão social a que as mulheres estão sujeitas”, resume Marisa Carvalho.
Competidoras
Na verdade, “criamos as meninas para se verem como competidoras — não para trabalhos ou conquistas, o que eu acho que pode ser uma coisa boa —, mas para conseguirem a atenção dos homens”, destacou a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, na sua palestra TEDx “Todos devemos ser feministas”.
A competição é instada pela própria sociedade, machista, e ocorre a todos os níveis: do contexto laboral (onde a rivalidade é vincada) à vida social e pública.
Cria-se um antagonismo que enfraquece quando se sabe que “a união fortalece”.
Obviamente, não é possível generalizar. Nem todas as mulheres se confrontam. Como refere Marisa Carvalho “depende muito das pessoas que estão envolvidas” e há boas e más experiências em todas as áreas, contextos e níveis da sociedade.
Mas é preciso chamar a atenção para os contextos onde a sororidade é menor, sendo que no geral, isso acontece em contextos mistos.
“Onde estão mais mulheres juntas é mais fácil haver empatias, alianças e alguma de familiaridade. A sororidade é mais necessária exactamente nos contextos mistos, em que normalmente as mulheres estão mais sujeitas a agressões, a mais pressões por parte não só dos homens, mas da sociedade em geral”, expõe.
Política
Dentre as várias áreas, a política, por exemplo, é uma das mais violentas para a mulheres, o que acaba muitas vezes por afastá-las desses cargos.
Marisa Carvalho acredita o problema da sororidade, aqui, se coloca não tanto entre as mulheres que a exercem, mas em quem as avalia.
“Há uma série de características femininas que normalmente são apontadas e usadas para rebaixar as mulheres e tentar atingi-las, que não são usadas nos homens”, aponta a presidente do ICIEG.
Por exemplo, a imagem dos homens políticos não é posta em causa. Mas as mulheres são muitas vezes avaliadas pela constituição física, pela sua beleza, vestimentas, ou outros aspectos que não interferem no seu desempenho no cargo. E muitas vezes são críticas vindas das próprias mulheres.
Do outro lado, temos a questão das políticas públicas para o empoderamento das mulheres. Ou seja, a sororidade das mulheres-políticas, para com as mulheres no geral, na promoção de leis e medidas de equidade de género. Aqui, a presidente do ICIEG considera que há essa sensibilidade.
“E essa é também a mais valia que as mulheres podem dar. É tentar ajudar e fazer com que, pelo menos, as barreiras que elas tiveram de ultrapassar sejam mais facilitadas para as outras que também as têm ou que possam vir a ter”.
Redes sociais
Tal como várias iniciativas que já decorrem na sociedade civil, também o ICIEG, colocou neste mês de Março, mês da Mulher, a questão da sororidade em destaque.
Um dos principais motivos para trazer o tema para o debate público tem a ver com o que se está a passar nas redes sociais, em que os ataques às mulheres têm assumido grandes proporções.
“Não sei se por causa do anonimato ou da distância, as pessoas têm usado a rede social para atacar as mulheres de uma forma não muito digna”, critica Marisa Carvalho.
Entre os jovens, por exemplo, o ataque assume a forma ciberbullying e é um fenómeno de dimensões que, mesmo sem dados concretos, se sabe serem preocupantes.
Muitas vezes os ataques são por coisas fúteis, como a sua figura física. Mas “isso pode ser uma grande condicionante em várias esferas da vida, principalmente para as jovens. É uma grande preocupação para elas e pode ter consequências graves”, alerta.
Umas e outras
Entretanto, a sororidade, como referido, nada tem a ver com o círculo de amizades. Deve ser extensível da todas as mulheres, mas muitas vezes isso não se verifica, na prática. Em “Cabo Verde e não só”, pessoas que são activistas sociais para a sua “camada” não o são para outras. Podem inclusive ser “opressoras” de outras mulheres.
“Isso não deve ser aceitável”, critica. “Uma empregada não é menos valiosa do que uma deputada, aliás, muitas vezes pessoas que estão em cargos de direcção, só o estão porque há outras mulheres atrás delas que lho permitem. Se assim não fosse também elas não conseguiam”, observa.
Assim, relembra, a sororidade tem de ser para todas as classes.
É uma questão de lutar, não contra os homens, mas contra a pressão social e outros aspectos da questão do género, “sem olhar para as diferenças, mas sim para aquilo que nos une”.
Sororidade em Movimento(s)
Há, hoje, cada mesmo mais movimentos e associações em Cabo Verde em que sororidade é palavra de ordem.
“Eu por elas, elas por mim”
O ano de 2018 foi um ano em que o número de feminicídios foi elevado. Esses crimes chocaram o país, e indignaram também a activista Natacha Magalhães que, juntamente com uma amiga, decidiu organizar uma marcha “para mobilizar a sociedade em torno do fenómeno da violência contra mulheres e meninas”.
Desse evento, nasceu um projecto, mais alargado. A página no Facebook usada para divulgar a marcha foi sendo alimentada, numa acção de advocacy pela causas da igualdade de género e outras questões relacionadas com o empoderamento feminino.
Há dois focos principais: a educação pela igualdade (único caminho para criar a sociedade desejada) e o empoderamento através do conhecimento.
A página é, assim, também usada para passar mensagens e sensibilizar para a importância de educar as meninas “para serem seguras, determinadas, corajosas, que façam escolhas seguras e saudáveis”, e os meninos para “lidarem com as emoções, a respeitarem e ajudarem as meninas, para que no futuro sejam homens que, junto com as mulheres, prossigam com essa igualdade que todos almejamos”.
Sororidade
A sororidade, “exercício de empatia e amor ao próximo” (ou à próxima, neste caso) é também um valor importante desta página.
“Eu posso não conhecer uma mulher, posso não ter por ela nenhuma ligação afectiva, mas sou capaz de colocar-me no lugar dela, independentemente da sua condição social ou económica, erguer a minha voz por todas cujos direitos estejam sendo violados, a sua dignidade sendo posta em causa”, define a activista.
Por exemplo, se uma mulher é alvo de devassa na internet, é importante levantar a voz por ela, “porque quando eu erguer a minha voz por uma estou a fazê-lo por todas que estão na mesma situação”.
Natacha Magalhães não tem dúvidas que é essa união que provoca mudanças positivas. “Quando as mulheres se calam, quando as mulheres não se unem pelas suas causas, as coisas continuam na mesma”.
Como exemplo que sustenta a sua argumentação, aponta o caso da Lei da Paridade, hoje uma realidade graças à união das mulheres parlamentares em torno da mesma, e da forte advocacia realizada.
“A sororidade, a empatia e união entre as mulheres, pelas causas que tocam todas as mulheres, vai fazer com que sejamos ouvidas. Ao sermos ouvidas, seguiremos rumo à igualdade”, resume.
Elas por elas
Para a fundadora da página “Eu por elas, elas por mim”, de facto a “sororidade promove o empoderamento das mulheres”.
Isto porque “quando uma mulher usa a sua voz por outras que não a têm ou não a podem usar, luta pelos direitos das mulheres, acaba por apoiar e dar forças àquelas que vivem oprimidas, que são violentadas, que têm com medo ou são discriminadas”.
Além disso, a troca de experiências, a transmissão de conhecimentos e de informações proporciona a mudança. “A mulher que está numa situação de vulnerabilidade acaba por se espelhar nessa mulher empoderada e é capaz de tomar melhores decisões e fazer as melhores escolhas para a sua vida”, considera.
E, no seu entender, esta defesa dos direitos e conquistas tem de ser mesmo feito entre mulheres. “Tem mesmo que ser elas por elas”. Foi-o no passado, por exemplo, com as sufragistas e continua a ser.
“Quem vai, por exemplo, ter interesse em reivindicar que mais mulheres tenham representatividade na política, nos espaços de decisão? Os homens? Não creio. Eles sempre lá estiveram, sem muito esforço”, refere.
Ou ainda. “quem se vai interessar por trazer para o debate público temas como a discriminação de género, liberdade sexual, alertar e denunciar sobre violências e abusos psicológicos, físicos e sexuais, a violência obstétrica, ou o assédio por que passam mulheres de todas as idades e classes sociais? Os homens? Não creio”.
Aliás, basta ver por exemplo os debates parlamentares para notar que quando são temas relativos às mulheres, ou seja, da agenda de género, estes são lançados quase sempre pelas deputas e são também estas que fazem as intervenções. “Então, ainda faz muito sentido e é muito necessário que sejam mulheres para mulheres”, conclui.
Mulher inspira Mulher
“Vi esta necessidade de realmente nós, as mulheres, termos uma aliança”, começa por realçar a fundadora do Mulher inspira Mulher (MIM), Lúcia Brito.
Havia a necessidade. E havia o momento. Em 2020, Cabo Verde vivia (ainda vive) um período complicado, originado pelos impactos da pandemia na vida das pessoas e economia, e várias mulheres ficaram no desemprego e sem fontes de rendimento. Em Setembro desse ano, em meio das adversidades, nascia então o MIM, que tem como um dos seus valores fundamentais a sororidade e que como objectivo principal ajudar, de alguma forma, essas mulheres.
Como? Usando a Voz da Mulheres para mudar mentalidades, possibilitando, entre outras coisas, o auto-emprego e sustento.
Lúcia Brito seleccionou algumas mulheres, em algumas ilhas, que já antes tinham desenvolvido trabalhos com impacto junto a outras mulheres. Convidou-as a fazer parte do MIM. A recepção foi boa, havia muitas interessadas em participar e ajudar, e começaram a ser definidas as acções. Arrancaram as palestras com temas que foram da VBG à orientação profissional e elaboração de projectos, para apoio na busca de financiamento.
No meio destas e outras acções, um ponto ao qual é sempre dada especial atenção é ao mindset, à mentalidade, uma questão que no entender de Lúcia Brito tem de ser “muito trabalhada no país.” Isto porque, como acredita e faz questão de trazer nas suas mentorias, muitas vezes não se consegue fazer algo apenas devido a entraves auto-colocados.
Então, a ideia é desconstruir os bloqueios. Mostrar que “tudo está na nossa mente” e “tudo depende de nós”. Essa é a primeira atitude a tomar para poder começar algo, considera.
Essa dificuldade em avançar, diz ainda, é mais comum entre as meninas do que nas gerações mais antigas, daí o grande foco nessa geração mais nova, fomentando uma mentalidade de resiliência e confiança.
A mudança de mindset é, portanto, parte basilar do MIM e tal como próprio nome indica, são as mulheres vão inspirar e dar força às outras mulheres. Mindset e sororidade.
Humanismo
Na verdade, destaca Lúcia Brito, quando falamos em sororidade “estamos a falar de humanismo também”.
E embora sororidade seja uma palavra que está na moda, a empatia entre as mulheres sempre fez parte da sociedade, embora talvez se tenha perdido isso um pouco nos dias de hoje, avalia Lúcia Brito.
“Ser mulheres empoderadas tem impactos positivos, mas a emancipação da mulher, de uma forma geral, está também a conduzir a uma maior competitividade entre as mulheres”, analisa, salvaguardando não se poder generalizar tal questão.
Vem mais competitividade e inclusive ataques, principalmente nas redes sociais.
Sinergia
Sobre o elevado número de organizações que trabalham o tema do empoderamento e sororidade, Lúcia Brito reconhece a quantidade. Mas no seu entender há uma dispersão de esforços. Mais do criar vários movimentos ou associações seria mais importante era criar sinergia entre as entidades.
“Todos nós estamos a trabalhar de uma forma isolada, de uma forma independente e pelos mesmos objectivos”, diz, apontando que quando o MIM foi criado houve essa tentativa (até certo ponto conseguida) de “trazer todas as pessoas que estavam a trabalhar já nesta área no intuito de criar essa sinergia” e fazer ouvir a voz das mulheres.
Para Lúcia, porém, a sinergia iria ter impactos mais forte e visíveis, fomentando um trabalho em cadeia que atinge não só as mulheres como toda a sociedade.
“Não tenho qualquer dúvida de que poderemos ter alcançado objectivos muito mais imediatos se todos trabalhássemos em conjunto, mas, mais do que isso, eu vejo que às vezes há uma certa competitividade”, lamenta.
Outros movimentos
Não sendo possível enumerá-los a todos, deixamos aqui outros exemplos de iniciativas que têm por base também a sororidade:
Wake Up, Queen – Criado por Mónica Coelho, este movimento tem por objectivo criar uma rede de mulheres empoderadas, que não aceita a violência. Uma das regras do grupo é “não julgar” as outras. O movimento tem também dado realizado palestras e eventos em que sororidade é palavra de ordem.
Womenise.it – Tem por mentoras Ekvity dos Santos e Sandra Lima e é outro movimento que promove o empoderamento através de meetings e coaching, sempre considerando a solidariedade entre as mulheres. Um dos seus projectos mais recentes é o Nha menstruação, que combate a pobreza menstrual, distribuindo pensos higiénicos às famílias de baixa renda.
“Plus Power” e “Plus Size Life” – Estes movimentos, de São Vicente e da Praia, tem como principal objectivo quebrar os padrões estéticos impostos socialmente e empoderam as mulheres e as meninas acima do peso, ajudando-as a trabalhar a sua auto-estima.