“Temos de parar de julgar e começar a apoiar as pessoas”

PorSara Almeida,4 jun 2022 8:38

Em visita a Cabo Verde, Kate Gilmore, activista e presidente da Federação Internacional do Planeamento Familiar (IPPF), faz vários elogios ao país, em geral, e à VerdeFam, seu membro, em particular, mas apela a um maior respeito pelos direitos e acesso aos serviços por parte de comunidades ainda marginalizadas, como a LGBTi e as pessoas com deficiências. Lei e normas públicas, que são bastante boas, chocam com as normas informais de uma sociedade para as quais a diferença ainda não é totalmente aceite e o sexo continua a ser um tabu enorme. Silêncio não resolve nada, alerta. E, “os adultos têm de crescer no que toca ao sexo”, acrescenta.

Cabo Verde foi o país escolhido para a primeira visita oficial presencial de Kate Gilmore a um país membro. Uma escolha assente em “inúmeras razões”, aponta. Desde logo porque a VerdeFam, elogia, é um dos melhores membros da IPPF. “São muito estáveis e provaram ser muito bem-sucedidos em providenciar serviços. São incrivelmente eficientes”. Ademais, continua, conseguiu “atingir populações que têm muita dificuldade de acesso aos serviços”. Tudo somado, a VerdeFam é vista na IPPF como uma organização com um desempenho exemplar, num continente, África, que é o mais importante para a Federação.

“Então, por todas essas razões, os meus colegas disseram: ‘Kate, tens de aprender rápido, com Cabo Verde’. E eu disse: ‘ok’”.

Temas

Há 27 anos – ou seja desde a sua criação – que a VerdeFam pertence à IPPF e o trabalho é avaliado, pois, de forma muito positiva.

“Fazem muito, com pouco, e graças a mulheres muito fortes e também homens empenhados. Mas a liderança feminina ao longo das últimas décadas tem sido incrível. Imagine-se como deve ter sido há duas décadas e meia falar de contracepção, de infecções/doenças sexualmente transmitidas, combater o HIV! São mulheres de coragem”, louva.

Na visita, que decorreu entre 24 e 28 de Maio a delegação da delegação da IPPF, liderada por Kate Gilmore reuniu-se não só a com a VerdeFam, como com a sociedade civil e o governo, nomeadamente o Primeiro-Ministro, o Ministério da Saúde e Ministério da Inclusão social, no sentido do reforço das políticas de promoção de saúde sexual e reprodutiva.

Aos governantes foram apresentados vários pontos que devem ser tidos em conta nessas políticas. Há por exemplo uma lacuna a nível de dados sobre a deficiência, a comunidade LGBTi e a adolescência (uma lacuna que aliás também foi discutida com o escritório das Nações Unidas em Cabo Verde), que é preciso colmatar, por forma a ajudar “o governo a utilizar os recursos da melhor forma”.

Pessoas com deficiência, LGBTI, jovens, mas também o engajamento dos homens, a educação integral em sexualidade (EIS), o acesso a contraceptivos, foram alguns dos tópicos apresentados, que na verdade se cruzam numa rede interligada de garantia de direitos e acesso universal sob uma mensagem.

“Jovens, pessoas com deficiência, pessoas lutando com a sua orientação sexual… é um pesadelo total em todo o mundo. Temos de parar de julgar e começar a apoiar as pessoas. Esta é a nossa mensagem”, resume.

Os encontros com os decisores políticos serviram, deste modo, para advocacy, mas “uma defesa de interesses com gratidão”, ressalva. Isto porque, reconhece, Cabo Verde é, entre as nações africanas, um farol de empatia e compaixão por pessoas que muitas vezes são marginalizadas. Advocacy com gratidão e, acrescenta, com ambição. Ou seja, “ser ambicioso para as pessoas de Cabo Verde, e em particular aquelas que (ainda] não conseguem aceder a coisas outros tomam por garantidas, em torno da dignidade humana”.

LGBTi

Os direitos das pessoas LGBTi são, como referido, um dos pontos fortes da agenda uma vez que é esta é uma das populações mais discriminadas. Em termos de lei, falta por exemplo permitir um direito fundamental que é a questão matrimonial e que também foi exposta à missão do IPPF pelos próprios jovens com quem se reuniram.

“Há a sensação de que não estão protegidos na lei nas suas relações e desejo de formar uma família, o que é um direito humano. É um direito humano formar família, e é impedido por lei. Essas coisas importam muito”, observa.

Além do casamento há queixas de que a lei não é suficientemente específica em relação a outras formas de discriminação com base na orientação sexual – na educação, emprego, etc…, pelo que – e isso foi falado com o PM – a IPPF gostaria de ver nova legislação a avançar.

Deficiências

Além da LGBTi, outra população com a qual a IPPF e VerdeFam estão preocupadas são as pessoas com deficiências e que representam 15 a 19% da população nacional. A sociedade em geral ignora as suas necessidades. Exclui a sua sexualidade natural.

“Nós, que não temos deficiências, é que somos o problema, porque é ignorância nossa”, refere Kate Gilmore.

Entre mais de 100 mil pessoas com deficiências em Cabo Verde pode assim haver relutância em procurar informação, aconselhamento, cuidados, etc, “sobre como desfrutar do prazer sexual, no contexto da gestão da sua deficiência.”

“Isto não é aceitável. Então, a nossa mensagem é que todas as pessoas têm direito a sentir desejo, a sentir amor, a sentir prazer e não sentir medo ou serem estigmatizadas por causa disso”, defende.

Profissionais do sexo

Durante a estadia em Cabo Verde a delegação do IPPF encontrou-se ainda com profissionais do sexo, outro segmento da população que vê os seus direitos e acesso à saúde e outros serviços comprometidos, no meio de forte estigma social.

“Devias ter acesso à saúde e segurança no que quer que faças. Por isso digo: ‘adultos, cresçam. Cresçam e levem a sério a família humana. Parem com o racismo, com a homofobia, com a discriminação das pessoas”. Não julguem, aceitem, reitera.

Assim, também no que toca às muitas vezes discriminadas profissionais do sexo, é preciso que não tenham barreiras, no seu acesso à saúde, acesso que deve ser universal, e outros serviços.

“Não devem encontrar preconceito e intolerância nos hospitais e clínicas, e devem ter espaços onde possam falar das suas experiências, devem poder ir à polícia denunciar a violência, e ser bem recebidos quando algum crime é cometido contra si. Não deviam temer a polícia, deviam estar confiantes de que os direitos legais serão protegidos e não é o que se sente no momento”, lamenta.

Gravidez na Adolescência

Entretanto, sabe-se que 12% das adolescentes em Cabo Verde tem pelo menos um filho. Ou seja, é uma elevada percentagem, o que representa uma grande preocupação para o país e um custo imenso para a vida dessas raparigas.

Os motivos para a problemática são diversos e de difícil resolução. Ao longo dos anos medidas, como a distribuição gratuita de contraceptivos – aliás, na área da contracepção Cabo Verde tem tido um trabalho “louvável” –, campanhas de sensibilização, palestras nas escolas, etc., têm sido realizadas sem resultados práticos.

O que falha? Antes de mais, uma questão que afecta várias outras áreas: a discrepância entre normas e legislação oficiais e as normas informais. Ou seja, “as normas informais do país, influenciadas também pela religião, concorrem contra a norma pública de acesso à contracepção”. Apesar de uma jovem poder ser sexualmente activa e gerir a sua actividade sexual de modo a não engravidar, é difícil passar essa mensagem num país “com uma forte história da igreja católica, com presença forte da igreja evangélica, que criaram uma agenda diferente e uma mensagem diferente”.

Outro aspecto que influencia a elevada taxa de gravidez na adolescência, e do qual jovens cabo-verdianos falaram nos encontros, tem a ver com o caminho percorrido da escola primária até ao emprego. “Esse caminho é muito difícil” e há muitos jovens que não estão nem no sistema de ensino ou formação, nem a trabalhar. “Quando isso acontece, em qualquer parte do mundo, a gravidez na adolescência é de longe mais provável”. Para muitos desses jovens ter uma criança dá-lhes um propósito e um sentimento de pertença. “Então, penso que o problema é o sentido de futuro, oportunidades e possibilidades, para os jovens se sentirem inseridos”, frisa.

Em terceiro, aponta Kate Gilmore, é importante continuar a lutar pela igualdade de género neste desiderato, pois as “consequências da gravidez na adolescência para as mulheres são ainda extremamente diferentes do que são para os rapazes”. Assim, é preciso incutir nos homens, incluindo os jovens, as suas responsabilidades para o sexo seguro.

“É claro que a violência não é aceitável, mas também é inaceitável não assumir total responsabilidade para evitar uma gravidez não planeada”, lembra a activista.

EIS

Uma outra questão sempre importante, nomeadamente no combate à gravidez na adolescência tem a ver com a educação sexual. Neste momento, o método defendido – e que é o que Kate sempre menciona nesta conversa – é educação integral da sexualidade (comprehensive sexuality education – CSE) que por definição é um método adaptado aos currículos e que abrange uma série de tópicos que vão das aptidões pessoais (como negociação e tomada de decisões), às relações (famílias, namoro, etc.) passando pelo desenvolvimento humano (que inclui a reprodução ou a identidade de género).

“Os jovens têm dificuldades em gerir a sua sexualidade, e uma das razões é que não lhes damos a informação”. Nos encontros, os participantes jovens falaram da necessidade de terem espaços seguros para falarem sobre esses temas. Procuram informação essencialmente na internet e “não sabem no que acreditar, porque muitas vezes as informações não são precisas ou são exageradas”.

“Lembraram-me que o problema real para os jovens são as pessoas que não são jovens, porque o nosso preconceito, … é como se tivéssemos amnésia. É como se não nos lembrássemos de ter sido jovens. Toda a pessoa velha foi jovem um dia, mas é como se nos esquecêssemos de como nos sentimos. À medida que emergimos para a nossa sexualidade, esquecemo-nos de como é ter vergonha, das incertezas, esquecemos que podemos ir facilmente pelo caminho da pornografia e ter uma visão distorcida”, diz Kate Gilmore.

Os adultos, continua, transformam assim o sexo – algo que é tão natural como respirar, comer, ou seja, que é uma parte normal da vida – em algo que é, de alguma forma sujo e vergonhoso.

Ora, os jovens querem sentir-se seguros, ter boas discussões, “ser factuais e realistas”. Isso deve “acontecer na escola, e deve ser relevante para cada idade, deve ser EIS, que é relevante e adaptada a cada etapa”. Desde a escola primária, “porque as crianças precisam de saber, por exemplo, que ninguém toca os seus corpos sem a sua permissão”, defende.

“O silêncio e a vergonha provaram ser ineficientes, ordenar aos adolescentes para não serem sexuais não funciona. A EIS funciona. A pesquisa é muito clara”. E sublinha, “as políticas públicas não podem ser feitas com base no que nos é confortável. Têm de ser feitas numa base factual, de verdade e de ciência”. Ora, está provado que a EIS “é uma das melhores maneiras de reduzir a gravidez na adolescência”, reitera.

Aborto

A interrupção voluntária da gravidez é outra área onde há uma clara discrepância entre a lei e a prática em Cabo Verde. Desde os anos 80 que a Lei que despenaliza o Aborto, essencial no acesso ao aborto seguro, foi regulamentada, mas a sua aplicação encontra vários constrangimentos.

“A lei pública e norma legalmente aplicada, acesso ao aborto seguro, está lá, mas as normas informais, a cultura e a histórias que os adultos estão a contar às crianças sobre o que é aceitável ou não, não mudou para corresponder à lei”. É preciso sensibilização, educação, esse trabalho de fundo.

É preciso também que os serviços proporcionem um ambiente de privacidade e confidencialidade, enfim, de profissionalismo, “para fazer uma lei, que é boa no papel, funcionar na prática”. Tanto para a questão do aborto com em tudo o que se refere à saúde sexual e reprodutiva, observa.

Tudo isto foi discutido com os governantes com quem a comitiva se reuniu e outros líderes. Aliás, ressalva a presidente do IPPF, “os jovens estão prontos. Há óptimos líderes – é o que a VerdeFam prova – na comunidade, na sociedade civil. Temos aqui o benefício da lei, que muitos países por todo o continente não têm, mas é preciso liderança”. É preciso que os governantes digam “aos homens e mulheres em todo o Cabo Verde que estes são os valores do país: acesso ao aborto seguro sem estigma; aceitar a orientação sexual independentemente de se concordar ou não. Isso significa permitir o acesso dos jovens a qualquer serviço com privacidade, confiança, e dignidade protegidas”.

E termina, mais uma vez falando, no geral, de todas as problemáticas relativas à vida sexual e reprodutiva:os adultos tem de crescer no que toca ao sexo. Nós somos o problema, não os jovens”, conclui Kate Gilmore.

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Kate Gilmore tomou posse como Presidente da IPPF a 17 de Maio de 2020, em plena pandemia. Com uma larga experiência como activista dos direitos humanos, foi Alta Comissária Adjunta das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Ainda nas NU exercera o cargo de Directora Executiva Adjunta para Programas do UNFPA. Trabalhou também na Amnistia Internacional como directora nacional na Austrália e posteriormente como Vice-Secretária-Geral Executiva.

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IPPF

A IPPF, fundada em 1952, é uma organização internacional não-governamental, com 120 membros e presente em 146 países, que se destaca como defensora da saúde e direitos sexuais e reprodutivos para todos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1070 de 1 de Junho de 2022.  

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Autoria:Sara Almeida,4 jun 2022 8:38

Editado porAntónio Monteiro  em  4 jun 2022 21:14

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