Associações partilham experiências sobre promoção da Paz na cidade

PorSara Almeida,12 jun 2022 8:15

Na busca e promoção de uma cultura de paz, onde os jovens têm um papel e voz destacados, o movimento Jovens pela Paz (JpX) realizou no passado dia 4, mais um evento, entre vários que já organizou, com esse desiderato. “Praia mesti Paz” foi o mote da jornada que reuniu testemunhos vários de escolas e diferentes associações. “Todos nós precisamos de paz na nossa sociedade, e ninguém será melhor promotor de paz de que os jovens”, destaca Laura Robalo, dos JpX, apresentando estas jornadas que convidam à reflexão.

Escola da Paz - JpX

O nome do movimento é bem definidor do seu foco: Jovens pela Paz. Desde 2013, através de várias iniciativas é sobre esse foco que têm trabalhado e um dos seus projectos mais acalentado é o da escola da Paz. 

O projecto foi apresentado na comunicação “Lançar sementes de paz, a experiência da escola da paz”, que abriu a jornada.

Como explica Laura Robalo, a Escola pela Paz é uma iniciativa do movimento que funciona no Centro Multiusos do Alto de Safende. A escola recebe cerca de 30 crianças, de segunda a sexta-feira, em período contrário às aulas, e 50 crianças entre os 2 e os 14 anos aos sábados de manhã. 

Aí, há acompanhamento de estudo e actividades lúdicas, sempre tendo como guia da Escola ensinamentos sobre a paz, bons modos e promovendo a gentileza. Serve para “aprenderem que têm outro caminho além da violência. Há caminhos mais belos: a paz”, explica Laura.

E assim, sementes de paz vão sendo lançadas nos mais pequenos.

Escolas promotoras da Paz – Esc. Regina Silva

O papel das escolas na promoção da paz social é, reconhece-se de suma importância, e tem vindo a ser um eixo orientador das acções na Escola Secundária Regina da Silva.

Praia Situada na Achadinha, esta escola, que acolhe um grupo muito variado de jovens, de muitas localidades da Praia, tem vindo a realizar “actividades de intervenção no sentido de melhorar o clima de convivência”, relata o director, João Evangelista Andrade. 

“Às vezes são situações que surgem pontualmente e nós, enquanto direcção, somos chamados a fazer intervenções de momento para gerir os conflitos que vão surgindo no dia a dia”, explica.

Mas além dos “imprevistos”, ao longo dos 6 anos de mandato da direcção foram feitos planos de acção, nos quais vão sendo sucessivamente sedimentadas as intervenções que têm sucesso. 

Entre algumas acções, estão as desenvolvidas no gabinete de orientação vocacional e atendimento aos alunos, palestras e projectos como o concurso de melhor turma que premeia a turma com menos faltas, suspensões, etc.

Também “temos estado a fazer intervenções junto das famílias para melhorar essa proximidade escola-comunidade que é um grande défice que nós encontramos. Elaboramos projectos vários no sentido de chegar às famílias e trazer as famílias às escolas”, conta o director. 

Apoios conseguidos junto a parceiros, tanto para a escola como para os seus alunos, tem tido impacto, assim com as intervenções realizadas a nível das infra-estruturas. “Uma escola bem infra-estruturada, bem arrumada com um ambiente limpo e calmo também ajuda na integração de jovens”, expõe. 

Quanto à situação actual, nomeadamente a nível de abandono escolar, o director reconhece que o último ano lectivo contrariou a tendência de redução, tendo havido um aumento que eventualmente terá a ver com o contexto de pandemia. De qualquer modo, garante, a escola está já a analisar “todos os detalhes para no final do ano traçar um novo plano em função dessas novas variantes que surgiram”.

Promoção da Paz envolvendo moradores – DND

Também a Associação Donu di nha Distinu partilhou a sua experiência, na jornada, trazendo a sua experiência de intervenção comunitária. 

Criada em 2019, a Associação lançou pouco depois o projecto “Nha Zona Siguru i Inklusivu”, em execução, e no âmbito do qual realiza várias actividades que vão de campanhas de sensibilização à formação e capacitação de jovens, sob o objectivo de fazer dos bairros de Castelão e Coqueiro zonas seguras e inclusivas, contruindo uma cultura de paz e harmonia.

Assim, neste evento trouxe um pouco da “experiência adquirida ao longo do processo” colaborativo, que assenta na premissa de que “criminalidade ou segurança comunitária não é da exclusividade das forças de segurança. A comunidade também tem de estar envolvida”.

Comunidade no geral e famílias no particular. “A família que tem um jovem em situação de risco, relativamente a conflito com lei, também está em risco. Não é só aquele jovem”, expõe o mentor da DND Admilson Mendes. 

Tudo começa, pois, em casa. “A Família é uma parte muito importante porque se trabalhamos com a família na prevenção dentro de casa”, teremos filhos que conhecem melhor e respeitam as normas sociais. “Tudo ganha”.

Depois, temos rua, que é, como explica, reflexo das suas comunidades, “sabendo que a comunidade é um resultado de todos aqueles que estão lá”.

Assim, o processo tem de ser completo, englobando as duas vertentes. 

O trabalho da DND, cujo projecto conta com o financiamento da CM da Praia é assim um projecto preventivo que além de incidir sobre as famílias que tem filhos em conflito com a lei, ou risco iminente desse conflito, também serve para alertar os outros moradores sobre, por exemplo, “as causas que levam os jovens para aqueles caminhos, e quais são as consequências”. 

“Quando olhamos os nossos vizinhos no conflito nós, indirectamente, estamos envolvidos”. Mesmo que o filho não esteja nessa situação, provavelmente será amigo de alguém que está, alerta. 

“Então trazemos essa forma de prevenir”, trabalhando em conjunto em várias questões para essa prevenção e diminuição consequente da criminalidade entre a comunidade de Castelão e Coqueiro. 

Entretanto, um fenómeno que se tem estado a ver nos bairros, um pouco por toda a Praia, tem a ver com as novas dinâmicas dos grupos em conflito com a lei. Ao contrário do que acontecia antigamente, observa Admilson, já não há lideranças, mas sim amigos, de bairros diferentes, que cometem actos nas zonas desses amigos.

“Isso está a aumentar ainda mais a onda de criminalidade. Antes, havia uma divisão territorial, quem era de dentro do bairro defendia o bairro, mas agora é o salve-se quem puder”, aponta. 

No fundo, há uma distorção ainda maior da visão de Tupac Shakur sobre a “Thug Life”. “Thug life na ideologia de Tupac era proteger, dento do bairro, os nossos amigos” e a comunidade. Isso está a desaparecer.

Reclusos na promoção da cultura da paz – HotuRumu

Criada por ex-reclusos e com vista a mostrar outros rumos, que não a criminalidade, tanto a nível preventivo como no apoio à inserção de quem esteve preso, a HotuRumu foi também uma das associações convidadas a partilhar a sua experiência de promoção da Paz. 

Nasceu há três anos, e formalizada oficialmente em Setembro do ano passado, HotuRumu conta neste momento com 16 membros, 10 dos quais ex-reclusos, e foi contemplada recentemente com um apoio financeiro da CM da Praia, enquadrado no pacote dado às associações da capital, para concretizar os seus projectos. “O valor do projecto é 500 contos, já recebemos a 1ª tranche”, conta o seu presidente, Joaquim Martins.

Além das várias palestras de prevenção que promove, esta associação tem também estado no terreno pretendendo elaborar uma espécie de diagnóstico, em vários bairros, sobre as necessidades dos ex-reclusos, para melhor actuar.

E sobre o que já se sabe, um dos principais problemas com que se deparam os ex-reclusos é com o apoio familiar, uma vez que os laços são muitas vezes quebrados. Encontrar um trabalho também é complicado. Sabe-se, por experiência que uma boa parte volta ao crime, algo que a associação considera ser “por falta de oportunidades. Já têm um cadastro sujo, então a própria sociedade os rejeita”.

Enfim, pretende-se então no terreno saber o que falha e em que grau: formação, família, trabalho… Tudo para levar a encontrar um caminho, que não seja o da delinquência e que os jovens muitas vezes não conseguem ver.

“A preocupação da associação HotuRumu é essa: fazer caminho para que eles tenham uma nova vida, digna, para que eles conquistem [tudo] de novo. Há jovens que estão 5, 6 anos presos, outros ainda mais, então quando saem já perderam tudo. Quando voltam para a sociedade e encontram este tipo de constrangimentos, eles desanimam”. E o caminho possível parece ser entrar no mundo onde estavam… não é. Há outros rumos… 

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Estórias HotuRumu

Preso aos 16

À margem da jornada da JpX, dois dos membros da HotuRumu partilharam também a sua história em conversa com o Expresso das Ilhas. Aliás, o relato dos percursos vividos é um dos temas das palestras que costumam proferir, como forma de levar os outros a enveredar por rumo diferente. 

Joaquim Martins, presidente da HotuRumu, é ex-recluso e prova de que um passado de delinquência e violência, e uma passagem pela prisão, não condicionam uma pessoa à criminalidade para toda a vida. 

Joaquim entrou na delinquência bem novo. Em 2002 era thug, “um dos primeiros” da Praia, e fez parte do grupo Tripolex, em Achadinha. Esteve em guerras de bairros, caiu no mundo da droga, cometeu crimes… 

À distância, analisa: vinha de uma família “fechada”. “Não conhecia a sociedade e então a primeira influência que tive, que me apareceu pelo caminho, caí de cabeça nela. Acabei por ir para a cadeira”. 

Tinha apenas 16 anos quando foi mandado para a Cadeia de São Martinho, preso por “roubo e guerra de gangues”. 

“Com 16 anos devia estar na escola… Agradeço terem criado o Centro Orlando Pantera. Se no meu tempo houvesse talvez eu não fosse para a cadeia, porque quando chegamos à cadeia encontramos pessoal mais criminoso.” 

Passou 1 ano e 4 meses da sua vida em São Martinho.

“Na prisão decides, reflectes todos os dias: ou continuas naquela vida ou largas de uma vez. Se quiseres ser mais criminoso, vais ser mais criminoso, se não…” Se não, há um longo caminho, que ele escolheu, mas do qual não se arrepende. 

Quando saiu procurou a Igreja e Deus. Aliás, no seu entender, a Igreja é dos factores mais importantes na sociedade, neste sentido, porque proporciona de facto “um novo caminho”, um novo chamamento. “Então, encontrei Cristo na minha vida, fiz o meu caminho”, conta.

Lavou carros, enfrentou alguma descrença das pessoas sobre o não regresso à criminalidade, mas Joaquim manteve-se firme. Um dia, um dos seus “clientes” a quem lavava o carro, arranjou-lhe trabalho como guarda. “Deu-me mais sustentabilidade, mais firmeza na decisão que tomei”. Tudo começou a encaminhar-se. Hoje tem dois filhos e um “trabalho digno numa agência de transitário”. 

No seu trabalho conheceu um outro ex-recluso. “Naquelas conversas abertas em que participamos nas palestras vimos que era necessário uma associação de ex-reclusos. Que isso ajudaria muito a comunidade. Que os testemunhos seriam importantes na questão da prevenção nos mais pequenos, para não caírem no caminho que nós caímos”… e nasceu a HoutuRumu.

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Ambição e ilusão

Liliane de Pina é também ex-reclusa e membro “desde o início” da Associação HoutruRumu.

Também ela passa o seu testemunho em palestras como forma dissuasora de entrar no mundo do crime. 

Liliane tinha 4 filhos e nenhum trabalho quando “entrou”. Mas confessa que, mais do que necessidade propriamente dita, foi a ambição e a vontade de conhecer outras realidades que a levaram ao tráfico internacional de droga. “Criei aquela ilusão, aquela vontade de ir buscar e receber aquela quantia”.

Foi apanhada numa das suas “viagens”, dessa feita vinda de São Tomé e Príncipe, e foi condenada a 6 anos e 3 meses de cadeia. 

Na prisão, entre as reclusas, encontrou principalmente mulheres presas por tráfico de droga, como ela, embora também houvesse casos de homicídio e tentativa de homicídio (principalmente dos companheiros), lembra. 

E recorda também com precisão das datas. Entrou na prisão a 27 de Agosto de 2015 e saiu a 31 de Janeiro de 2020, com redução de pena por bom comportamento. 

Já antes, com 2 anos e 11 meses saíra em precária, 3 dias com a família. E depois trabalhou com a associação Jovens pela Paz”.  “Era mentora”, falava com os jovens e contava-lhes a experiência da sua vida. 

Voltar “à sociedade” não foi fácil, “ainda não está a ser fácil”.

“As pessoas não aceitam, não querem acreditar que houve mudança, ou que tu estás diferente”. Aliás, lembra, a associação tem o objectivo também de ajudar os ex-reclusos a interagir com a população, porque de facto é difícil, insiste. 

Quando saiu da prisão esteve seis meses em casa, ninguém lhe deu emprego. Abriu então um negócio, no seu bairro (Safende) com dinheiro que um familiar no estrangeiro lhe emprestou. Continua a batalhar. Mas se o trabalho é mais duro, o sossego também é maior. 

“Antes havia risco, podiam matar-me, entre outros riscos. Hoje, mesmo que financeiramente não esteja [tão bem] como antes, agradeço porque trabalho honestamente, com dinheiro legal, não tenho de fugir de ninguém, nem da polícia, nem de alguém que me possa querer matar. Não ponho a vida dos meus filhos ou do meu marido em risco. Então acho que hoje estou muito melhor”, avalia.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1071 de 8 de Junho de 2022.

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Autoria:Sara Almeida,12 jun 2022 8:15

Editado porA Redacção  em  13 jun 2022 12:32

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