Mãe cria Centro para receber crianças comuns e com necessidades educativas especiais

PorSheilla Ribeiro,23 jul 2022 9:17

Ronise Veiga é uma socióloga e criou o Centro de Actividades de Tempos Livres (ATL) “Aprender e Crescer” para acolher crianças comuns e com necessidades educativas especiais e auxiliá-las no desenvolvimento das suas capacidades social, escolar e psicomotor.

A filha tem necessidades educativas especiais (NEE) e sempre sofreu bullying por esta condição. Inconformada, abriu mão da sala de estar de casa, localizada em Achada São Filipe, que se tornou num ATL e que acolhe hoje 30 crianças de todos os bairros da capital, dos 6 aos 12 anos.

Quando a filha de 11 anos ainda frequentava o primeiro ano de escolaridade, Ronise Veiga descobriu que esta tinha NEE. A partir de então, decidiu que no dia que tivesse de investir em algo seria na área educacional para que pudesse apoiá-la e apoiar outras crianças na mesma condição.

Foi assim que, em 2021, a socióloga abriu as portas da sua casa que hoje acolhe várias crianças, incluindo três com necessidades educativas especiais.

“As crianças com NEE não pagam nada e até pretendo receber mais crianças com esta condição. Entretanto, ainda não tenho possibilidades para tal porque é preciso espaço e materiais”, narra.

Licenciada em sociologia e formada em animação turística, Veiga decidiu arriscar-se na área apesar de não ter nenhuma formação em Educação. Isto porque considera que a experiência que possui conta “e muito”.

Conforme conta, no ATL “Aprender e Crescer” são realizados vários tipos de actividades. Além do acompanhamento personalizado ao estudo, há aulas das línguas francesa e inglesa, aulas de dança e actividades lúdicas que vão surgindo no decorrer do tempo.

“Trabalhamos em sintonia com os pais e professores. Para tal criamos um grupo onde os professores disponibilizam as matérias para não fugirmos àquilo que é ensinado nas escolas. Também os pais nos orientam sobre as necessidades dos filhos e é onde nos dedicamos mais, pode ser leitura, escrita, matemática e outros”, especifica.

Ronise Veiga assegura que o diálogo com as escolas e os pais é constante para que o trabalho não fracasse.

ATL e ME

A sociólogo admite que não sabe se o Ministério da Educação (ME) tem ou não conhecimento do espaço. Entretanto, frisa que gostaria que algum elemento da tutela abraçasse o projecto.

“Eu sei que o ME trabalha com planos para crianças com NEE. A minha filha, por exemplo, tem um plano diferente das outras crianças. Eu queria, juntamente com o ME, trazer mais inovação, mais criatividade para as crianças com necessidades educativas especiais porque eu sinto que estão a falhar”, declara.

Para esta mãe, o ME está a falhar no que diz respeito ao acompanhamento dos técnicos nas escolas.

“Quando a minha filha esteve no primeiro ano, todas as quartas-feiras às 15h00 levava-a para a Delegação para ser acompanhada pelos técnicos especializados. Mas, hoje, passado quatro anos a minha filha não tem esse acompanhamento e recebe muito pouca visita desses técnicos na escola”, justifica.

Ronise Veiga admite que depois de ganhar mais experiência, quer sentar-se com várias instituições que trabalham com crianças com necessidades especiais e não só, para partilhar o seu conhecimento e procurar possíveis colaborações.

Desafios e perspectivas

Para além de um espaço maior, o centro de Ronise Veiga precisa de mais materiais, sobretudo cadeiras.

“Tenho aqui cadeiras que foram emprestadas pela escola Júlia Costa, precisamos de mais mesas, estantes para livros e outros materiais. Com o meu esforço conseguimos ter o pouco que aqui se vê, tive de fazer empréstimo no banco”, salienta.

Actualmente, além da Ronise, o ATL “Aprender e Crescer” conta com mais três monitores que estão divididos por turno. Contudo, o espaço dispõe de outros monitores que ficam durante algumas horas, como é o caso dos professores de línguas e de pintura.

“E todos fazem trabalho voluntário. Alguns tenho de carregar o passe de autocarro. E eu deixo claro que ainda não posso pagar um salário fixo, mas posso dar um valor simbólico que pode ser quatro ou cinco mil escudos de acordo com o rendimento do lugar”, precisa.

Tendo em conta a demanda, Ronise Veiga decidiu alugar o andar de baixo do prédio onde vive. Para conseguir pagar mais esta renda, a socióloga procurou por técnicos que querem ganhar uma renda extra e partilhar o espaço.

“Muitos pais procuram por aulas extras de matemática, inglês e francês. Assim, procurei jovens professores de determinadas disciplinas para ocupar as outras salas. Assim, vão poder dar aulas e contribuem com o pagamento da renda. Uma espécie de coworking”, adianta.

Ronise Veiga afirma que quer estar no topo, juntamente com as crianças que acolhe para que possam acreditar nelas mesmas e saber que são capazes.

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“Essas crianças sofrem muito bullying na escola. A minha filha, por exemplo, é vítima de bullying e tive de reprová-la duas vezes, porque sempre era provocada com afirmações que não sabe ler nem escrever. Então, aqui sempre falo para essas crianças que não devem fazer bullying”, relata.

Para combater este mal, esta mãe chegou a se voluntariar, na escola da filha, para uma palestra sobre bullying e assim incentivar os colegas da mesma a respeitarem o próximo e cultivar a ideia de que ninguém é melhor do que ninguém.

“Por isso, preferi colocar a minha filha em casa, neste ambiente do ATL, que é onde ela se sente bem. Tanto que aos finais de semana sempre pergunta pelas outras crianças se vêm ou não cá em casa”, reconhece.

Cidadãos cientes

Conforme revela, cada criança, com excepção das com NEE pagam um valor simbólico para frequentar o Centro. Além do apoio nas matérias escolares, têm aulas de música, dança e outros aspectos culturais.

Assim, de 11 a 17 de Julho, na semana cultural, o ATL recebeu Tikai e tiveram apresentações de dança, música e poesia.

“Na minha opinião temos de incutir a cultura nessas crianças. Porque se colocar uma música de um Mc qualquer todos gostam e cantam, e se colocar uma morna ou funaná ficam chateados e pedem para trocar. E não podemos deixar morrer a cultura”, considera.

Além de não deixar morrer a cultura e de prevenir o bullying, através deste centro Ronise Veiga pretende falar da violência, retractar a educação financeira e educação sexual.

“Na semana anterior trouxemos a palestra “Não Tocar no Meu Corpo” tendo em conta os números da violência sexual no país. Trouxemos um profissional para palestrar e assim tornar as nossas crianças cientes para a sociedade e para o mundo”.

“Ensiná-las como devem chamar cada parte do corpo e quando forem à casa de um amiguinho se alguém lhes tocar em determinadas partes para falarem abertamente aos pais onde foram tocadas e por quem”, assevera.

ME sinaliza 1907 alunos com NEE

Ao Expresso das Ilhas, a directora de Educação Inclusiva, Maria Helena Andrade, revelou que no ano lectivo de 2020/2021 foram sinalizados 1907 alunos com necessidades educativas especiais permanentes e temporárias.

Essas crianças não têm o mesmo currículo das outras, conforme determina o Sistema Nacional da Sinalização de Crianças e Jovens com NEE e que está em vigor desde o ano lectivo 2018/2019.

Esse sistema, segundo a responsável, é um sistema de sinalização para identificar as necessidades educativas de cada criança e jovem e definir as medidas especiais a aplicar.

“Estamos a falar, por exemplo, da adaptação no processo de matrícula, organização de turmas, adaptação curriculares individuais, o apoio pedagógico personalizado, o currículo específico individual, as tecnologias de apoio e condições especiais de avaliação. Tudo isso em função do perfil e da funcionalidade de cada um”, afirma.

Maria Helena Andrade avança que a tutela criou 23 equipas multidisciplinares de apoio à Educação Inclusiva em todos os concelhos com um total de 80 profissionais. Todos esses elementos foram capacitados em matéria de classificação internacional de funcionalidade, CIF, além da adequação curricular, ou seja, o plano educativo individual.

“São vários os desafios, mas, podemos falar que houve melhorias significativas porque às vezes nós não estamos a falar apenas dos conhecimentos científicos que essas crianças adquirem nas escolas, mas também estamos a falar de competências para a vida”, reputa.

A directora enfatiza que se trata de uma área com desafios constantes e diários, e que o ME vai melhorando à medida que consegue superar os desafios.

“Cada vez que superamos um sempre aparece outro, mas isto é normal da dinâmica do próprio sistema educativo e ainda mais quando estamos a falar de educação e inclusão de crianças com necessidades educativas especiais “, elucida.

No entanto, o ME, segundo Andrade, vai continuar a reforçar a articulação com outros serviços visando a inclusão de crianças e jovens com NEE, principalmente o Ministério da Saúde.

Mas também criar condições para garantir a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais, trabalhar com as próprias famílias para uma sensibilização maior e uma melhor integração ou reintegração dessas crianças e jovens que estão fora do sistema.

“Posso dizer que a educação inclusiva tem vindo a afirmar-se progressivamente enquanto meta a alcançar pelo sistema educativo cabo-verdiano. Temos sempre levado em conta as orientações internacionais para que possamos atingir os objectivos da inclusão”, prossegue.

Isso, concluiu, tem surtido “efeito bastante positivo” na vida dessas crianças, jovens e dos próprios pais e encarregados de educação.

“Sabemos que ainda temos muitos desafios, um longo caminho a percorrer, mas posso dizer que estamos num bom caminho porque o objectivo é esse. É incluir todas as crianças para que nenhuma fique de fora. Para isso contamos também com os pais e encarregados de educação e dos professores que são os principais actores”, admite. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de 20 de Julho de 2022.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,23 jul 2022 9:17

Editado porDulcina Mendes  em  25 jul 2022 9:43

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