Associações comunitárias da Praia apostam em actividades para tirar os mais novos da rua

PorSheilla Ribeiro,21 ago 2022 8:14

Apesar de ser um espaço de lazer, de convivência e muitas brincadeiras, a rua pode proporcionar estímulos negativos; e a violência a que as crianças e adolescentes estão expostos pode favorecer a criminalidade juvenil. Cientes disto, as associações comunitárias da Praia têm apostado em diversas actividades para combater este flagelo e ajudar os pais. Nesta reportagem falamos com algumas associações que além de colónias de férias, têm desenvolvido programas de ocupação dos tempos livres.

Gerson Pereira, presidente da Associação Kelém em Desenvolvimento, descreve a zona como um lugar pacífico e tranquilo, uma “referência” em Achada Santo António, apesar de “ter conhecido dias difíceis”. 

“Ultimamente temos tido alguns casos de criminalidade, mas é reflexo dos nossos jovens adolescentes que às vezes não têm uma ocupação nos seus tempos livres por questões de pobreza e vários outros motivos. Nos últimos dias tem estado um pouco mais tranquilo”, descreve. 

Segundo Gerson Pereira, muitos pais têm de trabalhar e por não terem com quem deixar os filhos, estes acabam por ficar nas ruas, muitas vezes sob a influência dos maiores. “As crianças, mesmo entre si têm às vezes brincadeiras não muito apropriadas. E nós, enquanto Associação queremos ajudar os pais que têm reclamado sobre o tempo que os filhos passam na rua e evitar que tenham comportamentos desviantes”, afirma. 

Neste sentido, todos os anos, durante o mês de Agosto, a Associação Kelém em Desenvolvimento realiza uma Colónia de Férias para que as crianças possam estar num ambiente mais descontraído, ao mesmo tempo que aprendem e interagem umas com as outras. 

“Temos reparado sempre no período de férias, independentemente de os pais trabalharem ou não, que as crianças se concentram muito nas ruas e isso pode ser um risco. Por isso realizamos a colónia. A rua é um espaço de brincadeira, um espaço para as crianças se divertirem, mas também pode ser um espaço de muitas outras coisas”, constata. 

Entretanto, devido às limitações de voluntários e de recursos, a colónia acontece durante duas semanas, em meio período. Das 8h00 às 12h30. “Vamos ter aulas de inglês, aulas de dança, de teatro, aulas de capoeira, concursos de escrita e de leitura. Teremos o dia olímpico e vários jogos no recinto desportivo da Escola Técnica [Cesaltina Ramos], incluindo jogos tradicionais e aulas de culinária. Gostaríamos de ter mais actividades, mas infelizmente os recursos são escassos e como não temos como pagar às pessoas, contamos com voluntários”, informa Gerson Pereira. 

A colónia de férias que arrancou nesta terça-feira, 16, conta com cerca de 60 crianças dos 5 aos 12 anos de idade. Gerson Pereira lamenta o facto de a associação ter apenas actividades pontuais de ocupação dos tempos livres como a colónia de férias, o carnaval comunitário, actividades do mês da criança e de Natal. 

“Tínhamos uma escola de futebol que deixou de funcionar devido à falta de espaço para treinar e a falta de um centro comunitário não nos permite fazer o acompanhamento escolar e realizar outras actividades”, lastima.

Jovens e adolescentes 

Além das crianças desta idade, Gerson Pereira realça que Kelém tem um “número considerável” de jovens e adolescentes que perderam o direito de estudar no sistema público ou devido a condutas desviantes, ou, no caso de meninas, devido a uma gravidez precoce. 

Assim, há cerca de dois anos a Associação Kelém em Desenvolvimento criou o projecto “N Kre Studa”. No âmbito deste programa, identificaram adolescentes e jovens que queriam continuar o ensino secundário e financiaram 70% das propinas. 

“Os outros 30% eram financiados pelos próprios estudantes, ou então por familiares. Apesar de casos de sucesso, a limitação de recursos obrigou à suspensão do projecto. 

“Este ano vamos ver se retomamos esse programa com algum parceiro que queira ajudar. Em Kelém há muitos jovens nessa situação. Se formos ver o número total de jovens da zona e quantos estão fora do sistema de ensino, podemos constatar que é um número considerável. Mas, a realidade de Kelém é a realidade de muitos outros bairros da Praia”, sustenta.

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Entretanto, Gerson Pereira afirma que a associação tenta sempre incluir os jovens e adolescentes como voluntários nas suas actividades. Neste momento, informa, estão a recrutar alguns para a Colónia de Férias. 

A Associação Kelém em Desenvolvimento busca ainda apoios para permitir aos jovens obter carta de condução e, quando surge uma oportunidade, indica-os para formações profissionais. 

“Infelizmente em Achada Santo António, um bairro muito populoso, não há um espaço onde os jovens possam aproveitar o seu tempo livre de forma edificante e saudável. Por exemplo, não há um polo desportivo ou um centro onde possam aprender dança, teatro, algo ligado à cultura”, lamenta. 

Nesta perspectiva, Gerson Pereira apela às autoridades para criarem, sobretudo durante o período das férias, alternativas para os jovens. Cita como exemplo o extinto programa da Câmara Municipal, “ATL Jovem”, em que qualquer pessoa poderia participar num concurso e receber um financiamento de até 500 contos para implementar projectos de ocupação dos tempos livres dos jovens durante as férias. 

“Infelizmente o projecto foi extinto, mas precisamos de iniciativas do tipo, não apenas a nível do poder local, mas também a nível do governo. Precisamos ter políticas e programas que ocupem os tempos livres. Isto porque é perigoso quando os jovens não têm nada para fazer. Sempre acabam por se sujeitar a outras coisas”, observa.

Fidjos de Kokero 

O bairro de Kokero, nos arredores de Paiol, já teve grupos rivais de thugs, mas actualmente não está fustigado pela criminalidade, segundo o vice-presidente da Associação Fidjos de Kokero. 

De acordo com este entrevistado, o maior desafio do bairro são crianças que estão sempre nas ruas, sobretudo durante as férias escolares. Neste período, precisa que é possível encontrar tanto crianças como adolescentes nas ruas até altas horas da noite. 

“Temos crianças com comportamentos desviantes, mas não temos grupos rivais. E estamos a trabalhar para evitar que venham a surgir grupos do tipo. Por isso, abrimos as portas da associação de manhã até às 22h00, para acolher os nossos jovens e adolescentes e evitar que fiquem na rua durante as férias”, realça Raphael Ferreira. 

Sem ser no período das férias, a associação abriu, há cerca de seis anos, uma escola de boxe que, conforme Raphael Ferreira, tem engajado muitas meninas e meninos. 

A Associação Fidjos de Kokero criou ainda cinco grupos de danças africanas e perspectiva criar um outro grupo voltado para danças tradicionais. “Tanto as aulas de dança, quanto as aulas de boxe decorrem o ano inteiro das 7h00 até às 21 ou 22h00, que é quando fechamos a associação”, destaca. 

Neste momento, a associação tem o projecto Biblioteca Comunitária e está a organizar torneios de futebol. Para o mês de Setembro, época da festa do bairro, Fidjos de Kokero pretende realizar torneios de jogos tradicionais como uril e dama para os jovens e adolescentes. 

“Temos feito, aos finais de semana, sessões de cinema para crianças com filmes de conteúdos educativos. Temos ainda sessões de contos de histórias tradicionais e numa dessas sessões chegamos a ter a participação de Gil Moreira. Temos ainda aulas de teatro e contamos com várias palestras e aulas de francês”, acrescenta. 

Para o projecto Biblioteca Comunitária, Raphael Ferreira salienta que esperavam receber 15 crianças, mas que a procura superou as expectivas. São 30 crianças dos 6 aos 11 anos, que passam o dia a ler e a aprimorar a escrita. 

“Contamos ainda com mais 15 crianças no boxe, e outras 10 em cada grupo de dança. A maioria dessas crianças são provenientes de famílias monoparentais, em que as mulheres são chefes de família e têm de sair de casa desde muito cedo para vender no Platô. Por isso essas crianças passam todo o tempo na rua, não têm a supervisão de um adulto”, ressalva. 

Raphael Ferreira defende o financiamento, por parte das autoridades, das actividades da associação que “apesar da boa vontade”, não tem meios suficientes para evitar que os jovens estejam sempre na rua. “Sabemos que quanto mais ocupados, menos probabilidade haverá de os jovens entrarem para a criminalidade”, argumenta.

Achada Grande Frente 

Também com o objectivo de evitar que os mais jovens passem muito tempo nas ruas, há 12 anos que a Associação Pilorinho, em Achada Grande Frente, vem realizando colónias de férias para crianças e adolescentes dos 6 aos 18 anos de idade. 

Não apenas crianças cujos responsáveis passam o dia a trabalhar, mas também crianças cujos pais querem que tenham algo para fazer durante o Verão. 

“O bairro de Achada Grande Frente é muito problemático e quando as crianças não têm uma boa referência, seguem a referência que têm. O objectivo da nossa colónia de férias é mostrar para elas que o seu tempo livre pode ser aproveitado de melhor forma, com criatividade e muita dinâmica”, admite Zanildo Abada, presidente do Pilorinho. 

Aulas de teatro, de xilogravura, espanhol, desportos, aulas de reciclagem, circo, culinária, patins, conto de histórias, agroecologia, aula de cidadania, patins, capoeira e maculelê e artesanato compõem a lista das actividades a serem realizadas até 4 de Setembro. Das 9h00 às 18h00, de segunda a sábado. 

“Aos sábados fazemos aulas de campo. A nossa primeira aula de campo foi em Pico de Antónia, vamos ter também em Santa Cruz em parceria com a Associação Caretta Caretta, teremos mais uma aula de campo na Fundação Amílcar Cabral e quem sabe em algum outro lugar. Ainda vamos decidir se será no Campo de Concentração do Tarrafal ou em Ribeira Grande de Santiago”, diz. 

Zanildo Abada afiança que todos os monitores da colónia de férias são voluntários da associação há já algum tempo, incluindo jovens que quando crianças participaram nas diferentes edições da colónia. 

“Em termos de financiamento tivemos alguns apoios como da CMP e estamos a aguardar do Ministério da Família e Inclusão Social, mas também há empresas que financiaram as nossas actividades, por isso temos um leque grande de opções”, admite. 

Projecto “Believe” treina mais de 200 crianças, afastando-as das ruas 

Em Julho de 2021 arrancou o projecto “Believe” do antigo campeão de boxe, Walter Barros, com o intuito de combater a criminalidade, através do trabalho com crianças e jovens vulneráveis. 

“Ganho dinheiro dando aulas de boxe e invisto em crianças e jovens, incentivando-os a projectarem um futuro melhor desde muito cedo. A partir da Instituição do Desporto Walter Barros, uma organização sem fins lucrativos, criei o projecto “Believe” e treino crianças e jovens para competições nacionais e internacionais”, enfatiza Walter Barros. 

Walter Barros realça que o projecto existe por acreditar que o futuro de Cabo Verde são as crianças que precisam ocupar o seu tempo, não apenas durante as férias. 

“Há crianças da capital que às 23h00 ainda estão nas ruas dentro das comunidades. E quem são os culpados? É o Estado, são os pais, os vizinhos, a sociedade civil. Somos todos nós. Por isso, as actividades de Walter Barros decorrem durante todo o ano para ocupá-las o ano inteiro”, refere. 

Este entrevistado anuncia que já treinou mais de 200 crianças e jovens de bairros como Tira-Chapéu, Fundo Cobom, Casa Lata e Meio Achada, incutindo valores que poderão levar para vida. 

“A criança não precisa de actividade para passar o tempo, mas sim de valores que não possam ser esquecidos. Se não incutirmos nenhum valor nas crianças teremos adultos vazios”, considera. 

Walter Barros acredita que o desporto é um instrumento pedagógico, por facilitar o processo educativo, aliado à mudança de atitudes e comportamentos positivos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1081 de 17 de Agosto de 2022.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,21 ago 2022 8:14

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  19 mar 2023 23:27

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