Sem saúde mental, não há saúde. Hoje é incontornável pensar na psique, a par com o corpo. E em Cabo Verde, à semelhança do que se passa no resto do mundo, nota-se que a forma de encarar a saúde mental está a mudar.
Uma evolução que é fruto da promoção da saúde mental e divulgação de informações que tem vindo a ser feita no país, considera a psicóloga clínica Belmira Miranda. Assim, “as pessoas actualmente já estão mais conscientes da importância de cuidar da saúde mental”, aponta.
Contudo, apesar dos progressos, ainda há tabus e percepções erradas a nível de sociedade quando a questão é a mente e persiste uma significativa resistência em procurar ajuda.
“As pessoas ainda têm medo de serem rotuladas, ainda ficam com receio” de, se procurarem um psicólogo, serem apelidados de “dodu”.
Persiste, pois, a necessidade de se continuar a apostar na informação e esclarecimentos para derrubar estigmas e, inclusive, para fazer perceber que a saúde mental não tem necessariamente a ver com doença mental.
Seres Emocionais
Há, hoje, ao nível da Saúde Mental e como em todas as outras áreas da Saúde, uma mudança de paradigma. A saúde, qualquer que seja ela, já não é só vista como o tratamento da doença. Ela engloba, sim, todas as vertentes do bem-estar, o que passa também pela prevenção.
Falando então da saúde mental, em concreto, para esse bem-estar psicológico é fundamental a questão da saúde emocional, um assunto que tem estado na ordem do dia, e também começa a ser abordado em Cabo Verde.
“Somos seres emocionais”, lembra Belmira Miranda. E a “saúde mental está directamente ligada ao set emocional”.
Ora, essa parte emocional ainda enfrenta alguma incompreensão e pressão da sociedade.
“Normalmente, a nível social as pessoas são incentivadas a serem fortes, a não demonstrarem as suas emoções e não há uma educação para a emoção, para as pessoas realmente aprenderem a lidar com as emoções. Nós temos alegria, emoções agradáveis, mas também temos tristeza, raiva, medo, emoções desagradáveis”, observa. “Tudo é temporário e temos de saber desenvolver a capacidade de resiliência.”
Urge, pois, que as pessoas aprendam a lidar com todas as emoções, as reconheçam e auto-regulem, no sentido de uma verdadeira Saúde Mental.
“Estamos a cuidar da nossa saúde mental quando lidamos com as nossas emoções, e temos um bem-estar emocional”, resume a psicóloga.
E quanto mais cedo se educar para a emoção, inclusive dando o valor devido à inteligência emocional das crianças, melhores resultados individuais e sociais haverá.
Desde cedo
“A questão da educação para a emoção tem de ser na família e nas escolas. A criança e o adolescente devem ser educados no sentido de desenvolverem uma inteligência emocional”, refere Belmira Miranda.
Nas escolas, o tema ainda é recente, mas aos poucos vai sendo abordado e aplicado, dando-se cada vez mais importância à referida inteligência emocional e ao desenvolvimento das competências emocionais e sociais. Trata-se de um novo desafio que devem assumir, para serem realmente um local de acolhimento e de afecto e de cultura de paz, e que tem sido aceite. “Já existem vários movimentos nas escolas, na questão da formação de pares e competências para a vida”, avalia.
Além da Educação, a Saúde tem aqui, obviamente, também um papel importante. Assim sendo, ambas devem trabalhar em conjunto por forma a que crianças e adolescentes desenvolvendo essas competências e ganhem a “capacidade de resiliência para lidar com os vários obstáculos que vão aparecendo”. Ou seja, o trabalho deve ser realizado com parcerias, até porque “é um assunto de todos”, defende.
As intervenções devem ser feitas não só ao nível da auto-aceitação (numa sociedade que é demasiado crítica), como na aceitação do outro e suas diferenças. E os impactos no futuro dessa educação para lidar com as emoções, e com os outros, promove não só a saúde emocional e, logo, mental de cada indivíduo como vem permitir criar “ambientes mais saudáveis, com mais compaixão, mais empatia, menos violência e mais paz”.
Acções hoje feitas, têm repercussões, claro, no futuro.
Adolescência
Entretanto, uma idade que merece destaque e uma atenção especial é a Adolescência. Esta é idade de transição da infância para a idade adulta, que acarreta muitas transformações, formação da identidade, de afirmação perante a sociedade e “preparação para escolhas de vida, de profissão, de relações interpessoais.”
Há “todo um conjunto de desafios que vão aparecendo. Então, é um período que realmente traz muitas transformações e os riscos à saúde mental são enormes”, alerta Belarmina Miranda que é também, desde 2015, Coordenadora do Programa Nacional de Saúde do Adolescente.
O ambiente onde o adolescente está inserido e a forma como ele é cuidado são de suma importância e “é muito importante que tenha adultos, família, escola, sociedade em geral onde realmente possa ter referências e respostas perante o estranhamento de todas as transformações que vão acontecendo”.
Em Cabo Verde, há a consciência da importância e vulnerabilidade desta fase, bem como da necessidade de uma atenção especial e “temos trabalhado muito na promoção da saúde do adolescente”, aponta a Coordenadora.
Junto aos cuidados primários de saúde de todo o país estão a ser implementados espaços específicos para os adolescentes, onde estes podem recorrer para “qualquer tipo de esclarecimento” e que contempla todas as vertentes da saúde, nomeadamente, a saúde reprodutiva e, como não podia deixar de ser, a saúde mental.
“É uma atenção específica. É um espaço precisamente para promoção da saúde, que eles podem procurar”, onde se promove a discussão de vários temas e onde são assistidos por uma equipa multidisciplinar. “Ou seja, a equipa que trabalha no centro de saúde. Temos os pontos focais que dão atenção à saúde integral do adolescente”, explica.
Neste momento há espaços para os adolescentes nos centros de saúde da Praia, São Domingos, Órgãos, Santa Cruz e Santa Catarina. Estão também instalados dois espaços em São Vicente, dois no Sal (Santa Maria e Espargos), dois no Fogo (São Filipe e Mosteiros) e Santo Antão. No Maio também está a ser instalado um e a abertura do de São Nicolau está prevista para breve. “Tínhamos um espaço na Boa Vista, mas devido a uma reestruturação de serviços, estamos em processo para adequar um outro espaço” para este atendimento ao adolescente, avança.
Estes espaços trabalham igualmente com “as escolas, em perfeita parceria” e as equipas de saúde frequentemente deslocam-se aos estabelecimentos de ensino para promover a adesão.
A procura, avalia, tem sido boa, sendo que, por exemplo, o espaço do Centro de Saúde de Achada Santo António, na Praia, “que já tem algum tempo” regista uma demanda significativa.
“Então aos poucos, realmente é abrir esse aceso do adolescente aos cuidados de saúde, e cuidado integral, para que possa cuidar, ter essa responsabilização e esse autocuidado. E ter informação para poderem realmente fazer escolhas, estilo de vida mais saudável”, explica a responsável.
São espaços que dão, assim, respostas a esta fase complicada da vida proporcionando uma intervenção, que é muito importante “quando houver alguma situação que possa afectar o estado psicológico do adolescente, porque vai prevenir o desenvolvimento de um transtorno na idade adulta”, aponta.
Primeiros Socorros
Uma resposta integrada e intervenção na idade certa é, como referido, importante para prevenir perturbações na idade adulta e garantir o bem-estar.
“É muito importante darmos essa atenção à saúde mental da criança e do adolescente para termos adultos saudáveis, para realmente desenvolver a sociedade”, reitera a psicóloga.
Mas não basta ser só na idade certa. Deve ser também no momento certo. Ou seja, em situações de forte impacto emocional como situações de perda, violência ou outras, a intervenção atempada é fundamental e também essa vertente está a ser promovida.
Um pouco por todos esses espaços dos adolescentes nos cuidados primários de saúde tem sido realizada a capacitação em primeiros socorros psicológicos.
Ora, os primeiros socorros psicológicos ainda são um tema relativamente recente, mas cada vez mais falado e que tem ganhado relevância. Estes, tal como os primeiros socorros tradicionais, são direccionados a situações emergenciais, com vista, neste caso, à prevenção de “perturbações mentais na idade adulta”.
Os socorros podem, e devem, ser disponibilizados junto aos cuidados de saúde primários, “mais perto das comunidades, onde as pessoas moram ou mais perto das escolas”, ou seja, mais perto das crianças e adolescentes. Um local onde estes possam chegar, ser atendidos por uma equipa e ser escutado por um profissional de saúde qualificado que o pode “realmente amparar naquele momento de crise”.
“A intervenção no momento propício vai prevenir o transtorno na idade adulta”, reforça a psicóloga, sendo que este é um dos maiores ganhos deste tipo de intervenção, como o demonstram, aliás, vários estudos internacionais.
Acções
Entretanto, tem havido no país um aumento da procura dos serviços de saúde mental, incluindo por parte dos adolescentes. Isto deve-se aos impactos da covid-19 (ver caixa), mas também, à acima referida, maior consciência sobre a questão da saúde mental e informação passada.
As pessoas vão “percebendo que existe acesso, há a atenção aos cuidados psicológicos a nível dos centros de saúde primários e também nos hospitais, tanto a atenção dada à psicologia como da psiquiatria, as escolas também encaminham… Então há cada vez mais procura”, analisa.
A maioria dos casos, como diz, tem a ver com ansiedade e depressão.
No que toca aos serviços prestados pelos espaços do adolescente, em particular, estes também fazem intervenção junto às famílias por forma a melhorar a comunicação intrafamiliar e a gestão das emoções.
Um outro lado do trabalho destes espaços são as intervenções em outros locais, destacadamente as escolas, voltadas essencialmente para prevenção de situações como o abuso sexual ou da violência. Por exemplo, da violência no namoro, que “impacta bastante as adolescentes que a sofrem” e o seu futuro, exemplifica.
São questões que hoje se sabem ter impacto na saúde mental.
Com olhos num futuro com menos violência, cidadãos mais felizes e uma melhor saúde mental.
COVID e Saúde Mental
É hoje um dado reconhecido, em todo o mundo, que a pandemia da covid-19, nomeadamente as medidas de confinamento e outras tomadas para a conter, tiveram impactos abrangentes a nível da saúde mental.
Cabo Verde não foi excepção como prova o inquérito nacional “Impactos da covid-19 na saúde mental da população cabo-verdiana” apresentado neste 10 de Outubro, Dia Mundial da Saúde Pública. O inquérito, promovido pelo do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP) e parceiros, revelou um aumento de casos de depressão e ansiedade, particularmente entre as mulheres. Há também mais gente medicada e pacientes, que já tomavam medicação, reforçaram as doses.
Na verdade, o inquérito veio confirmar outros estudos e a percepção dos profissionais de saúde mental e mostra um fenómeno que acontece em todo o mundo: esse agravamento dos problemas da saúde mental, que verifica já desde 2020.
Não é por acaso o lema que assinala o dia mundial da Saúde mental em 2022 é “Fazer a saúde mental e o bem-estar para todos uma prioridade global". A ideia é consciencializar para o cenário actual, e incentivar a uma atenção crescente à saúde mental a nível global, pensando e agindo também a nível global.
“Fazer a promoção da saúde mental para realmente termos uma sociedade mais saudável futuramente”, define a psicóloga clínica Belmira Miranda
Entretanto, dois anos após o início da covid e numa altura em que praticamente se voltou à “normalidade”, os impactos ainda não foram revertidos.
“Não foram, porque surgiram casos quadros de ansiedade, mesmo em pessoas que nunca tinham ansiedade, surgiram fobias, pânico, casos de depressão. Isso foi vindo à tona”, observa.
No que toca às crianças e adolescentes em particular, o impacto da pandemia foi também bastante vincado, nomeadamente com a quebra de vínculos com amigos e a escola e eventuais situações de exposição à violência. Assim, a demanda da procura para casos de transtornos mentais aumentou também nesta faixa etária.
Texto publicado originalmente na edição nº 1089 do Expresso das Ilhas de 12 de Outubro de 2022