Como está o ensino da ciência em Cabo Verde? Do liceu à universidade passando pela Casa da Ciência, espaço importante na promoção da ciência junto a alunos e sociedade, há melhorias, mas ainda muito a fazer.
Vários cientistas cabo-verdianos, que hoje dão cartas no mundo científico, começaram aqui. No histórico Liceu Domingos Ramos, cidade da Praia, os anos passam, mas o objectivo continua a ser formar jovens cabo-verdianos, promovendo escolhas assertivas no seu caminho e dando-lhe as bases possíveis e um bom nível de competitividade para o futuro.
Hoje, tal como ontem, “a educação é o alicerce fundamental do desenvolvimento de Cabo Verde” e o país continua a valer-se da sua capacidade de criar programas e alternativas que visam sobretudo a formação dos jovens, diz o actual director do Liceu, José Augusto Fernandes.
Naturalmente, salvaguarda, há mudanças. Ao longo dos anos, os jovens mudaram, recebem influências diferentes que vêm das próprias mudanças da sociedade e a educação tem de evoluir também.
“Esta geração tem outras características e outros desafios e nós, enquanto pensadores da educação, devemos readaptar” a educação aos novos jovens, por forma a responder aos desafios presentes e futuros. Por exemplo, “não se pode ensinar a matemática da mesma forma que ensinávamos no passado”, ilustra. A tecnologia faz parte da vida das crianças, em todo o mundo, e tem de ser contemplada como parte da motivação dos jovens bem como para “dar resposta aos desafios dessa nova geração”.
A reforma curricular progressiva dos 12 anos de escolaridade em curso é uma prova dessa adaptação, onde a importância das ciências exactas também é reflectida. No ano passado foram introduzidas as reformas do 9.º ano, e este ano há novas matrizes para o 10º ano. “Uma novidade é a introdução da disciplina de matemática em todas as áreas. Isso mostra atenção dada à área científica”, às ciências exactas. Houve também, diz José Augusto Fernandes, um reforço em temos curriculares, desse ensino da matemática e das ciências exactas, “no sentido de criar nos nossos alunos maior interesse e bagagem, promovendo mais conhecimento” nessas áreas.
Entretanto, os próprios professores têm graus académicos cada vez mais elevados. Por exemplo, o coordenador de Matemática do Domingos Ramos é doutorado nessa área.
O processo educativo começa, claro, antes de chegar ao Liceu. A criação dos agrupamentos trouxe uma visão integrada do processo, e o Liceu Domingos Ramos, tal como outras secundárias, passou a ser sede de uma orgânica que inclui duas escolas do ensino básico. Assim, facilita-se a troca de competências e recursos. Os professores do básico coordenam com a sede, trocam referências e, acrescenta o director, “normalmente utilizam os materiais” disponíveis na sede.
“Há um intercâmbio em termos científicos”, e também das línguas, outra área que a reforma educativa reforça, e que irá ajudar os “alunos na questão da internacionalização”.
Mas, voltando ao Liceu, ao longo de tantas décadas, muitas iniciativas de promoção da ciência foram mudando. Outras são intermitentes. Outras ainda, com suas nuances, vão perdurando. Entre as actividades recentes estão a semana da ciência, realizada anualmente, ou as Olimpíadas internas de Matemática, Físico-Química e Filosofia, realizadas pela 1ª vez no ano passado e que contaram “com uma grande adesão dos alunos”.
A ideia é, no projecto educativo e plano de actividades consequente, colocar em prática as áreas disciplinares, e incorporar “um conjunto de desafios que visam sobretudo criar nos alunos melhor capacidades em termos científicos e tecnológicos”, explica.
Quanto aos laboratórios, parte essencial na vertente prática das ciências, há lacunas em todo o país. O Liceu Domingos Ramos não é excepção, apesar do reconhecimento do investimento que tem sido feito pelo governo.
“Temos laboratórios de ciências naturais, de físico-química, mas precisamos de mais materiais no sentido de levar os nossos alunos a ter muito mais ensaios” e poder aliar a componente prática à teórica, diz.
Uma das formas que tem sido usada para colmatar essas falhas são as visitas a várias entidades que permitem essa ligação teoria-prática.
“Temos já programado uma visita ao parque tecnológico do NOSI”, também para despertar interesse na área, “fomentando escolhas acertadas para o futuro”, exemplifica.
E entre as actividades da ciência, o director realça ainda a visita por um grupo “bastante representativo” de alunos do 12.º ano, à Casa da Ciência”, que teve o mesmo objectivo duplo.
Casa da Ciência
A Casa da Ciência, projecto iniciado pelo Ministério da Educação que desde há vários anos está sob responsabilidade da Uni-CV, é hoje um espaço referido por todos os entrevistados sobre o ensino da ciência em Cabo Verde.
Com uma afluência semanalmente de entre 150 a 200 alunos da Praia e Santiago, do pré-escolar ao 12.º ano, e muitas actividades realizadas, a sua “preocupação é tornar a ciência acessível a todos, tanto os alunos como à sociedade em geral”, explica Adelcides Rodrigues, presidente da Casa da Ciência.
No que toca em particular às escolas, seu principal foco, o trabalho é “tentar dar oportunidade aos alunos de contacto com laboratórios, experiências, ou seja, tentar que aprendam a ciência a brincar, de uma forma lúdica”.
As actividades tentam seguir os conteúdos programáticos de cada disciplina/ano e promove-se também formação voltada para docentes e apoio a nível da parte prática.
Além das visitas recebidas no seu espaço, a equipa da Casa da Ciência faz também deslocações às escolas, onde tem constatado, no geral, que “as condições não são muito boas. Há laboratórios, mas não funcionam”, observa. Outras escolas nem sequer têm um laboratório.
Assim, a Casa da Ciência, apoia ainda no fornecimento de materiais como reagentes e consumíveis, para que de facto também possa haver aulas práticas nas escolas. E, nesse âmbito, delineou inclusive o projecto “laboratório para nôs tudu”, que visa tanto o apetrechamento dos laboratórios como a construção de laboratórios “do zero”. O projecto está em fase de busca de financiamento.
Pôr os laboratórios a funcionar nas escolas é, pois, um desiderato. Mas a par com esse objectivo, faz-se, desde já, também a promoção de experiências simples, realizadas com elementos do dia-a-dia, tentando “explicar aos docentes de que forma podem formar uma aula prática tendo em conta os recursos que têm à disposição”, refere.
A nível de fragilidades no ensino de ciências, Adelcides Rodrigues aponta, a par com as dificuldades na investigação, a carência de formação contínua dos professores. “Os docentes do secundário deveriam ter formação contínua dos conteúdos mais práticos para que possam dar uma melhor resposta e, de acordo com a nossa realidade, tentar ver de que forma podem enquadrar as aulas práticas”, explica. Algo, reconhece, que não é fácil devido a constrangimentos vários como a carga horária desses professores.
Uma outra questão que considera importante para promover a ciência nas escolas, é que seja criado em cada Secundária um clube de Ciência, que poderia trabalhar em concertação com as Casas da Ciência (Praia e Mindelo).
Entretanto, a Casa da Ciência está também aberta aos alunos universitários, apoiando-os nos trabalhos práticos. São alunos que à chegada ao ensino superior geralmente apresentam falhas nos conhecimentos práticos. Estas falhas muitas vezes reflectem-se nos conhecimentos teóricos, uma vez que ambos devem ser leccionados em simultâneo para que os alunos possam assimilar os conteúdos da melhor forma. Nesta área, avalia Adelcides, a nova reforma educativa mostra já uma maior preocupação na associação entre teoria e prática.
Seja como for, o problema não parece estar do lado dos alunos. Estes, sim, mostram – e a experiência da Casa da Ciência demonstra-o – um grande interesse na ciência. “Os alunos têm vontade de conhecer, de ver como funciona e tentar fazer alguma coisa, fazem perguntas…”
Quanto às condições da Uni-CV e da Casa da Ciência, ambas estão neste momento bem apetrechadas. A Casa da Ciência, acrescenta, “trabalha juntamente com a Fábrica de Ciência Viva de Aveiro, que está sempre a apoiar no que diz respeito aos materiais laboratoriais. Temos praticamente tudo o que precisamos para ajudar os nossos alunos”, diz.
A Casa da Ciência da Praia cobre essencialmente a ilha de Santiago, mas tem realizado algumas actividades esporádicas nas outras ilhas de Sotavento, nomeadamente Fogo e Maio. A ideia é, já no próximo ano, começar a alargar e aprofundar essas actividades nas ilhas da região.
Há também uma Casa da Ciência da Uni-CV em São Vicente, que trabalha sob os mesmos moldes, no Barlavento.
Universidade
Sandra Freire é doutorada em Química. Do seu percurso como estudante, lembra que, ao terminar o chamado ano zero (12.º ano) em 1996, no Liceu Domingos Ramos, não conseguiu bolsa para estudar fora. Agronomia era a sua escolha. Assim, e para não “ficar parada”, o pai inscreveu-a num bacharelato de ensino de Físico-Química.
“Tínhamos um laboratório, mas muitas limitações de materiais. Havia uma professora ucraniana que até fazia algumas experiências, mas era ela quem fazia, nós só víamos, praticamente não manuseávamos. Só tive a componente prática quando fiz o meu trabalho de final de curso na fábrica da CERIS. Foi aí que aprendi a manipular os materiais de laboratório e quando segui para Portugal não tive problemas, mas houve colegas que sim, tiveram”, recorda.
Terminado o bacharelato, seguiu, pois, para Portugal, para tirar uma licenciatura na mesma área. Depois veio o mestrado e depois o doutoramento em Química.
Hoje é docente na Uni-CV (e Vice-Reitora para as áreas de Ensino, Formação e Inovação Pedagógica), e apesar dos avanços no país na área das ciências e seu ensino, observa que ainda se notam limitações, nomeadamente no secundário.
Nos alunos que lhe chegam às salas das Uni-CV nota que a quase todos faltam bases práticas e há uma deficiência nas práticas laboratoriais. Apenas cerca de 2 % manipulou materiais e reagentes de laboratório antes de chegar à Universidade, arrisca.
Porém, “depois, já no 2.º ano” da faculdade recuperam. Quando terminam o curso, têm já “um bom nível de conhecimento teórico e prático”, considera.
Nota-se também, nos que entram, alguma diferença dependendo do lugar onde estudaram no secundário. Por exemplo, apesar da pouca prática laboratorial, os alunos da Praia, em particular, conhecem melhor alguns materiais, “por causa das acções disponíveis”.
Ora, no entender desta docente, a parte prática é muito importante para criar o gosto pela ciência. E se esse contacto com a área experimental for cultivado desde cedo, melhor. Sandra Freire chegou, inclusive, a estar por trás de um projecto, “Crescer com a ciência”, com alunos do sexto ano numa escola da cidade de Praia. O projecto não perdurou, por falta de financiamento, mas os alunos que nele participaram e que hoje já terminaram o 12.º ano escolheram, na sua maioria, a área de ciências e tecnologia.
Actualmente, a área de ciências é, na verdade, das que mais procura tem. Na Uni-CV a faculdade de Ciências e Tecnologias (FCT) é que tem mais alunos, porém, salvaguarda Sandra Freire, é também a maior.
Mas conforme o grau vai aumentando, mais difícil fica fazer ciência, pelo investimento necessário, nomeadamente em laboratórios. Por exemplo, basta ver que a universidade pública tem na sua oferta formativa apenas um Doutoramento, e é na área das ciências sociais. Entretanto, avança, está a ser preparado um outro, na Escola de Ciências Agrárias e Ambientais, em economia rural para uma agricultura inteligente, avança.
Apesar das imensas limitações, é de referir que, a nível da Universidade, tem havido melhorias substanciais e várias lacunas laboratoriais foram colmatadas com a mudança para o novo Campus.
“Evoluímos bastante, o novo Campus temos mais laboratórios”, inclusive alguns que têm sido montados “no âmbito dos vários projectos científicos de investigação”. Um exemplo é o Incubator, laboratório onde se investiga qual é o subtipo mais frequente de cancro da Próstata em Cabo Verde e Moçambique, e que é financiado pelo programa Gestão em Ciência PALOP e coordenado pela Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação La Caixa.
Quanto aos alunos que se formam na Uni-CV e prosseguem os seus estudos fora, os casos que Sandra Freire conhece, não têm tido “dificuldades quando chegam a outros países”.
Outro elemento importante na formação em ciência, aponta, são os privados. Ainda hoje, apesar de todas as melhorias laboratoriais no ensino superior, o estágio continua a proporcionar experiência prática e de investigação importante.
De qualquer modo, e em jeito de conclusão, Sandra Freire considera que no geral, em Cabo Verde, se vive um momento de maior aposta e investimento na ciência. O grande entrave ao seu desenvolvimento é, porém, o mesmo de sempre: ”o problema são os recursos, disponibilizando recursos, estaríamos bem”…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022.