A justificação da crise não serve para explicar o aumento da criminalidade e os dados existentes indicam que já estivemos numa situação bem pior no passado

PorRedy Lima,31 dez 2022 8:58

Redy Lima - Sociólogo
Redy Lima - Sociólogo

Se queremos analisar a relação entre a criminalidade e as crises em Cabo Verde é necessário lembrarmos que vivemos num arquipélago marcado por sucessivas crises desde o seu achamento.

Que balanço faz do ano de 2022, particularmente a nível dos impactos que a guerra na Ucrânia e o aumento da inflação tiveram na vida das pessoas?

Não há dúvidas que 2022 foi um ano complicado e que isso teve de alguma forma a ver com a guerra na Ucrânia e com a inflação. Contudo, é importante lembrar que a narrativa da austeridade tem pairado sobre o arquipélago já há algum tempo por causa da elevada dívida pública. O certo é que a dupla crise em que vivemos veio agravar ainda mais a situação social e empobrecer a população que já se encontrava em processo de empobrecimento pelo menos desde a segunda metade de 2008. Ela veio apenas levantar véu a uma situação social precária que vários estudos já tinham diagnosticado. O aumento da insegurança alimentar é uma das principais consequências, se bem que é importante ressaltar que apesar dela se ter agravado nos últimos três anos, dados anteriores a 2020 já indicavam essa realidade. Por exemplo, o inquérito do INE sobre o perfil da pobreza em Cabo Verde publicado em 2018 apontava que a grande maioria da população mais pobre (que representa 35,2% da população) considerava que o seu nível de vida piorou nos últimos 4 anos. Cerca de 76,1% das famílias cabo-verdianas inqueridas declararam que a gestão do orçamento mensal era feita com dificuldade (20,8% com muita dificuldade), em particular as despesas com a alimentação. É necessário ter em mente que no ano de 2015 o INE indicava que 20% das famílias mais ricas concentraram 48,7% das despesas realizadas e que no contexto urbano este número aumenta para 56,7%. Como é evidente, a conjuntura atual vem tornar o cenário socioeconómico em Cabo Verde ainda mais problemático, elevando assim os níveis de tensão e risco social.

O que destacaria neste balanço na área da sua especialidade?

A questão da criminalidade urbana volta a ser destaque este ano na Cidade da Praia, como tem sido nas últimas duas décadas. Oficialmente ela tem vindo a ser apresentada como uma consequência da crise em que vivemos. Se queremos analisar a relação entre a criminalidade e as crises em Cabo Verde é necessário lembrarmos que vivemos num arquipélago marcado por sucessivas crises desde o seu achamento. Focando no país pós-independente, antes deste pico da crise, que se intensifica em 2020 com a pandemia, já tivemos outros dois picos: nos anos de 1980 e mais ou menos no período entre 2008 e 2012. Convém lembrar que a criminalidade passa da sétima inquietação dos cabo-verdianos em 2002 para a terceiro lugar em 2008, ultrapassando nesse ano a preocupação com a pobreza. Em 2017 foi apontado como a segunda preocupação, apenas atrás do desemprego. Os dados das ocorrências criminais da PN mostram que a partir do ano de 2008 os números ultrapassam as 20 mil ocorrências anuais (isto apenas com base nas denúncias oficiais na PN), tendo baixado dos 20 mil casos apenas depois do ano de 2019. O ano de 2015, por exemplo, que não é referenciado um ano de pico da crise foi aquele em que foi registado o maior número de ocorrências de crime em Cabo Verde. Atualmente, com base nos últimos dados oficiais (de 2021), houve um aumento de 33%, semelhante ao número de ocorrência registados no triênio 2005/2007. Portanto, a justificação da crise não serve para explicar este aumento e os dados existentes indicam que já estivemos numa situação bem pior no passado. Assim, o fenómeno da criminalidade em Cabo Verde só poderá ser percebido à luz de uma combinação de três grupo de fatores: socio-estruturais; conjunturais; individuais. Por essa razão, o seu combate também deve ser feito de forma combinada e articulada. Infelizmente, apesar de ser necessário reconhecer esforços governamentais e da sociedade civil nessa empreitada, está-se a reproduzir os mesmos erros do passado. Ao referir a isso não estou a afirmar que as instituições governamentais (ou mesmo que a sociedade civil) estejam desorientadas, mas que a sua desarticulação e busca de protagonismo tem dificultado a promoção de medidas realmente integradoras (que convém não confundir com ações isoladas desarticuladas e pontuais) na busca da estabilização de uma cultura de paz.

Perspectivas para 2023?

Para o ano de 2023, acreditando nas afirmações dos vários entendedores da matéria, a situação económica será mais intensa e por isso a situação social tornar-se-á mais precária e tensa. No entanto, quero acreditar que algumas medidas governamentais já apresentadas, se bem conduzidas, poderão atenuar o impacto da crise em algumas famílias. Em termos de medidas de mitigação da criminalidade, entendo que como já aconteceu no passado, as operações especiais da polícia (ou se quiserem, a repressão) que tanto se fala poderão contribuir para a diminuição das ocorrências, mas caso não se avançar com um robusto programa de inclusão social combinado e articulado, voltaremos a ter novos picos de criminalidade no futuro. Convém não esquecer que esta é o quinto grande pico de criminalidade: o primeiro foi entre 2000/2001, seguidos de 2005-2006, 2011/2012 e 2015/2016. Tem havido operações especiais policiais desde o ano de 2005 com a introdução do discurso da tolerância zero e o encarceramento em massa a partir de 2010 (quando a população carcerária aumentou 280%) e em vez da criminalidade baixar, ela simplesmente explodiu. Por isso, espero que se encarre este problema de forma mais séria a partir do próximo ano e que de uma vez por todas se despartidarize a questão da criminalidade e se trabalhe de forma colaborativa numa tripla aliança: entre o Governo central, as entidades municipais e a sociedade civil, com destaque para as associações comunitárias, sem as quais, para o bem e para o mal, torna-se bastante difícil desenvolver uma política de segurança realmente de proximidade e por extensão, inclusiva e eficaz.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1100 de 28 de Dezembro de 2022.  

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Autoria:Redy Lima,31 dez 2022 8:58

Editado porAndre Amaral  em  22 set 2023 23:28

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