Mindelo a sambar contra a crise (ou apesar dela)

PorNuno Andrade Ferreira,19 fev 2023 10:54

Preços altos, materiais em falta e problemas com estaleiros. As dores do Carnaval mindelense, em ano de retoma, não impedem que a festa regresse às ruas da cidade, com a novidade dos desfiles na noite de terça-feira.

Como quem não quer a coisa, passaram três anos desde que, pela última vez, em 2020, o Carnaval desceu às ruas da Morada. Desta vez não há pandemia, guerra na Ucrânia, seca, preço do pão, falta de cebola, escassez de lixívia ou outra crise qualquer capaz de impedir o regresso da festa do Rei Momo à ilha que a vive como só ela.

Na terça-feira, 21, quatro grupos irão desfilar no centro da cidade e, no final, um será eleito campeão. Por esta ordem, Flores do Mindelo, Estrela do Mar, Cruzeiros do Norte e Monte Sossego apresentarão ao público mindelense – e a todos aqueles que visitam São Vicente por esta altura – as suas ‘criações da retoma’.

Flores do Mindelo

O Flores do Mindelo pisará o asfalto, Rua de Lisboa acima, pelas 18:30. Com o desfile oficial à espreita, os dias são de azáfama, entre imprevistos e últimos detalhes. Ana Soares, presidente do grupo, fala num Carnaval aguardado com saudade, mas feito com sacrifício.

“Este ano, por causa da pandemia, estamos a ter muitas dificuldades, nomeadamente na aquisição de materiais para confecção dos andores e das vestimentas e também devido aos preços da mão-de-obra, que estão elevados. O Carnaval deste ano é feito por amor, porque estamos há três anos sem Carnaval”, refere.

Ana Soares explica que, para além do aumento dos gastos com materiais, também há escassez de adereços.

“Por exemplo, antes compravas um platex por 1.600 escudos e este ano está por 3.600. Sem falar que não estamos a conseguir encontrar cores, tecidos e outros materiais utilizados para confecção dos trajes. O pessoal das lojas não conseguiu viajar ou mandar trazer. As penas estão escassas, até no Brasil há dificuldade em encontrar penas. Estamos a passar muitas dificuldades com as confecções”, comenta.

Apesar das dificuldades, Ana Soares garante que o grupo está a trabalhar para apresentar um Carnaval à altura de São Vicente. “Renascer num voo” é o enredo, num retrato do turbulento voo da Fénix.

O grupo Flores do Mindelo inovará com a apresentação de duas princesas, dois reis e duas rainhas.

“A nossa expectativa é que haja um bom Carnaval. Estamos a trabalhar para ultrapassar as dificuldades e renovar muitas coisas, para que possamos sair do fundo”, ambiciona Ana Soares.

Nos últimos anos, Flores do Mindelo não tem ido além do último lugar na classificação geral.

Estrela do Mar

Estrela do Mar regressou ao Carnaval de São Vicente em 2019, depois de sete anos de paragem. A ambição é clara: regressar ao topo. O grupo será o segundo a entrar na Rua de Lisboa, não longe das 19:00.

Sem fugir à regra, nos estaleiros, ateliers de costura e local de ensaios trabalham-se detalhes para que tudo esteja pronto a tempo da grande terça-feira. É isso que diz Fernando Fonseca, presidente da colectividade, que fala numa retoma marcada pelas dificuldades.

“Não está fácil, mas estamos arduamente a lutar para contrabalançar toda esta situação. Já estávamos a contar com isto, temos é de atingir os nossos objectivos. Depois do nosso regresso, já desfilámos duas vezes e tínhamos a intenção de acelerar, para fazer cada vez melhor. Não é por causa da pandemia que vamos fazer ao contrário. Não está a ser fácil, mas continuamos a trabalhar. Tudo está mais caro, a vida está mais difícil em Cabo Verde, os figurantes também não estão com muita disponibilidade financeira”, destaca.

Sem surpresas, financiamento, escassez de matéria-prima e precárias condições de trabalho estão entre os principais constrangimentos.

“Mesmo assim, tem muita gente de boa vontade e entidades que querem ver um bom Carnaval. Não vamos enviar uma mensagem apenas negativa, para dizer que não estamos a ter patrocinadores. Estamos a ter, sim, não como o habitual e entendemos as razões, mas muita gente está a mostrar a sua boa vontade. Cabe aos grupos gerir a situação e fazer o que pretendemos”, defende.

“Nô salvá nôs planeta azul” serve de mote para o enredo do Estrela do Mar.

Cruzeiros do Norte

Cruzeiros do Norte será o terceiro grupo a entrar no sambódromo, quando os relógios marcarem 19:30. Jailson Juff, presidente da agremiação, garante que o grupo da zona de Cruz João Évora está a trabalhar para resgatar o título de campeão.

O grupo enfrentou dificuldades para encontrar um espaço para a construção dos carros alegóricos, o que originou algum atraso no arranque dos trabalhos.

“Tivemos de criar as condições de estaleiro, que não tínhamos, depois enfrentámos constrangimentos na aquisição dos materiais, que estão muito caros, três vezes mais caros, também há escassez de materiais e temos de procurar soluções alternativas”, explica.

Juff quer que todo o evento seja pensado no sentido de garantir uma maior previsibilidade de receitas e maior estabilidade aos grupos, com condições de trabalho mais adequadas.

“Gostamos muito de fazer o Carnaval, mas não pode ser nestas condições. Temos de ter outras condições de trabalho, porque nas condições em que trabalhamos, se chove ou se faz mais vento, corremos o risco de perder os trabalhos e não conseguir recuperá-los a tempo”, alerta.

“Três kôsa sab na vida: saúde, dinheiro, amor” é o tema proposto pelo carnavalesco Fernando Morais.

“Uma ideia do nosso carnavalesco, que partiu de uma música espanhola que ouvia numa boneca, quando era criança. Já tinha a ideia em fazer o enredo e entendeu que esta era a hora certa, depois do mal que passámos devido à pandemia”, avança Jailson Juff.

Monte Sossego

Monte Sossego será o último a pisar o sambódromo do Mindelo, às 20:00. O grupo espera manter em casa o título conquistado em 2020. O presidente, António Duarte, fala em criatividade para contornar desafios.

“Neste momento, o ritmo é satisfatório. A nossa perspectiva é que no momento certo estaremos prontos para apresentar, mais uma vez, um grande desfile”, desvenda.

“O cabo-verdiano sempre foi um povo que encontrou dificuldades em todos os momentos do nosso percurso histórico, isso caracteriza a nossa essência e quando falamos do Carnaval não é uma área diferente daquilo que é o todo da sociedade. Se temos dificuldades inerentes à realização do Carnaval, isso faz com que aumentemos a nossa criatividade”, declara.

O líder de Monte Sossego fala em “escala de preços jamais vista”.

O enredo, “povo das ilhas quer um poema diferente”, é inspirado na obra do poeta Onésimo Silveira. Um “grande manifesto”, originalmente pensado para o Carnaval 2021.

Um dos destaques do desfile vai para a bateria composta por cerca de 160 ritmistas, o que deverá representar perto de 10% do total de foliões no asfalto.

“As pessoas vão perceber a potência da bateria, sonora e de qualidade do ritmo que o mestre Edir Brito pretende levar para o desfile. Desde 2015 temos feito um esforço para que as nossas alegorias tenham a sua deslocação autónoma. É uma questão que traz uma estética diferente ao desfile”, completa o presidente do grupo.

Pela primeira vez, o desfile dos grupos oficiais que participam no concurso será feito à noite. Para isso, foram instalados 400 projectores LED, ao longo do percurso. O sistema de som também foi melhorado, para evitar zonas sem música. Existem três mil lugares sentados.

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A divulgação dos resultados será feita na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, a partir das 15h00.

A concentração dos grupos será na Praça Dom Luís e Avenida Marginal. O trajecto levará os foliões a cruzar Rua de Lisboa, Avenida Baltazar Lopes da Silva, Praça Amílcar Cabral, Avenida 5 de Julho e Rua Cristiano de Sena Barcelos.

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Samba também de volta

Como habitualmente, a Escola de Samba Tropical fará o seu desfile na noite de segunda-feira, dia 20. O regresso pós-pandemia foi uma incógnita até meados de Dezembro, devido à falta de espaço para o estaleiro.

A poucos dias do Carnaval, o presidente da Escola, David Leite, garante que os preparativos estão a decorrer de forma satisfatória, mas atípica.

“Foi um arranque extremamente difícil. Desde que estou como dirigente no Carnaval, não tenho recordação de ter um Carnaval tão conturbado devido às razões que conhecemos. Os subsídios continuam a ser os mesmos valores dos carnavais anteriores, sendo que estamos a comprar num contexto em que tanto os materiais como a mão-de-obra registaram uma duplicação de preços”, observa.

Para minorar a falta de materiais no mercado, o grupo recorreu à reciclagem de produtos usados em 2020.

“Tivemos de recorrer a muita reciclagem, principalmente dos materiais de base, como ferro, madeira, etc. Em materiais de acabamento, já não, porque foram três anos sem Carnaval e o desgaste já não permitiu recuperar muito. Tivemos de recorrer a mercados fora do país, Brasil e Dakar, com todos os problemas de transporte e custo. Temos materiais que foram comprados no Brasil e que ainda não chegaram e estamos meio com o ‘coração na boca’ para chegarem a tempo. Reciclámos muito e tivemos de improvisar”, resume.

Apesar de tudo, as perspectivas estão em alta. O enredo gira em torno da história dos desfiles do próprio grupo, com uma homenagem especial a Luísa Morazzo.

com Lourdes Fortes

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1107 de 15 de Fevereiro de 2023. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,19 fev 2023 10:54

Editado porSheilla Ribeiro  em  8 nov 2023 23:28

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