“Produzimos a cidade de maneira muito individual”

PorNuno Andrade Ferreira*,18 mar 2023 7:16

Trabalhar no planeamento urbano para evitar a desfragmentação do território. Analisar localmente e responder caso a caso. Envolver as comunidades e mudar o discurso. O Expresso das Ilhas e a Rádio Morabeza pediram a quatro arquitectos que pensassem em soluções para os problemas habitacionais em Cabo Verde. Este é o resultado.

Défice quantitativo, casas degradadas, construções precárias e clandestinas. Apesar dos projectos desenvolvidos por sucessivos Governos, o país ainda não consegue garantir a todos os cidadãos o direito constitucional à habitação condigna.

O problema é especialmente grave nas cidades, onde moram mais de 7 em cada 10 cabo-verdianos (73,9% da população, conforme o Censo de 2021; 61,8% em 2010). O êxodo rural continua a ser uma realidade, com migração interna de quem procura melhores condições e perspectivas de vida.

O bastonário da Ordem dos Arquitectos, Job Amado, aponta para a necessidade de se avaliarem as respostas que têm sido dadas, para que, a partir daí, sejam traçadas soluções eficazes.

“Muitas vezes, registamos ausência de políticas para este sector, para lá de algumas iniciativas desajustadas. Produzimos a cidade de maneira muito individual, cada proprietário um terreno. Isso já não existe nas cidades nos países desenvolvidos. A habitação no meio urbano é, quase na totalidade, de produção colectiva. Isso pode fazer parte das políticas, para além de políticas de subsidiação, que são necessárias para a franja da população que não tem posses”, destaca.

Até 2030, as necessidades habitacionais do país estão fixadas em cerca de 26 mil casas. Números que constam do já muito debatido Perfil do Sector de Habitação, estudo de 2019, elaborado sob tutela do Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação.

O arquitecto Cesar Freitas nota que, para se ter oferta à altura da procura, a habitação não pode ser tratada à margem do ordenamento do território.

“É um desafio grande, não só para Cabo Verde, mas para muitos países. O primeiro aspecto é termos esta consciência de que é [preciso] pegar neste sector de habitação e ordenamento do território e levá-lo a um nível de exigência superior ao que temos tido até agora. Temos tido algum sucesso, mas também retrocessos. Temos que perceber que não podemos continuar a avançar por um lado e recuar por outro”, menciona.

César Freitas considera ser tempo de se passar da teoria à prática, dos estudos às políticas.

“O diagnóstico penso que está minimamente feito. Temos estudos que apontam para o conhecimento desta realidade da habitação, o perfil da habitação. No fundo, temos dados suficientes para desenvolvermos uma política diferente, do ponto de vista macro”, declara.

Nesse exercício de desenhar políticas que funcionem, a diversidade territorial, as especificidades de cada município e de cada ilha devem ser tidas em conta. É pelo menos essa a convicção da arquitecta e urbanista Clessi Soares.

“Sempre apostamos na autoconstrução. Porque não trazer esta temática como um pilar central na redução do défice habitacional? Como é que vamos conseguir ajustar o sistema existente à solução de construção pouco a pouco? Como se faz? Como ajustar o sistema de licenciamento a esta tipologia?”, questiona.

“É entender a realidade e, a partir daí, procurar soluções para a habitação”, sintetiza.

Nuno Flores, que integrou a equipa do Outros Bairros, projecto que permitiu uma intervenção profunda no bairro de Alto Bomba, no Mindelo, vai mais longe, apelando a que, antes de mais, se compreenda o fenómeno do crescimento urbano e se conheçam as periferias que crescem em torno das cidades.

“Na verdade, é necessário compreender esse modo de vida e fazer um investimento claro nessa área. Haver uma alteração de geografia da iniciativa pública, tirando-a apenas dos lugares onde habitualmente está, as marginais, os centros históricos, que são áreas que já têm algum nível de consolidação, e não replicar esse modo de vida nos sítios que crescem teoricamente de forma desorganizada”, comenta.

Também César Freitas sublinha que a política habitacional não pode descurar aquilo que define como um “upgrade territorial”, preenchendo os vazios urbanos, criando uma lógica de continuidade da cidade.

“A qualidade de vida das pessoas é feita através do upgrade territorial, não tenho dúvidas de que essa é a via única para resolvermos o problema de habitação. Consolidar as cidades, ou seja, preencher os vazios urbanos e intervir no upgrade das construções ou das zonas que ainda têm um défice qualitativo de construção, muito mais do que criar novas zonas, como tem sido feito até agora”, evidencia.

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A pobreza e a segregação espacial fragmentam o território, reagrupando-o por classes sociais, com disparidades no acesso a bens e serviços. O planeamento tem a capacidade de determinar o surgimento e ‘organização’ de novas zonas. É isso que explica a urbanista Clessi Soares.

“Conforme o desenvolvimento da cidade vai acontecendo, as pessoas vão adquirindo terrenos nas zonas periféricas, só que o que acontece é que o planeamento tem chegado depois dos assentamentos. As nossas cidades começaram sem planeamento e fomos ajustando de forma a servir o contexto de cidade”, realça.

Não é fácil transitar de um modelo de continuidade e consolidação. Implica, defendem os especialistas, trabalho transversal de vários intervenientes.

Acrescenta o arquitecto César Freitas que um território bem planeado, com atribuição de diferentes funções a diferentes áreas, torna a vida de uma comunidade mais fácil e agradável, permitindo uma melhor fruição do espaço.

“O planeamento urbano e territorial é fundamental para podermos analisar o manancial de aspectos que interferem com a vida das pessoas, para fazer com que a vida das pessoas seja o mais agradável e eficiente possível, para melhor qualidade de vida e menor custo”, repara.

Fugir ao óbvio

Virar a página também implica, assim o dizem os profissionais ouvidos por Expresso das Ilhas e Rádio Morabeza, a promoção da sustentabilidade, com soluções criativas.

Isto significa, entende o arquitecto Nuno Flores, ir além da construção em série e mudar a retórica em torno dos problemas existentes e daquilo que se pretende alcançar.

“As políticas públicas não se devem centrar apenas na construção de casas em série – que não acompanha e não anda à velocidade com que as pessoas precisam das casas e das terras. Deve haver um equilíbrio e perceber como se constrói uma visão do lugar, de como é que os lugares estão a acontecer”, entende.

“Também não deve ser construído o discurso de que ‘vamos erradicar barracas’. A coisa acontece mediante a necessidade das populações. Podemos é construir uma política que seja contínua, que não tenha prazos e aconteça de maneira a que as pessoas possam, inclusive, substituir barracas por casas com melhor tecnologia construtiva, que não tem que ser com betão. Há muitas coisas que se fazem e que podem ser alternativas, eventualmente, mais adequadas”, acrescenta.

Clessi Soares recorda que no mercado cabo-verdiano existe um conjunto de materiais sustentáveis que podem ser aproveitados, combinando técnicas antigas com inovação.

“Gosto muito de falar sobre arquitectura vernacular. Começarmos a olhar para a casa de pedra, com as técnicas que estudamos na universidade. Começar a olhar para isso com um outro olhar. O que podemos aproveitar das técnicas antigas e como é que podemos ajustá-las à nossa realidade? Estamos a falar de materiais que temos disponíveis localmente”, relembra.

Pedra, cal e barro estão na base de técnicas de construção usadas por gerações. A arquitecta Clessi Soares propõe que se revisitem essas práticas.

Outros caminhos – alternativos ou complementares – podem ser seguidos. O envolvimento dos beneficiários é um deles, recorda César Freitas.

“A mão-de-obra na construção é um valor importante. Os futuros moradores, aqueles que têm disponibilidade, poderiam participar na execução das construções, não só para terem um rendimento, mas para vinculá-lo, no fundo, à própria construção, a uma satisfação em termos da construção da própria casa”, ilustra.

Em perspectiva

A crise habitacional não é um problema exclusivo de Cabo Verde. A ONU Habitat realça que as cidades são locais geradores de riqueza, mas também concentram pobreza e desigualdades.

A agência das Nações Unidas dedicada à promoção de cidades mais sustentáveis e inclusivas refere que o cumprimento dos objectivos de desenvolvimento sustentável depende da capacidade de acabar com a pobreza e disparidades em meio urbano.

“Nos países em desenvolvimento, os bairros de lata e os assentamentos informais são a manifestação espacial mais duradoura da pobreza e da desigualdade”, lê-se no último relatório global da organização, editado em 2022.

Números da ONU apontam que a taxa de pobreza urbana na África Subsaariana é onze vezes mais elevada do que noutras regiões do globo, como América Latina e Caraíbas e os sinais apontam para um agravamento desta tendência.

*com Lourdes Fortes

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1111 de 15 de Março de 2023.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira*,18 mar 2023 7:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  20 mar 2023 17:31

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