Inflação e burocracia desafiam jovens empresários

PorSheilla Ribeiro,25 mar 2023 9:07

De um lado, a inflação. Do outro, o consumidor sem dinheiro. Aflito entre eles, o pequeno empresário. A Associação dos Jovens Empresários de Cabo Verde (AJEC) e a Associação Jovem Empreendedor de Cabo Verde (JovEmCV) apontam a dificuldade no acesso ao financiamento devido à burocracia como um dos maiores desafios para os empreendedores, mas também querem que as políticas de apoio anunciadas pelo Governo sejam postas em prática.

Em Maio de 2016, o jovem Amilton Maurício Gomes abriu uma empresa de prestação de serviços. Em Dezembro de 2022, decidiu investir na restauração. Mas hoje, em 2023, conta que os dois empreendimentos passam por muitas dificuldades, já que depois da pandemia vieram as consequências da Guerra na Ucrânia.

O jovem empresário afirma estar prestes a declarar falência na empresa de prestação de serviços. Quanto ao restaurante, se nada mudar dentro de três meses terá de fechar as portas. Muitas das dificuldades pelo que passam as empresas são devido à burocracia para ter acesso aos apoios de retoma económica anunciados pelo Governo.

“O Estado mostra muitas soluções, mas há muita burocracia e quando a pessoa vai pedir uma declaração, as instituições não ajudam. Sem falar que, às vezes, o próprio Estado é o devedor. Eu, por exemplo, prestei serviço ao Estado e tenho facturas desde o mês de Novembro, são quase cinco meses sem pagar, o que afecta a tesouraria das pequenas empresas como a minha”, desabafa.

As dificuldades são tantas que o empresário aponta que a receita, na restauração, teve uma queda de quase 70%. Daí que refere que se não conseguir nenhum apoio, fechar é a única saída.

Para este jovem, a queda na facturação tem a ver, sobretudo, com o facto de os preços no mercado estarem actualmente volúveis, o que leva à falta de confiança do consumidor. Aliás, frisa que sem confiança, as pessoas não conseguem consumir.

“Só para dar um exemplo, numa semana temos de mudar o preço de um produto duas ou três vezes porque hoje posso comprar uma matéria-prima por 1.800 escudos e amanhã comprar a mesma matéria-prima por cerca de 2.400 escudos. Às vezes constatamos um aumento de quase 60% num produto de uma semana para outra”, demonstra.

Factor que afecta o cofre da empresa que nem sempre opta pelo aumento do preço das refeições para não afectar o bolso do cliente. Mas, sem aumentar o preço das refeições, a empresa tem a sua margem de lucro afectada e, consequentemente, a conta final também.

“Há menos venda, mas os custos fixos aumentaram. A inflação é dos maiores desafios e não vejo o Estado a tomar nenhuma iniciativa porque as empresas têm fixado preços a seu bel-prazer e quando compramos a grosso, deixam que haja ruptura no mercado por dois ou três dias para depois aumentarem ainda mais os preços. O nosso sistema de economia não controla isso”, denuncia.

Segundo Gomes, uma outra consequência do aumento do custo de vida, tem a ver com os deliverys, que registaram uma queda de mais de 80%.

Já os pratos do dia que custavam 300 escudos, hoje são vendidos, na melhor das hipóteses, por 500 escudos, devido à instabilidade dos preços dos alimentos.

“Um dia desses comprei duas cebolas por 150 escudos, quando antes comprava dois quilos de cebola pelo mesmo valor. Por exemplo, o dinheiro com que compro hoje dois pacotes de leite: antes, com mais 50 escudos, dava para comprar seis pacotes”, lamenta.

O aumento generalizado dos insumos fez com que este empresário que antes tinha cinco empregados na restauração, agora tenha apenas dois. Quanto à empresa de prestação de serviços, sete dos 10 funcionários tiveram de ser mandados para casa no passado sábado, 11, devido a dificuldades financeiras.

AJEC aponta desafios para sector empresarial jovem

O presidente da AJEC, Lenine Mendes, ressalta que o empreendedor enfrenta, diariamente, vários desafios. Mas as adversidades tornaram-se maiores com as sucessivas crises, agora acompanhadas da inflação, aumento de preços de energia, combustíveis, alimentação, habitação e matérias-primas.

De resto, frisa que as circunstâncias actuais atrapalham e impactam na decisão de criar um negócio. As mesmas circunstâncias que fizeram com que muitos negócios em todas as áreas, sobretudo de turismo e de transportes, fechassem as portas.

“Mas também houve oportunidades para vários negócios. Uma das formas de minimizar os impactos da crise é a aposta no digital. Vivemos num mundo de incertezas e num mundo de desafios e hoje vemos que o tema que está à tona é a inteligência artificial, moeda digital, cibersegurança. Será que isso será uma ameaça para os negócios actualmente? Sim e não”, observa.

Lenine Mendes aconselha os jovens empresários a apostarem no digital, não importa qual seja a área de negócio para que o mesmo não se torne numa ameaça, sobretudo no contexto de crise e de inflação.

Uma outra forma de contornar os impactos da crise é a aposta na internacionalização dos negócios. Não apenas no mercado europeu, mas também nos mercados africano e americano.

“Por exemplo, temos o mercado da CEDEAO e na américa o The African Growth and Opportunity Act (AGOA), que foi implementado pelos EUA em 2000 e estabelece o acesso ao mercado americano sem tarifas de alfândega a cerca de 6.500 produtos de 39 países africanos, desde petróleo a bens agrícolas”, sugere.

Mas, conforme salienta, os empresários cabo-verdianos não exploram esses mercados devido à burocracia para conseguir o licenciamento dos produtos.

Entretanto, com ou sem as crises, o presidente da AJEC precisa que há outras dificuldades que travam o desenvolvimento do tecido empresarial cabo-verdiano. Como é o caso da irregularidade das ligações inter ilhas.

“Queremos que o tecido empresarial na ilha do Maio e em Santo Antão funcione e não se consegue porque não há ligação marítima ou é deficitária. Não temos a garantia de que todas as segundas-feiras o barco vai estar na Boa Vista”.

“Posso querer abastecer o hotel RIU na Boa Vista, mas o hotel não quer saber se o barco atrasou ou não e temos vários outros exemplos”, argumenta, acrescentando que também é necessário repensar as políticas e investir nos recursos naturais do país para que o empresariado nacional funcione.

Segundo Lenine Mendes, um dos factores que mais preocupa o jovem empresário, neste momento, é a informalidade e a concorrência desleal.

Conforme explica, considera a informalidade uma concorrência desleal, porque ao abrir uma empresa, o empreendedor deve pagar os custos dos encargos que não são pagos pelos informais.

“O que nos leva a uma outra questão. Uma pessoa no desemprego tenta abrir o seu negócio, encontra muita burocracia, vai ao banco e este não financia porque não tem garantia, ou impõem uma taxa de 8% ao invés de 3,5% que o Governo prometeu, então opta pela informalidade”, especifica.

Teoria vs. Prática

Lenine Mendes reconhece e parabeniza as medidas que o Governo tem tomado neste momento “que não é fácil”. Como exemplo, cita o plano da retoma económica cuja linha de crédito é de cerca de 9 milhões de contos para o reforço da tesouraria, com crédito ao investimento com prazo de 10 anos e a taxa de 3,5% ao ano.

“O Governo lançou incentivos fiscais e financiamento para investimentos, mas, na prática, isso não acontece. Na prática, quando os jovens empresários ou promotores de negócios criam o seu projecto, o Governo entra com 20% de garantia para que se consiga financiamento junto da banca. Mas quando vai ao banco, encontra um grande entrave, a burocracia”, delata.

Além da burocracia, o presidente da AJEC relata que ao invés de taxas de juros de 3,5% anunciados pelo executivo, os bancos aplicam uma taxa de 8%, dependendo da sua política. Isso acaba por forçar o empreendedor ou o promotor do projecto a aceitar os 8% ou a desistir.

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“Queremos que as leis que foram criadas sejam efectivadas, que sejam cumpridas na íntegra. Todos os dias o Governo anuncia novas leis, mas o tecido empresarial cabo-verdiano muitas vezes não sente na prática essas políticas. Não estamos a dizer que não há boa vontade, mas na prática não é o que acontece”, declara.

O combate à criminalidade é outra reivindicação da AJEC que afirma que este flagelo tem deixado os empresários apreensivos, sobretudo na capital do país. Justiça fiscal também é preciso.

“O Estado deve pagar o fornecedor na hora, assim como exige do contribuinte. Recebemos vários emails da administração fiscal com alerta de coima devido a atrasos de alguns dias em pagar impostos. O Estado passa meses ou até anos a dever, mas não podemos fazer o mesmo. Isto afecta bastante a tesouraria da empresa, principalmente empresas de jovens”, ressalta.

Uma outra lei que deve ser posta em prática, segundo a AJEC, é a do REMPE que estipula que 25% das compras públicas e 10% das empreitadas são para as micro, pequenas e médias empresas.

Neste sentido, Lenine Mendes defende que deve haver uma catalogação das empresas REMPE para que as oportunidades sejam dadas às empresas mais pequenas e que estas possam concorrer em pé de igualdade com as maiores.

“Pedimos que seja feita uma diferenciação positiva para as micro, pequenas e médias empresas de acordo com as suas ilhas”, advoga.

JovEmCV diz que falta de financiamento leva à fuga de jovens para o exterior

De uma simples página do Facebook cujo objectivo era ser um intermediário entre os jovens e as oportunidades, surgiu, em 2019, a Associação Jovem Empreendedor de Cabo Verde (JovEmCV), que hoje tem cerca de 30 membros, entre potenciais empreendedores – pessoas que pretendem futuramente formalizar os seus negócios – e jovens empresários.

Hoje, a associação está assente em dois pilares. O primeiro, é o pilar digital que visa promover a inclusão digital. O segundo, é o social, que procura mostrar aos jovens que podem empreender nas suas comunidades e ali gerar rendimento.

Assim como a AJEC, para o presidente da JovEmCV, Paulo Semedo, a falta de financiamento continua a ser o factor que mais aflige muitos jovens empreendedores e empresários.

“Temos jovens em Cabo Verde com ideias brilhantes, que sabem o que querem, mas normalmente não têm meios, e um desses meios é o financeiro para executarem o seu negócio. O Estado devia criar um mecanismo, um meio mais apropriado para que os jovens tenham acesso directo ao financiamento”.

“É preciso diminuir alguns aspectos burocráticos que existem até os jovens chegarem à banca e até os jovens conseguirem os financiamentos”, constata.

Conforme apontou, há muita fuga de jovens para o exterior, precisamente pelas burocracias e dificuldades no acesso ao financiamento.

“Tenho uma ideia, vou ao banco pedir financiamento, se receber um não, desisto da ideia e opto pela emigração a procura de uma vida melhor. Temos notado muita fuga de jovens empreendedores”, sustenta.

O que também tem atrapalhado os negócios e travado muitas decisões de investimento é a alta dos preços, especialmente os preços dos bens essenciais, conforme Paulo Semedo.

Por esta razão, a JovEmCV vem incentivando os jovens a empreenderem colectivamente, perante o cenário económico actual.

“Temos apostado muito na realização de conversas abertas nas comunidades, no sentido de mostrar aos jovens que se empreenderem colectivamente, conseguem diminuir os custos. Os preços estão altos, mas se numa comunidade houver cinco jovens que resolverem criar uma sinergia, conseguem ultrapassar a barreira que existe”, justifica.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,25 mar 2023 9:07

Editado porJorge Montezinho  em  14 dez 2023 23:28

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