O Expresso das Ilhas foi conhecer a percepção das organizações da sociedade civil sobre o actual estado da Nação. Política, segurança, justiça, poder de compra dos cabo-verdianos e empreendedorismo foram apontados entre as maiores fragilidades do país.
Em conversa com a Rede das Associações Comunitárias e Movimentos Sociais da Praia (RACMS), o porta-voz, Gerson Pereira, sublinha que o país experimentou ganhos e conquistas consideráveis ao longo dos anos, em níveis sanitário, educacional, urbanístico, social e económico. Contudo, este representante defende que muito mais poderia ser feito ao longo das quase cinco décadas de independência.
“A sensação que temos é de que muito mais poderia ter sido feito nestas quase cinco décadas de independência. Do ponto de vista económico, não obstante os impressionantes números que a nossa economia tem registado, é perceptível um pouco por todo o país e, especialmente nas comunidades mais pobres, a difícil situação em que vivem as famílias. Enquanto líderes comunitários, testemunhamos diariamente situações de famílias que têm passado fome de portas fechadas, famílias que não conseguem ter acesso aos cuidados básicos de saúde por falta de recursos, que vivem de forma pouco digna com o teto a ‘cair-lhes sobre a cabeça’, sem acesso aos bens básicos como água potável e electricidade”.
A nível político, a RACMS que reúne todos os líderes comunitários que lidam diariamente com as preocupações e questões das comunidades, defende que as “quizílias partidárias” continuam sendo o maior entrave ao processo de desenvolvimento do país.
“Temos uma classe política que continua priorizando a defesa dos seus interesses e dos interesses do seu partido em detrimento das necessidades e anseios do povo. Uma democracia que, para muitos, só funciona no período das eleições, tendo em conta que quando se trata do acesso a recursos, da gestão de bens públicos, da transparência, da igualdade de acesso a oportunidades, do envolvimento da sociedade civil no processo de decisão, a democracia não funciona”.
O porta-voz da RACMS classifica que o actual estado da Nação proporciona uma sensação de “falsa liberdade que assombra as pessoas, que muitas vezes optam por “silenciar-se perante situações de injustiça e desigualdade, por medo de represálias e perseguição”.
“Lamentavelmente, a sensação que existe é que temos uma sociedade passiva, pouco consciente da sua força cívica. O fanatismo, o individualismo e a manipulação partidária da sociedade muitas vezes dificultam o despertar, a conscientização política e, consequentemente, condicionam o exercício do direito cívico”.
Sociedade
Diante das dificuldades sociais, a violência que se tem tornado uma pauta rotineira por todo o país, a RACMS sugere uma aposta maior na igualdade de acesso a oportunidades através da valorização do mérito, na equidade do acesso a recursos, na promoção da transparência, na boa gestão da coisa pública, bem como na adopção dos princípios fundamentais de liderança servidora.
No que tange à vida social, Gerson Pereira acredita que actualmente a sociedade vivencia uma grande crise de valores, onde princípios humanos importantes como a empatia, a sensibilidade, a humanidade e o respeito ao próximo estão se perdendo aos poucos.
“Acredito que a degradação dos valores sociais seja um pouco, também, por culpa da ausência do papel da família e da sociedade (escolas, igrejas, grupos de pares) da influência das mídias digitais e da ausência de políticas públicas capazes de fomentar a vida social sadia. E com isto surgem os grandes desafios que temos hoje na nossa sociedade como a violência, a criminalidade, o uso de drogas, a prostituição, etc., etc. Cremos que o verdadeiro desenvolvimento do país passa pela conscientização comunitária e empoderamento das famílias e das lideranças comunitárias para mudança de mentalidade”.
Poder de compra
Por sua vez, a presidente da Associação para Defesa do Consumidor (ADECO), Eva Marques, indica que o actual estado da Nação configura momentos de grande dificuldade financeira para o consumidor, dado o elevado nível inflaccionário em Cabo Verde e no mundo. O aumento dos preços dos produtos e serviços, constantemente, sendo que muitos destes serviços e produtos são de natureza essencial para o consumo diário, obriga a uma prioridade máxima ao ambiente do consumidor, tornado-se primordial garantir o acesso aos bens essenciais.
“Não raramente, assistimos ao aumento de preços e serviços entre 50% e 100%. A questão não é a disponibilidade dos produtos mas, sim, o acesso económico aos mesmos, principalmente em se tratando de bens essenciais para a nossa sobrevivência com dignidade, seja ele o preço da água, dos alimentos essenciais para a nossa dieta saudável, da electricidade, da habitação, da educação básica, da segurança ou da saúde”.
Juventude
A Associação do Jovem Empreendedor de Cabo Verde (JovEmCV) tem como objectivo reunir e apoiar jovens empreendedores, e serve como uma plataforma de networking, aprendizagem, suporte e promoção para os jovens que desejam iniciar e desenvolver seus próprios negócios. Paulo Semedo, porta-voz da JovEmCV, diz que o ecossistema empreendedor está-se expandindo, com o surgimento de incubadoras, aceleradoras e espaços de coworking que apoiam o empreendedorismo jovem. Perante as iniciativas de empreendedorismo, o acesso ao financiamento é apontado como o principal desafio para uma boa parte dos jovens empreendedores.
“É importante que o Governo desenvolva e promova programas de financiamento específicos para empreendedores jovens, como subsídios, criar parcerias com instituições financeiras e investidores privados para aumentar as oportunidades de financiamento. Fomentar parcerias entre o sector público e o sector privado é fundamental para criar um ambiente empreendedor mais favorável. O Governo pode trabalhar em conjunto com empresas e organizações do sector privado para desenvolver programas, compartilhar recursos e estabelecer políticas que apoiem o empreendedorismo jovem”, defende Paulo Semedo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.