Não se sabe ao certo quantos muçulmanos existem em Cabo Verde. Estima-se que sejam 2% da população, o que corresponde a cerca de 10 mil pessoas, na sua maioria imigrantes.
O Imã Ibraima Seidi é um deles. Nascido na Guiné-Bissau, é licenciado em Teologia Islâmica pela Universidade da Arábia Saudita, país onde nasceu o profeta Maomé.
Terminados os estudos, em 2018, chegou a Cabo Verde em 2019 por dois motivos: uma oportunidade de trabalho como tradutor de árabe-português e vir partilhar o seu conhecimento e experiência como muçulmano formado na área.
A adaptação a este país, maioritariamente católico, foi na realidade simples. “Guine Bissau e Cabo Verde são países irmãos. Temos uma realidade conjunta. A questão linguística, a cultura, a história, tudo isso torna mais fácil, independentemente da religião”, conta.
Assim, quando chegou começou de imediato a dar aulas na zona da Várzea, Sucupira e também em São Filipe e a conhecer e fazer amizade com a comunidade.
Mas também ele não sabe o número certo de muçulmanos residentes, até porque se enfrentam “várias dificuldades em termos de organização”.
Mesmo a relação sendo boa, incluindo entre as diferentes nacionalidades, as comunidades estão dispersas, cada mesquita tem o seu representante e há uma falta de comunicação que não permite números, nem outras informações certeiras.
E há outras dificuldades e fragilidades, destacadamente no que toca às condições de oração e estudos.
“Há toda uma falta de tudo”.
Associação Islâmica de Dawah
Existe, desde há muitos anos, a Comunidade Islâmica de Cabo Verde (CICV), que pretende congregar todos os que professam essa fé. Contudo, para muitos, não representa a comunidade toda, uma vez que não conta com a representação, em Assembleia, das congregações da Praia, ou pelo menos da maioria.
Assim, recentemente um grupo de outros muçulmanos, organizaram-se e criaram, em finais de 2022, a Associação Islâmica de Dawah de Cabo Verde (AIDCV), que conta com 11 membros na direcção e mais de 500 associados.
“Não estamos em nada contra a CICV, só criamos [a AIDCV] porque também precisamos de te uma associação legal para podermos fazer o nosso trabalho”, explica o Imã.
A associação permite por exemplo, como aponta, uma melhor aproximação ao governo e verdadeiramente instituírem-se, como refere a própria Constituição, como parceiros sociais do governo.
Pretende-se também que esta sirva para melhor espalhar a palavra do Islão.
Um dos membros da AIDCV é o mouzin Sekou Souaré, que vive há 15 anos em Cabo Verde, conhecendo bastante bem a realidade da comunidade em que se insere. Também ele partilha as visões do Imã e salienta que o próprio nome Dawah, significa um apelo “para chamar alguém para o caminho de Deus”.
Outro aspecto, que ambos salientam, é que vai permitir também “poder acompanhar aqueles que se convertem”.
Tem havido, observa o Imã, um pequeno aumento do número de pessoas que se converte ao Islão em Cabo Verde. A média é cerca de uma por mês. Mas muitos dos que se convertem acabam, de certo modo, por afastar-se, devido a essa dificuldade de seguimento, o que se pretende colmatar, ajudando na integração.
Promover o estudo do Islão, evitando por exemplo que os fiéis incorram em questões que afectem a imagem da religião, bem como, intensificar o apoio aos mais vulneráveis, são também outros objectivos.
E toda a organização pretendida deverá ajudar a atingir um velho sonho dos muçulmanos em Cabo Verde: a construção de uma Mesquita Central.
Mesquita Central
Não há uma mesquita propriamente dita em Cabo Verde, mas sim vários lugares de oração, a que se costuma chamar Mesquita. São espaços geralmente alugados, quartos e armazéns. “Não nos dignifica”, considera o Imã Ibraima. E dificulta que as orações sejam feitas de forma organizada, acrescenta Souaré.
Assim, a construção Mesquita é algo acalentado. Pretende-se que, além de um lugar oração seja também um centro de estudos, e tenha sala de palestras, sala de informática, várias salas de aulas…
Com isso poderia evitar-se, por exemplo, que muitos muçulmanos tenham de enviar os filhos para outros países (para os países de origem, no caso dos imigrantes) para estuda, como tem vindo a acontecer. Poderiam ir à escola “normal” e complementar com os estudos na Mesquita, observa Souaré.
O projecto, avança, por seu turno, o Imã Ibraima, já existe e já inclusive foi solicitada uma audiência com a presidência da República e a Câmara a Praia para o mostrar.
O primeiro passo deverá ser encontrar um terreno – perto de Sucupira – para depois poder avançar para outras fases e procura organizada de apoios.
Religião vs costumes
Há algumas diferenças entre os praticantes do islão. Uma diferença que se prende essencialmente com os costumes de cada um.
Como lembra o Imã Ibraima, quando o profeta foi enviado muitas tribos entraram no islão, mas já tinha os seus usos e costumes, que não abandonaram. Isso verifica-se até aos dias de hoje.
“Então, muitas vezes as pessoas acabam por confundir essas tradições com a própria religião, quando muitas das vezes são duas coisas diferentes. A religião apoia o que advém em temos culturais, mas não o que é mau. Isso, a religião condena”, diz.
Isso nota-se destacadamente no que toca às mulheres. Quando a religião islâmica surgiu, as mulheres não tinham quaisquer direitos nas culturas que a viriam a adoptar. “Eram como um produto”. Em muitos impérios, eram até mortas à nascença porque se preferia homens para a ajudar nas guerras e disputas tribais, algo que o islão veio proibir.
“Mostrou que não pode ser tirada a vida de ninguém”. E deu direitos às mulheres.
“O Islão trata as mulheres de uma forma condigna”, insiste, mas a persistência desses costumes das tribos que entraram no islão cria situações que muitas vezes mancham a própria imagem da religião.
O Imã dá como exemplo o que se está a passar no Afeganistão, com a proibição de as mulheres frequentarem a universidade. No tempo do profeta, lembra, a sua esposa era uma das pessoas mais sábias e havia muitas outras mulheres a quem os muçulmanos recorriam em busca de conhecimento.
“Então, o Islão nunca proibiu as mulheres de aprender, mas podemos ver que hoje isso acontece...”, lamenta.
Assim, são os maus costumes que vêm oprimindo as mulheres, não lhes dando os devidos direitos.
Ademais, acrescenta, o islão não faz diferença de género. A sura da Bagueira refere que quem praticar boa acção, seja homem ou mulher, crente, terá boa vida para compensar o que praticou. “Mostra-se ali que o Islão não diferenciou tanto homem como mulher”.
“São iguais, mas tem responsabilidades diferentes”, salvaguarda, mas o Islão é contra tudo o que seja maltrato.
Entretanto, a sura das mulheres fala do “respeito com o muçulmano deve tratar a mulher”. E fala também de uma discriminação pela positiva, se assim se poderia chamar. Às mães, por exemplo, são dados 3 direitos em relação aos filhos, enquanto aos homens só é dado 1, pois elas passam mais dificuldades na parentalidade: gravidez, parto e amamentação e criação. O filho deve, pois, dar mais atenção à mãe do que ao pai.
Também Souaré nega que as mulheres sejam menosprezadas no Islão. Na verdade, pensa até o contrário: “para nós é muito mais respeitada do que outras religiões”. E lembra que por exemplo, os polémicos véus, sendo que também a Bíblia diz que “a mulher tem de usar véu para cobrir o cabelo”.
Uma coisa é pois as religião, outras os costumes e tradições e, eventualmente, interpretações travessas que são feitas…
Tolerância
Apesar de constituírem apenas 2% da população nacional, os muçulmanos estão bem integrados em Cabo Verde. O país, destacam, tem uma enorme tolerância religiosa que se manifesta nas grandes e pequenas coisas. Por exemplo, sendo que das cinco orações diárias que fazem por dia, algumas ocorrem no horário de trabalho, não há queixas de que as entidades empregadoras impliquem com essa prática. “é um país laico, e sentem a liberdade da religião”. De qualquer modo, também são orações rápidas que não interferem com o labor.
Há pois uma tolerância generalizada e boa integração. “Estamos num país que é um exemplo. É um país democrático, que respeita os direitos, não temos nenhuma restrição, praticamos a nossa religião com total liberdade, os nossos direitos não são violados, e o Estado e o governo estão abertos para todo”, elogia o Imã Ibraima.
“A dificuldade que temos, como sempre disse, é em termos organizacionais para conseguir um lugar digno onde a gente pode juntar-se. Um lugar maior para albergar a maioria dos muçulmanos que estão aqui no centro [da Praia] (ou seja, no caso, perto de Sucupira).
Terrorismo vs Religião de paz
Entretanto, celebrou-se, no passado dia 15 de Março, pela primeira vez, Dia Internacional contra a Islamofobia que foi decretado no ano passado pela ONU. A necessidade deste dia surgiu tendo em conta que, segundo um inquérito realizado pela organização, quatro em cada 10 pessoas têm opiniões desfavoráveis em relação aos muçulmanos.
Apesar de toda a tolerância, o Imã reconhece existe alguma a associação da religião islâmica com o terrorismo. Mas, quando lhes é explicado a religião em si, são coisas separadas. Esse reforço contra a violência é inclusive feito junto aos muçulmanos.
“Sempre temos apelado e temos feito apelo e chamamos a atenção sobre isso. No mundo islâmico é um fenómeno que nos tem preocupado. Todos sofremos, até os muçulmanos. O islão não tem nada a ver com a questão da violência. Islão significa paz” e um muçulmano submisso a Deus não pode ser violento.
“É uma coisa que nos deixa muito triste, porque são acções que não tem nada a ver com o islão”, reforça o Imã, lembrando que muitas vezes os alvos são os próprios islâmicos.
Essa é uma mensagem que se passa nas palestras e orações. Contudo, garante o Imã, em Cabo Verde, esse não é um fenómeno de que tenham dado conta na comunidade. “
Aqui “não temos nada, nem notamos nada sobre isso na comunidade, com as pessoas que nós convivemos”, sublinha.
O islão, garantem todos os entrevistados, é “uma religião de paz, que ensina a viver em paz connosco e com o nosso companheiro”,
E, no contexto, lembra também os próprios muçulmanos são vítimas. O próprio Imã Ibraima viveu de perto um atentado na Arabia Saudita, quando aí estudava. Um atentado fratricida na Mesquita do Profeta (2016), um dos lugares mais sagrados para os islamitas, durante o Ramadão. Ibraima estava perto da explosão, quando o ataque aconteceu. Escapou, mas houve mortos. “Foram muçulmanos que foram mortos … então essa situação é uma coisa que todo o mundo vive e sofre, e nós também não poupamos esforços a combater, a condenar, a esclarecer, para as pessoas saberem a verdade: o terrorismo não faz parte do Islão, que e é contra tudo que for violento.
Ramadão
Começa esta quinta-feira (22 para 23 de Março, dependendo da lua no céu) o mês sagrado do Islão: o Ramadão, nono mês do calendário islâmico e aquele em que foi revelado o Alcorão.
É neste mês, como é do conhecimento geral, mesmo entre os não-muçulmanos que os crentes fazem o seu jejum, desde antes do nascer do Sol até por volta das 19h (aquando da 4ª reza).
Nesse horário, e também durante os 29 a 30 dias do Ramadão, além da comida e bebida, os crentes abstém-se fumar ou ter relações sexuais.
Neidla já fazia jejum antes de se converter. Para esta cabo-verdiana, é algo que não lhe custa. Já o fez e vai voltar a fazer este ano.
As mulheres começam a fazer o jejum do Ramadão quando entram na puberdade (marca também uma passagem para a vida adulta). Se estiverem doentes (tal como os homens) não o farão. Se estiverem como período, param o jejum nesses dias e depois compensam, noutra altura, antes de chegar ao Ramadão. Se estiverem grávidas, também não fazem o jejum.
Em termos de significado, o jejum do Ramadão veio mostrar “uma das coisas que o Islão veio ensinar: que somos todos iguais”, explica o Imã Ibraima. Todos fazem o jejum e até os mais ricos percebem assim as dificuldades por que passam os mais pobres. Isso permite dar mais atenção por exemplo aos famintos, promovendo a caridade.
Na verdade, o Ramadão é muito mais do que o mês do ritual do Jejum. É também um mês em que cuida da saúde, o mês da purificação e aquele em os crentes mais cumprem os valores sagrados e em que as orações e leituras do Alcorão se intensificam. E acima de tudo é também “um mês caridade”. E neste mês, as comunidades votam-se ao apoio social promovendo a entrega de géneros aos muçulmanos, mas também aos não muçulmanos, mais necessitados.
A recompensa para esses actos de caridade e doações, acreditam, será muito maior,
Para marcar o fim do Ramadão os fiéis, homens e mulheres, costumam reunir em espaços grandes, como o campo de Achadinha e o estádio da Várzea, com o consentimento da Câmara.
O fim do Ramadão deste ano está previso para 20 de Abril. O momento principal é a Laylat al Kadr (Noite do Decreto), pois é quando Alá iniciou a revelação do Alcorão para o Profeta Maomé.
“Naquela noite, qualquer doação que faça deus multiplica por mais o que mil”, explica Souaré.
Este ano, essa noite deverá ocorrer na passagem de 18/19 de Abril.
Segue-se o Eid al Fitr (banquete do término do jejum) a ser celebrado a 21. Contudo, como o Ramadão é determinado por um calendário lunar, há pequenas variações pelo mundo. O ponto de referência, entretanto, é a Arábia Saudita, onde o Alcorão foi revelado.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1112 de 22 de Março de 2023.