A entrada de Mayra Silva na área “tecnológica” foi gradual. Licenciada em Design Gráfico (em Portugal), quando regressou a Cabo Verde ingressou naquela que era, e é, a maior empresa de tecnologia do país: o NOSi (Núcleo Operacional para a Sociedade de Informação). O seu trabalho enquanto técnica, pouco tinha a ver com os caminhos que mais tarde seguiria – não fazia, por exemplo, programação, mas foi aí que começou a ganhar “bichinho” para a tecnologia.
“Comecei a interessar-me cada vez mais por esta área e fui aproveitando as oportunidades que apareceram. Comecei inclusive a codificar, a desenvolver programas e senti que precisava de fazer alguma formação mais adequada”.
Era, reconhece, um mundo masculino, de lideranças masculinas, mas junto ao qual encontrou oportunidades, apoios e conquistou o seu espaço.
Foi aos E.U.A fazer um mestrado na área de gestão, com especialidade na área Tecnológica, na Bridgewater State University, findo o qual regressou para o NOSi.
Depois, saiu do Núcleo e trabalhou durante alguns anos no sector privado, em diferentes empresas da área tecnológica.
Um novo desafio levou-a de volta para o público, tendo trabalhado como gestora da Casa do Cidadão. Três anos passados nessa função, regressou à primeira casa, ou seja, ao NOSi, sendo actualmente Administradora Executiva da empresa.
Com 15 anos de experiência na área tecnológica, Mayra Silva é também a representante da Women in Tech Cabo Verde, braço nacional da organização Women in Tech (WIT). A constituição da WIT-CV decorreu no passado dia 23 de Março, no âmbito do “Leadership Summit Cabo Verde” e contou com a presença da Presidente da WIT Global, Ayumi Moore Aoki.
O que é a WIT e como chega a Cabo Verde?
É uma organização mundial que aposta na capacitação das mulheres para estarem integradas no mundo digital, e também trazer mais equilíbrio a este mundo que dizem ser, e os dados mostram-nos, ainda um mundo de homens. É um movimento global, que está em mais de 100 países, com um network muito grande – conta com mais de 200 mil membros. Querem estar mais presentes em África e, inclusive, pelas apostas que Cabo Verde vem fazendo no digital, surgiu esta oportunidade. Por eu estar na área, foi-me feito este convite [de ser a representante], que eu aceitei imediatamente não só por ser uma área com a qual trabalho, mas também por querer estar mais activa, exercendo algum trabalho social para ajudar no empoderamento das mulheres, das crianças. Na verdade, penso que Cabo Verde já está bastante equilibrado nessa vertente e já foram vários os feitos das mulheres nesta área. Estou convicta de que já se fez muito, e também quero dar um contributo maior para fazermos ainda mais, muito mais.
A WIT-CV acabou de ser constituída, mas já há alguma ideia do plano de actividades?
Foi constituída no Leadership Summit e tem como madrinha a Primeira Dama, Débora Katisa Carvalho. Fico também muito satisfeita por termos esse apoio, que certamente irá ser útil ao nosso programa de Cabo Verde. Vamos trabalhar no plano de actividades e, por este ser um movimento global, com alguma abrangência e com um network muito forte, iremos aproveitar todas as suas plataformas e trazê-las para Cabo Verde. Vemos como oportunidade e prioridade promover toda essa interajuda feminina, aproveitar o que já existe de sucesso na WIT Global para melhorarmos também o nosso ecossistema e nível de vida. Também iremos apostar na capacitação das mulheres, aproximando-as de tudo o que é recurso às novas tecnologias. Todos os dias temos de correr para conseguirmos estar próximos do que o mundo digital está fazendo.
Cabo Verde ainda não está equilibrado em termos da presença das mulheres no mundo da tecnologia, a percepção é que é ainda um mundo de homens.
De facto, constitui ainda um desafio, mas já há sinais animadores. Por exemplo no NOSi, há um equilíbrio, mas penso que não é só o NOSi. Tenho tido contacto com várias entidades, e mulheres e penso que isso acontece, em várias outras entidades do ramo. Porém, há uma questão importante e da qual temos de estar cientes: Cabo Verde tem alguma escassez de dados. Este é um trabalho que tem de ser feito, para termos indicadores claros de como é que estamos, não só nas áreas tecnológicas, mas também em outras. Penso que já demos vários passos, mas precisamos urgentemente trabalhar a nossa base de dados. Eu posso falar da minha entidade, seguramente, porque temos dados, mas precisamos ter isso no global. Mas, acredito, há outras áreas em que essa disparidade [de género] é maior. Então, há que ver os dados e perceber bem onde está o maior fosso e onde precisamos de acentuar mais essa capacitação das mulheres, empoderando-as.
Uma coisa é as mulheres estarem presentes, outra coisa é o papel ou relevo que têm dentro das áreas. Nesse aspecto como vê a mulher no mundo tecnológico?
Há os role models. Tive a oportunidade de estar, no Leadership Summit, junto com várias mulheres que estão em cargos que têm alguma projecção, como cargos de decisão, por exemplo. Estive num painel com a CEO da DevTrust, que é uma empresa de tecnologia, e com a directora de inovação da Enapor. Em Cabo Verde já temos bastantes mulheres em cargos decisivos. Temos, mas precisamos dar mais visibilidade, mais voz a essas mulheres, mostrar às crianças, à juventude que existem e aproximar essas mulheres a mais iniciativas para mostrarmos os exemplos que temos hoje em lugares de decisão e de liderança.
E a nível de empreendedorismo no feminino na área tecnológica, elas estão a empreender na área?
Não tenho dados que me dêem algum conforto estatístico nesta afirmação, mas digo que sim pela minha experiência. Temos o programa NOSi Akademia, no qual capacitamos jovens licenciados, e vejo que já temos start-ups lideradas por meninas. Agora, temos de trabalhar para termos mais e dar a conhecer essas iniciativas lideradas por mulheres. Mulheres que assumem cargos de chefia, que estão a dar os primeiros passos criando as suas empresas. Precisamos criar um palco para essas mulheres.
No NOSi Akademia também tem havido um equilíbrio entre mulheres e homens?
Custa-me dizer que em Cabo Verde ainda persiste essa ideia de que a tecnologia é dos homens. Custa-me, a mim, porque estou nesta área e onde trabalho isso não existe. Acho que a partir do momento em que os jovens tenham a oportunidade de crescer e de ter as ferramentas adequadas, essa barreira nem existe. Por exemplo, eu sinto isso no NOSi Akademia, que é um programa de capacitação para jovens e é muito equilibrado, a nível desse indicador. Agora, não podemos confortar-nos, precisamos de fazer muito mais, porque eu estou a falar de um pequeno programa e isto tem de ser [feito] a nível geral, em todas as frentes e para todos. Para termos uma sociedade desenvolvida, equilibrada, precisamos dar mais voz às mulheres.
E os licenciados, eles e elas, que chegam ao NOSi seja para a Akademia, seja como estagiários, chegam bem preparados?
Chegam para serem melhor preparados para o mercado de trabalho. Durante o percurso do estágio são dotados de melhores competências tanto a nível técnico como softskills. É uma satisfação porque percebemos que, não só estamos a capacitar os nossos jovens, dando uma oportunidade de saírem da Universidade e estarem a trabalhar na área com participação prática, como porque percebemos que estes jovens estão qualificados, conseguem trabalhar em qualquer empresa nacional e internacional. Isso mostra claramente que, para além da oportunidade que estamos a trazer, estamos a capacitar os nossos jovens talentos e a competirem com qualquer que seja o recurso nesta área. A nossa taxa de empregabilidade, do programa NOSi Akademia é de quase 80%, e precisamos de ter cada vez jovens a formar-se nessa área e melhorar a taxa de empregabilidade.
Dizem que, por norma, as mulheres não se sentem atraídas pela área tecnológica. Sente isso?
Não sinto. Acho é que existe um bocado de preconceito. Eu falo pela minha experiência. Desde que comecei a minha carreira profissional nunca senti isso, mas porquê? Tive as ferramentas certas que me permitiram crescer ou seguir de igual forma essa área.
A própria educação das meninas é tida como um factor para esse afastamento…
Acho que também temos de ter responsabilidade social, como pessoas. A nossa responsabilidade na educação, dentro de casa. Não podemos passar toda a responsabilidade para os professores, ou para a sociedade. Eu, por exemplo, como mãe tenho essa responsabilidade de, desde a base, mostrar que não há essa barreira. Mostrá-lo com acções muito concretas e apostar acima de tudo na capacitação, porque a partir do momento em que tenhamos capacitação, essa desigualdade não existe porque estamos a competir com as mesmas ferramentas. Essa desigualdade só existe quando não temos as mesmas ferramentas.
E porque é que é tão importante trazer as mulheres para a tecnologia?
A tecnologia, actualmente está em tudo. Não podemos não falar de tecnologia, em nenhuma área. A tecnologia faz parte da nossa vida, do nosso dia-a-dia, está em tudo o que fazemos. Portanto, é fundamental capacitar, desde a base. Estamos dependentes da tecnologia, então precisamos é de ter recursos cada vez mais sofisticados nesta área da tecnologia, em diversos sectores, para rapidamente conseguirmos dar resposta ao desenvolvimento global. Há, assim, que trabalhar com pessoas que estão na área da tecnologia em específico, as que a querem ou irão seguir e também trabalhar com pessoas que de certa forma precisam de se capacitar [mesmo que a sua área de base não seja esta].
Fala-se muito da transição digital de Cabo Verde. Tem acompanhado este processo ao longo destes anos. Como o avalia?
Tenho orgulho em dizer: Cabo Verde é um exemplo a nível de transição digital, a nível de apostas e a nível de desenvolvimento. Somos uma referência. Fomos audazes e isso foi a causa do nosso sucesso. Mas, claro, como em tudo na vida, poderíamos sempre estar melhor. Precisamos acelerar sim, porque a tecnologia é incrível, em um mês tudo muda e temos de estar aptos a nos adequarmos rapidamente. Temos de ser flexíveis. Por isso é que esta questão da capacitação é muito importante. O mundo está a desenvolver-se a um ritmo muito acelerado, temos de acompanhar e só se acompanha com recursos, com pessoas, com talentos, que estão sendo capacitadas constantemente. Eu acredito que precisamos, sim, correr, mas estamos no caminho certo.
E a nível dos cidadãos, principalmente as mulheres mais vulneráveis, estão a conseguir acompanhar esta transição?
Aqui entram as iniciativas. É preciso apostar nas organizações, nas entidades e nas pessoas. Por exemplo, nas zonas com alguma escassez de acesso, as pessoas não conseguem ter as mesmas condições [dos restantes cidadãos], é por isso que, sendo eu uma das representantes da Women in Tech em Cabo Verde, irei colaborar nesse sentido, com acções práticas no terreno, para ajudarmos as crianças, jovens, as mulheres, que têm alguma limitação de acesso a estarem também de uma forma segura no mundo digital. Criar Masterclasses temáticos, criar oportunidades para conhecimentos de avanços e desenvolvimento na indústria tecnológica, trabalhar em acções, aproximar-nos mais das pessoas, das mulheres, em diversas áreas, em diversas indústrias e em diversas localidades.
Para terminarmos, e voltando à WIT. Perspectivas?
Vou aproveitar de todas as plataformas/ferramentas existentes no WIT global, as mentorias, trazer especialistas para promovermos múltiplas acções locais, regionais e que passam pela sensibilização, atração do talento feminino para a área de tecnologia e desconstruir o estereótipo de género. Fazer com que as ferramentas tecnológicas adequadas, estejam ao dispor das cabo-verdianas, apostar em capacitação e apoiarmos para desafiarmos o status quo. Gostaria também de fazer um apelo às empresas, start-ups, especialistas nacionais e na diáspora para acolherem e juntar-se ao programa porque quanto mais fortes formos a nível de estrutura, mais poderemos fazer para realização e execução dos programas. Precisamos colocar a tecnologia à disposição de todas e garantir que as vozes das mulheres sejam ouvidas e inspirar-nos mutuamente.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1113 de 29 de Março de 2023.