“Cada minuto conta”

PorSara Almeida,20 mai 2023 9:05

É a maior causa de morte em Cabo Verde, mas também de incapacidade. Cerca de 300 pessoas morrem, e muitos dos que lhe sobrevivem vão ter sequelas que condicionam a sua vida e a de terceiros. Como em qualquer acidente, quando se dá um Acidente Vascular Cerebral (AVC) cada minuto pode marcar a diferença entre a vida e a morte, entre a incapacidade total e a recuperação. Quem já passou por um AVC sabe-o e os médicos insistem: “cada minuto conta”.

Foi há cerca de dois anos que L., hoje com 63 anos, sentiu uma sensação de “água a correr em cima da cabeça”. Era madrugada de domingo para segunda-feira e tinha estado numa festa. Mesmo sendo diabético, confessa que abusara. Bebeu vinho, comeu fritos. Foi dormir, mas pouco descansou. O sono não veio. Estava quase a amanhecer quando teve essa sensação estranha na cabeça e muitas tonturas. Passados poucos minutos sentiu também que a perna esquerda “já não se movimentava”.

A esposa disse que devia ser algo passageiro. E um dia se passou, à espera de que o que havia de estranho no seu corpo passasse. Só no dia seguinte, terça-feira, L. foi ao centro de saúde.

“Cometi um erro. Devia ter ido logo ao hospital”, reconhece agora.

Quando foi consultado na estrutura de saúde do seu bairro, glicémia e a tensão estavam altas. Junto com os sintomas, o diagnóstico foi imediatamente dado.

“A médica disse-me, você tem é um AVC”. Daí foi encaminhado para o Banco de Urgências do Hospital Agostinho Neto. Durante duas semanas ficou internado e medicado para controlo da tensão e diabetes.

Fez TAC e vários exames no hospital e também no privado.

O que mais lembra eram as muitas tonturas que sentia. O derrame tinha atingido áreas do equilíbrio, disseram-lhe.

Quando saiu começou a fazer fisioterapia. Foram várias sessões em meio ano. Aos poucos a perna começou a melhorar e voltou a conseguir andar.

Foi também a Dakar para pedir uma segunda opinião e, nas clínicas privadas de lá, confirmaram o quadro de AVC e as recomendações.

Hoje a vida corre com normalidade, apesar das tonturas persistentes.

Toma vários medicamentos para controlar a tensão e diabetes, e também aspirina “que dizem que é muito bom para prevenir AVC” e é seguido por uma médica vascular, uma endocrinologista e um neurologista.

Sabe que tem propensão para o AVC. A recorrência é relativamente comum e tem também o risco genético pois a sua mãe morreu de AVC.

Assim, tenta seguir uma vida mais saudável, mas, confessa, mesmo sabendo que está a “pisar o risco”, de vez em quando ainda toma a sua bebida alcoólica.

De qualquer maneira, sente-se aliviado por o AVC não lhe ter provocado danos maiores. “Em temos de recuperação foi muito bom”, diz. Uma amiga sua, por exemplo, que teve um AVC, nos EUA, ficou em estado vegetativo.

Apesar de tudo ter corrido relativamente bem, até hoje lamenta – e reitera-o várias vezes na entrevista – não ter recorrido imediatamente às instâncias de saúde.

“Eu deveria ter vindo logo para o hospital”...

Um caso atípico

Leila Oliveira é um caso “atípico”. Tinha apenas 24 anos quando teve um AVC isquémico. Era uma jovem saudável, sem qualquer doença crónica, que não bebia nem fumava. Foi em Dezembro de 2007 e Leila, então professora do ensino básico, tinha tido o seu primeiro bebé há uma semana.

“Uma gravidez completamente normal e um parto 100% normal, rápido e tranquilo”, lembra.

Sentiu dores de cabeça ao fim do dia, localizadas apenas no lado direito da cabeça. Tomou um analgésico e dormiu.

“No dia seguinte levantei-me sem as dores”.

Por volta das 10h estava a amamentar e sentiu dormência no braço esquerdo. Pensou tratar-se de uma sensação causada pela posição do bebé. “Comecei a movimentar o braço de forma a restabelecer a circulação, mas reparei que estava a ficar pior e os dedos das mãos ficaram encravados”.

Chamou pela sua tia e quando esta chegou ao quarto já Leila estava meia “desfalecida, sem poder mexer todo o lado esquerdo e sem conseguir falar”.

Foi levada de imediato para o Banco de Urgências do Hospital Baptista de Sousa, e “prontamente atendida e medicada”. Aí esteve algumas horas.

Cerca das 22h, desse mesmo dia, “já tinha recuperado os movimentos e a fala, e a tensão arterial estava normalizada. Então, o médico de plantão decidiu dar-me alta”, recorda.

A hipótese era ter sido uma situação de eclâmpsia pós-parto. Leila foi para casa, dormiu, mas no dia seguinte, quando se levantou notou que estava com dificuldade em articular palavras.

No banho perdeu os sentidos. A tia ouviu o barulho da queda e acorreu para a casa de banho.

“Fui levada novamente, de imediato, ao BU e desta vez estive desacordada e nos cuidados intensivos por 3 dias”, recorda.

Foi então que foi diagnosticado um AVC isquémico.

Quando acordou, passados esses dias, não tinha nenhum movimento do lado esquerdo e não conseguia falar. Contudo, estava completamente consciente e ciente das conversas à sua volta.

Ficou algo espantada ao saber o que lhe tinha acontecido. “Sempre tive a ideia de que AVC era uma doença de ‘gente velha’”, confessa. “Pensei que ou ia morrer ou ficar na cama para sempre”.

No segundo dia, arranjou forma de comunicar. Com a mão direita tirou a caneta do bolso do enfermeiro que a fora medicar. Ele perguntou se queria escrever, ela acenou em sinal afirmativo e ele arranjou-lhe papel.

“Escrevi várias cartas: à minha mãe, ao meu namorado e à minha tia que me acompanhava… Nas cartas eu dei todas as indicações de como queria que as coisas fossem feitas caso eu não sobrevivesse”, conta.

Durante o tempo em que esteve no hospital fez vários exames, inclusive de oftalmologia porque não tinha reacção do olho esquerdo. Fez também fisioterapia e algumas sessões de terapia da fala.

Porém, TAC, recorda, só meses depois, em Junho. Em 2007/2008, o único tomógrafo no país estava na Praia e a lista de espera era extensa. O exame confirmou que o seu cérebro tinha sofrido alterações significantes no lado direito.

Depois de “acordar”, esteve mais 19 dias no hospital, de onde saiu praticamente recuperada, como domínio total da fala, e movimentos quase a 100%.

“Apenas indicaram exercícios para fortalecer a musculação” e tomou medicação durante cerca de um ano, para tornar o sangue “mais leve” e evitar a formação de coágulos.

A recuperação, muito rápida e positiva, deveu-se essencialmente, segundo os médicos, à idade, estilo de vida saudável e também o facto de ter tido assistência imediata.

Não ficou comprovado que o seu AVC tivesse relação com uma eventual eclâmpsia pós-parto. No entanto, na gestação seguinte tomou também medicação para “evitar coagulação e prevenir uma eclâmpsia”. Também fez acompanhamento cardiológico durante algum tempo pois foi-lhe detectada uma dilatação em uma válvula que pode ter sido consequência do AVC. “Mas com o tempo tudo normalizou…”

No entanto, ninguém sai igual de um “acidente” destes. Hoje, muitos anos passados, Leila confessa que o AVC mudou a sua forma de ver a vida. “A partir dali tomei consciência de que a vida é, sim, um sopro. Que tudo pode acontecer a qualquer momento e a qualquer um. E também que a forma como vivo, meus hábitos diários influenciam directamente as situações que possam surgir”, conta.

Dados

Os AVC são a principal causa de morte em Cabo Verde desde há cerca de 15 anos, representando aproximadamente 30% da mortalidade geral no país.

Em números, e de acordo com as estatísticas de saúde, os óbitos por AVC rondam os 300 por ano, um ligeiro aumento face a 2017 ou 2018, em que rondavam os 260.

E pouco ou nada mais se vê, nas estatísticas disponíveis. Estas não fazem, por exemplo, distinção entre os casos de morte por AVC hemorrágico (a que popularmente se chamam derrame e que se caracteriza pelo rompimento de um vaso sanguíneo) e o AVC isquémico (trombose na linguagem popular e em que há uma obstrução do vaso).

E também apenas dizem respeito aos óbitos. Ou seja, não há neste momento estatísticas relativas ao número total de AVC que incluam aqueles que não resultam em mortalidade.

Um estudo realizado em 2013 sobre o Perfil dos doentes com Acidente Vascular Cerebral em Serviço de Urgência do Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), e que é citado no Protocolo para Abordagem do Acidente Vascular Cerebral, de 2021, referia que a taxa de mortalidade dos doentes admitidos nesse serviço com quadro de AVC era de 21%.

Mas seria aqui preciso fazer a referida distinção entre tipos, pois a taxa “sobrevivência”, “depende muito do tipo de AVC”, como lembra a neurologista Albertina Lima ao EI. A mortalidade do AVC é muito maior (pois “há mais comprometimento a nível das estruturas cerebrais”), do que o isquémico (que é o mais comum), explica.

Quanto à idade, os AVC costumam ocorrer em pessoas com mais de 60 anos, mas tem-se notado no terreno, um ligeiro aumento da incidência em pacientes mais “jovens”, o que poderá estar ligado ao consumo de álcool que é, tal como o tabaco, um factor de risco.

“Em 90% dos casos, o AVC é o acúmulo dos factores de risco ao longo da vida, o que vai criar alterações nos vasos, e com isso temos o AVC”, explica.

Entretanto, a hipertensão artéria é o maior factor de risco, e também a diabetes e dislipidemia são destacados.

O próprio facto de já ter tido um AVC (recorrência) é um factor de risco, elevando em 20% as probabilidades da ocorrência.

Há, porém, outros factores que podem levar a AVC, por exemplo nos jovens e crianças (faixas em que é muito raro) e que estão relacionados com doenças genéticas ou infecções, salvaguarda a médica.

Via Verde

L. arrepende-se de não ter ido imediatamente ao hospital. Leila sabe que a assistência rápida foi um factor muito importante na sua total recuperação.

Num AVC, como em qualquer acidente, todos os minutos contam.

No ano passado, Cabo Verde implementou o projecto-piloto Via Verde do AVC (VVAVC) no HUAN. Como explica a neurologista Albertina Lima trata-se, como o nome indica, de um caminho para intervenção rápida em caso de AVC isquémico (que representa cerca de 85% dos AVC). As estruturas de Saúde a nível pré e intra-hospitalar organizam-se nesse sentido, fomentando essa celeridade uma vez que o doente terá de receber o tratamento no espaço de 4h30 desde o AVC.

Ou seja, desde o AVC, diagnóstico e início do tratamento não podem passar mais do que 4h30 – a chamada janela de terapêutica – pois o trombolítico usado (alteplase) para destruir o coágulo, só actua nessa janela. Acima da mesma, o coágulo já terá deformado o vaso.

“Um doente, se chegar ao hospital na janela terapêutica de 4h30, faz a medicação e poderá sair sem sequela, ou com menos sequela” do AVC.

Em Cabo Verde, como referido, a VVAVC já foi implementada no HUAN e está agora a ser projectada a sua extensão para outras ilhas e estruturas.

Está-se também a fomentar uma campanha para que as pessoas, com sintomas de AVC, não fiquem em casa “a esfregar perfume, ou a fazer massagem” e outras mezinhas.

Quando forem identificados os “3 Fs do AVC” é preciso imediatamente procurar o serviço de urgência. São eles: Fala (alteração da fala); Face (a boca descai para um lado) e força (perda de força num braço).

“No AVC cada minuto conta!”, sublinha Albertina Lima.

Recuperar

O AVC não é, pois, sinónimo ou sentença de morte.

“Não é. É uma sentença de preocupação, uma doença grave que acomete indivíduos de uma forma súbita. De repente, o doente tem a sua vida interrompida, pelo AVC. O próprio nome diz: acidente vascular, porque o paciente tem a sua vida literalmente interrompida”.

Dados mundiais mostram que cerca de metade dos sobreviventes ficam dependentes de terceiros. Mostram também quecerca de 70% dos doentes não retornam o trabalho após um AVC.

Em Cabo Verde, como se tem vindo a referir, não há dados ou estudos, mas há a experiência.

“É um desafio para o doente. Tem alteração na fala, na visão, na memória e tem de entrar num processo de reabilitação que em média irá demorar um ano”, conta a neurologista Albertina Lima. Ao fim desse ano, se o paciente faz a terapia de forma regular, a taxa de sucesso é superior a 50% dos doentes.

Os nossos testemunhos tiveram, pois, uma melhor recuperação do que a média. L. esteve de baixa médica durante meio ano.

Foi por duas vezes à Junta Médica e foi-lhe inclusive dada a possibilidade de não voltar ao trabalho. Contudo, perto da reforma, L. decidiu voltar ao seu emprego e embora já não realize as mesmas tarefas que antes, tudo decorre na normalidade.

Leila, recorde-se, teve o AVC logo após o parto. A recuperação foi rápida e no fim da licença de maternidade regressou ao trabalho. ”Foram só dois meses”.

Entretanto, os factores para o sucesso da reabilitação são vários: tipo de AVC, gravidade do mesmo, adesão ao tratamento e aceitação da doença.

“Pela interrupção da sua vida, pelo sentimento de dependência de terceiros, muitos doentes acabam por ter problemas de depressão, então muitos acabam tendo apoio psicológico. Se a parte psicológica estiver afectada a adesão ao tratamento é menor…”, expõe Albertina Lima.

Leila Oliveira também sabe disso. Aceitou dar o seu testemunho pois acredita que a sua história poderá servir de motivação a alguém que venha a passar por algo semelhante.

E a mensagem que deixa é que “não percam a esperança. A primeira cura é a força de vontade de viver, a determinação em ultrapassar os obstáculos. A recuperação só será possível se não perderes a tua força interior…” 

_________________________________________________________

3 Fs do AVC:

- Desvio da face;

- Falta de força num braço;

- Dificuldade em falar.

Quem tem estes sintomas deve procurar imediatamente uma estrutura de saúde.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.

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Autoria:Sara Almeida,20 mai 2023 9:05

Editado porEdisângela Tavares  em  22 mai 2023 14:12

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