Vera Lúcia Fortes tem 44 anos e vende desde os 13. Seguiu as pisadas de duas gerações que a antecederam. Nasceu, cresceu e vive até hoje em Ribeira de Calhau. Nem sempre a sua vida foi de incerteza. Quando começou, havia água e produção. Hoje, o castanho da terra é a cor da tristeza e da angústia.
“Sinto-me um pouco triste, porque antes o vale era mais verde. As pessoas chegavam, viam o lugar e diziam que Calhau estava bonito. Agora está diferente e é triste. Afecta em tudo. A venda de hortaliças é fraca e não é possível alcançar todos os objectivos. Somos seis aqui em casa e sou a única a trabalhar. É muito complicado”, desabafa.
O que fazer quando a rega tem de ser feita com recurso à água extraída dos poços, se estes estão desactivados ou com as reservas no mínimo? É este o retrato de um país onde de 2016 para 2020 a produção agrícola de hortaliças e tubérculos caiu 40%, conforme dados do Anuário Estatístico publicado no segundo semestre de 2022, pelo Instituto Nacional de Estatística.
Vera Lúcia não tem terreno próprio. Levanta-se às cinco da madrugada, vai à horta de um dos proprietários que ainda consegue fazer alguma agricultura e toma os produtos para pagar depois. Ruma ao mercado informal da Praça Estrela, na cidade do Mindelo, onde chega aos primeiros raios de sol. Nem sempre consegue vender o suficiente para pagar as despesas e sustentar a família.
“Por exemplo, hoje, não consegui vender tudo. Amanhã, tenho de ir novamente à horta buscar mais hortaliças para vender e tentar cobrir o que tomei no dia anterior. É difícil, tanto a nível da produção como da comercialização”, conta.
A rotina repete-se todos os dias. Regressa à casa antes do meio-dia e arregaça as mangas para os afazeres domésticos. Com uma família de seis e o marido desempregado, Vera Lúcia confessa que a situação financeira está cada dia mais difícil. O pagamento da propina de um dos seus filhos é uma preocupação.
A seca, que acompanha a história de Cabo Verde e que as alterações climáticas tendem a agravar, impacta directamente as mulheres que têm a venda de hortaliças como fonte de sustento para si e para as suas famílias. A poucos metros da casa de Vera Lúcia mora Vanda Rodrigues. Tem 54 anos e há quase 30 que vende produtos hortícolas para conseguir sustento. Os tempos são outros e sem água os rendimentos são cada vez menores.
“Agora mesmo estava a conversar com o meu marido que está triste porque vai para a horta preparar o terreno e não há água para irrigação. É triste”, refere.
Vanda é a principal responsável pela renda familiar, já que o marido não tem emprego fixo. Também os filhos, que já trabalham, optaram por morar na cidade e não ganham o suficiente para ajudar. Satisfazer todas as necessidades básicas é um desafio que se renova a cada dia.
“A seca pode causar-nos fome. Não há dinheiro suficiente para cobrir tudo. Há dias em que não se consegue trazer um quilo de arroz ou leite da cidade para dar a uma criança, porque a venda de hortaliças não dá para nada”, enfatiza.
Zulmira Lopes tem 46 anos, 19 dos quais a vender na cidade o que a terra dá na Ribeira de Calhau. Lamenta que as chuvas sejam cada vez mais irregulares. “Tristeza”, diz.
“Sinto uma tristeza ao ver a terra seca nesta ribeira, quando no passado era totalmente verde. Neste momento, não há nada. Quando chove, vemos pragas que não deixam as plantações se desenvolverem”, aponta.
A falta de água já é sentida mesmo a nível do consumo doméstico.
“Há uma sentina abastecida com água de JAIDA, pela Câmara Municipal, que passa semanas sem água. Acabamos por comprar água salgada transportada por autotanques, por 2.700 escudos”, comenta.
Terra sem gente
Assim como em várias partes do mundo, a seca, provocada pela alteração dos padrões climáticos, está a fazer com que as famílias da comunidade tenham menos acesso ao básico dos básicos. As contas são fáceis de fazer: menos produção, menos rendimento, mais pobreza.
Ederley Rodrigues, presidente da Associação Agro-pecuária de Ribeira de Calhau e Madeiral, lamenta o abandono de dezenas de propriedades por falta de água para rega.
“Estamos a perder terreno arável e cultivável na zona. Os jovens no Calhau não têm por onde pegar, então, têm de procurar outros meios, o que provoca êxodo populacional. O pessoal está a deixar a comunidade, o que faz com que a localidade perca conhecimento e prática”, lamenta.
Ribeira de Calhau tem 222 hectares de terrenos agrícolas. 87 estão formalmente ocupados, distribuídos por 110 propriedades, contudo, apenas 12 hectares têm alguma produção. Uma ínfima parte do potencial existente.
O engenheiro agrónomo Odailson Bandeira lembra que, para além da reduzida quantidade de água disponível, em alguns poços esta atingiu um alto teor de salinidade, tornando-a imprópria para rega. O técnico sugere a adopção combinada de várias medidas, nomeadamente a dessalinização.
“Um desses caminhos, naturalmente, pode ser a dessalinização da água. Mas isso tem de deixar de ser só discurso e serem implementados projectos robustos e concretos para mobilizar a água para os agricultores. Outro aspecto, passa por aproveitar a água das chuvas”, defende.
Dénis Cruz, também engenheiro agrónomo, lembra que a tendência é que os períodos de seca se tornem mais frequentes no chão das ilhas. Propõe a adopção de novas técnicas agro-ecológicas que permitem salvaguardar a pouca água existente.
“Por exemplo, em localidades onde há seca, bastante vento e solo seco muito rapidamente, podemos adoptar técnicas como cobertura morta do solo com palhas, porque isso preserva a humidade do solo quando se faz a irrigação. Também é importante as parcelas agrícolas terem cortinas de vento, porque o vento tem uma acção directa no solo, ajudando no seu ressecamento. De igual modo, deve-se optar por culturas mais resistentes ao stress hídrico”, sugere.
Dessalinização como alternativa
Para tentar resolver o problema de falta de água em Ribeira de Calhau, três promotores idealizaram o projecto “Reabilitação e modernização da agricultura no vale da Ribeira de Calhau”. Osvaldo Lopes, um dos impulsionadores, explica que a ideia é recorrer à dessalinização com recurso a energia produzida de fontes renováveis.
Se tudo der certo, será possível dessalinizar 700 metros cúbicos de água por dia, 500 para agricultura e criação de gado e 200 para abastecimento à população.
“Dessalinização de água através do princípio de osmose inversa, utilizando energias renováveis. A ideia é tomar água na zona de Praia Grande, fazer a dessalinização junta à Fazenda de Camarão e, através do sistema de gravidade, fazer a distribuição de água nas parcelas agrícolas no vale da Ribeira de Calhau”, explica.
O projecto está orçado em 200 mil contos. Os estudos de viabilidade e de impacto ambiental já foram feitos, mas ainda se está na fase de procura de financiamento e parcerias. A água será transportada através de condutas, ao longo de sete quilómetros, a partir do local de recolha e tratamento.
“Vão ser construídos dois reservatórios, sendo um com capacidade para 600 metros cúbicos, perto da zona de produção e um de 200 metros cúbicos, mais próximo da comunidade”, diz.
Se o calendário for cumprido, lá para 2024 poderá correr água nas torneiras.
A dessalinização de água para a agricultura é uma intenção frequentemente reiterada pelo Governo, tendo sido criada uma empresa pública vocacionada para o fornecimento de água a agricultores e criadores de gado. Em Abril deste ano, durante a reunião do Conselho Nacional de Água e Saneamento, o Primeiro-Ministro, Ulisses Correia e Silva, anunciou o objectivo de, já em 2026, se atingir a marca de sete milhões de metros cúbicos anuais de água dessalinizada para agricultura, assim como três milhões de metros cúbicos de águas residuais tratadas para a lavoura.
Resistir, adaptar, mitigar
De acordo com as Nações Unidas, desde 1970, os territórios afectados pela seca mais do que duplicaram em todo o mundo. Boaventura Santy é sociólogo, doutorado em Engenharia Ambiental e coordenador do projecto sobre mulheres e mudanças climáticas da Guiné-Bissau.
O perito lembra que as alterações climáticas são um fenómeno global, mas que atingem de forma particular os pequenos Estados insulares, como Cabo Verde.
“O que podemos fazer é adaptar, em primeiro lugar. E a capacidade de resiliência tem a ver também com passarmos a viver com o novo cenário. O que se pode fazer neste momento é apostar na mitigação dos impactos severos, extremos das mudanças climáticas. E essa mitigação passa pela adopção de novas práticas pela consciencialização da população em relação às mudanças climáticas que ocorrem a nível global, mas também a nível local”, observa.
De acordo com as Nações Unidas, 168 países sofrem com a desertificação, um processo de degradação da terra que afecta a agricultura e piora com a seca. Mulheres, crianças e idosos dos meios rurais são as principais vítimas, mas a ameaça diz-nos respeito a todos.
Esta reportagem foi originalmente produzida para a Rádio Morabeza, no âmbito do projecto Terra África, implementado pela CFI - Agência Francesa de Desenvolvimento dos Media. Uma versão áudio deste trabalho está disponível no podcast do programa Panorama 3.0, acessível através do site da rádio ou do site do Expresso das Ilhas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1121 de 24 de Maio de 2023.