ROSA
Pequena, sentada num banco baixo no início da subida que vai até ao caminho calcetado que é a única rua do bairro Gongo, na antiga roça de Água Izé. É a Rosa, olhos curiosos, perna direita enfaixada – “já fui a Portugal, mas não me conseguem tratar. A culpa não é deles”, avisa – na mão uma garrafa de plástico de 500 ml que um dia transportou água e onde agora habita um fundo de vinho tinto.
Não se lembra da data de nascimento, só sabe que nasceu em Vila Nova, na Praia, às 9h da manhã, “no ano em que Carmona chegou a Cabo Verde” – a viagem oficial do então Presidente da República portuguesa, Óscar Carmona, a Cabo Verde, São Tomé, Moçambique, Angola e União Sul Africana, decorreu entre 17 de Junho e 12 de Setembro de 1939 – “a minha mãe disse que o Carmona estava a chegar e eu a nascer”.
Mas sabe perfeitamente quando chegou a primeira vez a São Tomé: em 1947, trazida pela mãe, que tinha sido contratada para a roça Dona Augusta, com os documentos a serem assinados, na capital cabo-verdiana “na scritóri Fernandi Sousa”, como canta Codé di Dona. Saíram de Cabo Verde por causa das fomes – duas das piores fomes do arquipélago ocorreram em 1941-43 e 1947-48, matando cerca de 45.000 pessoas. Em 1947-48, Santiago perdeu 65% de sua população.
Ficaram quatro anos na ilha que, geograficamente, está um segundo acima da linha do equador. Regressam a Cabo Verde e vivem na Praia, em Eugénio Lima. Alguns meses e acaba o dinheiro que a mãe tinha amealhado. Regressaram para São Tomé, desta vez para a Roça Boa Entrada.
Com mais idade, Rosa também já tem de trabalhar. “Em tudo: partir côcos, partir cacau, sulfatar, carregar água para rega, capinar mato, carregar estrume, tirar chalela [planta santomense usada para fazer chá], escolher malagueta, tudo”. Apesar da rudeza dos dias, diz que “era bom naquele tempo, era daqui” (mexe na orelha).
Nunca foi punida, mas conhece bem essa realidade. “Tinha castigo para quem era malcriado, tomavam porrada, chicote nos cornos. Eu não levei, a minha mãe também não, mas houve gente que apanhou muito. Lembro um dia de ver um patrão a chutar um homem até ele cair. Se levantava, levava outro pontapé”.
Regressa outra vez a Cabo Verde quando a mãe termina novo contrato. E voltou uma terceira vez a São Tomé. Sozinha, para a roça de Água Izé, onde continua. Teve 12 filhos, 5 morreram, a maioria emigrou, 2 ainda vivem em São Tomé. Hoje, Rosa passa o tempo a ajudar as crianças com a roupa: sobe bainhas, aperta calções, remenda uniformes escolares. Todos a tratam por avó.
“Se tenho saudade? Tenho, sim. Mas não há dinheiro para voltar”. Recebe a pensão de Cabo Verde, mas o dinheiro serve para pagar as dívidas acumuladas [em 2019, os 1.200 idosos cabo-verdianos recebiam uma pensão trimestral no valor de 500 dobras. Nesse ano o governo de Cabo Verde decidiu subir o valor para 1.000 dobras – 40 euros].
“Gosto de Cabo Verde, mas gastei a minha idade nesta terra. Já não dá para sair para nenhum sítio. Limito-me a esperar morrer. Tenho 83 anos, já não canto nem assobio”. E vira a garrafa perfeitamente na vertical para deixar escorrer as últimas gotas até à língua sedenta.
São Tomé
São Tomé e Príncipe foi colonizado duas vezes. Na primeira, no século XVI, o arquipélago desabitado foi povoado por colonos brancos e escravos negros. Esse período foi marcado pelo estabelecimento de uma economia de plantação, baseada no trabalho escravo e na monocultura do açúcar – e pelo surgimento da sociedade crioula. Depois do declínio do açúcar, no século XVII, houve um interregno de cerca de duzentos anos em que os crioulos praticamente se autogovernaram.
Devido à distância com Portugal, como refere Seibert [Gerhard Seibert, «Colonialismo em São Tomé e Príncipe: hierarquização, classificação e segregação da vida social», Anuário Antropológico, v.40 n.2] e à própria dinâmica de uma sociedade colonial híbrida, nos séculos XVI a XVIII, a hierarquia política e social no arquipélago foi frequentemente contestada. Há instabilidade política causada pelos muitos conflitos entre governador, câmara municipal e bispo. O clima de disputas pelo poder político, cargos institucionais ou vantagens económicas era constante. Durante um dos conflitos entre bispo e governador, em 1595, São Tomé foi abalado por uma grande revolta de escravos. Durante a revolta, que durou três semanas e em que participaram cinco mil escravos, mais de metade dos cerca de 120 engenhos que existiam na altura foram destruídos. Desde os finais do século XVI, as duas ilhas sofreram vários ataques dos franceses e holandeses.
Todos esses factores contribuíram para a queda do açúcar em São Tomé, mas o factor principal foi a o aparecimento do Brasil como produtor. Os engenhos brasileiros eram mais produtivos e a qualidade do açúcar era muito superior. Em consequência, muitos dos que estavam a explorar a agricultura em São Tomé mudaram-se para o Brasil. Nas ilhas, a economia de plantação, com a sua monocultura, transformou-se numa agricultura de subsistência.
Entre 1710 e 1800, os negreiros da Bahia, à ida e à vinda, tinham de escalar em São Tomé, onde pagavam impostos. Finalmente, na sequência dos acordos que Portugal assinou com a Grã-Bretanha, em 1836, o tráfico de escravos tornou-se ilegal.
Com a perda da relevância económica do arquipélago, a presença de brancos tornou-se insignificante. Em 1758, de uma população total de 12.672 pessoas havia 53 brancos (0,4 %) e 8.880 escravos (70 %). Durante esse interregno, a categoria de mestiços praticamente desapareceu, diluindo-se na dos negros forros. E durante quase duzentos anos, até à década de 1840, os forros dominaram a economia e a política em São Tomé.
José
Com uma irreverente – e longa – trança, José não aparenta os 92 anos que tem. De início, olha desconfiado, mas poucos minutos de conversa e já o riso anda solto pela porta da “Vivenda Barbosa”, como está escrito na placa de lata pendurada no cimo de umas escadas de madeira. E, de facto, comparada com as outras casas do Bairro Gongo – e apesar da aparência que pode ruir a qualquer momento – a habitação de tamanho razoável, com varanda, alpendre e dois andares parece uma mansão.
O bairro tem luz eléctrica, mas falta tudo o resto: água canalizada, saneamento e casas de banho (dentro e fora das casas). É uma amálgama de casas de pedra, que estão lá a cair desde os tempos coloniais, e de casas de madeira auto-construídas pelos moradores.
Gozador, não diz logo de que ilha é. “Onde tem vulcão que corre atrás da gente?”, pergunta, com mais riso, antes de contar que veio de São Lourenço – a freguesia mais setentrional do concelho de São Filipe – para São Tomé.
Saiu da terra a 7 de Dezembro de 1959, porque uma promessa de trabalho público acabou por nunca se concretizar e quem vinha para São Tomé e regressava contava histórias de uma terra onde não faltava chuva nem trabalho. Pegou na mulher e no filho e “decidi viajar. De castigo, ainda estou aqui”, ri-se.
A viagem de barco chegou ao fim no dia 22 do mesmo mês. “Tive vontade de regressar assim que cheguei, mas tive de ficar”. Durante o primeiro ano de contrato, fez todo o tipo de trabalho pesado. Uma imagem que ainda hoje tem na memória é a da água suja que escorria dos cestos de estrume que carregava à cabeça e que passeava rosto abaixo até à boca. Não se ri quando conta essa história. “Tínhamos de aguentar, porque éramos contratados. Ai de nós se o responsável nos mandasse fazer alguma coisa e não fizéssemos, ai de nós, diziam logo: quem quer escolher vai ao mercado, aqui não, aqui trabalha-se. Outra coisa que diziam era que o patrão não mandou chover, mandou trabalhar, muitas vezes temporal e nós a trabalhar, as árvores a cair e nós a trabalhar, não podíamos procurar um lugar e esperar a chuva passar”.
Devido ao bom comportamento, é escolhido para segurança numa área, “mas vi muito patrício a apanhar porrada. Éramos escravos de outro tipo”. Torna-se enfermeiro, deu injecções, curou feridas, cortou cordões umbilicais. Depois da independência trabalhou como motorista durante 21 anos.
“Aqui, não foi brincadeira não”, diz quase para si, sério. A mulher morreu há dez anos. Os três filhos mais velhos também. Sobram dois, um vive em Portugal, outro ficou e ajuda o pai no que pode.
“Gostava de voltar a Cabo Verde uma última vez, despedir-me da minha gente que está lá, porque com esta idade, já não fico cá muito mais tempo. Se pudesse voltar ao Fogo ia já hoje. Sentar-me em São Filipe, beber um manecom”, ri-se.
“Tenho muitas saudades de Cabo Verde. Tenho muita vontade de voltar. Mas as pessoas dizem que Cabo Verde está sabi, Cabo Verde não está sabi não. Está bonito. Sabi é onde tem bom salário e trabalho. Prédios bonitos não se podem comer”, e fica a dar gargalhadas que perduram rua acima.
Segunda Colonização
Depois da independência do Brasil, em 1822, e o fim das Guerras Liberais, em 1834, Portugal redescobriu o interesse pelos territórios africanos. Em São Tomé e Príncipe, a introdução do café (1787) e do cacau (cerca de 1820) do Brasil incentivou o restabelecimento da economia de plantação na segunda metade do século XIX, originando mudanças consideráveis na hierarquia social e política no arquipélago. O regresso da capital a São Tomé, em 1852, marcou o início dessa recolonização.
Um dos pioneiros do cacau nas ilhas foi o mestiço João Maria de Sousa e Almeida (1816–1869), filho de pais baianos, nascido no Príncipe e antigo traficante de escravos, que reinvestiu o capital do negócio na agricultura comercial. São Tomé e Príncipe torna-se o primeiro território africano onde se produz cacau.
No início da recolonização, como refere Seibert, a maior parte das terras estava nas mãos dos forros. Em 1872, 96 de 153 proprietários foram classificados como negros. Os mais abastados mandaram os filhos estudar em Portugal. No início do século XX, havia em Lisboa mais estudantes são-tomenses do que de todas as outras quatro colónias juntas. Contudo, muitos proprietários forros foram sucessivamente expropriados e politicamente marginalizados pelos portugueses. Perderam as terras por venda, mas também por práticas fraudulentas e pela força. Os portugueses também beneficiaram de títulos de posse defeituosos, da ausência de um cadastro actualizado e de disputas pela terra devido a fronteiras mal delineadas. No final do século XIX, os proprietários portugueses possuíam 90% das terras e dominaram a economia do arquipélago.
Em 1913, a produção de cacau atingiu 35.500 toneladas, a maior produção de sempre. As plantações ocupavam três quartos da superfície do arquipélago e a dimensão das roças variava de uns dez hectares até aos 10.000 hectares. As grandes roças não eram apenas explorações agrícolas, mas comunidades autónomas com senzalas, creches e hospitais. As maiores roças, como Água Izé, Monte Café, Santa Margarida e Rio do Ouro, empregavam entre 2.500 e 4.000 serviçais. Durante poucos anos antes da Primeira Guerra Mundial, São Tomé e Príncipe tornou-se o maior produtor mundial de cacau. Contudo, a partir de 1918, a produção começou a cair devido a pragas, à erosão de solos e à concorrência crescente dos pequenos produtores no continente africano. Na véspera da independência de São Tomé e Príncipe, a área cultivada pelo cacau era apenas um quarto da área total do país, e a produção não ultrapassava as 10.000 toneladas.
Mão-de-obra
No início, a mão-de-obra nas roças era escrava. Em 1869, um decreto transformou os escravos em “libertos”, que eram obrigados a trabalhar mais nove anos. De acordo com uma lei aprovada em 1875, a abolição da escravatura no império colonial português ficou prevista para o ano seguinte.
Quando receberam essa notícia, os escravos em São Tomé deixaram as plantações e manifestaram-se na cidade a favor do fim imediato da escravatura. Perante a revolta, o então governador cedeu às exigências e aboliu a escravatura com efeito imediato. Os escravos recém-libertados – chamados “forros gregorianos” – recusaram voltar às plantações em regime assalariado. Esta recusa provocou uma crise braçal em São Tomé e os portugueses substituíram os escravos por trabalhadores contratados, chamados serviçais.
Em 1875, foi criada a Curadoria Geral dos Indígenas para recrutar contratados africanos. Inicialmente, os roceiros recrutaram os serviçais no Gabão, em Adra (Daomé), na Costa do Ouro e na Libéria, mas depois de 1879 exclusivamente em Angola. O recrutamento de serviçais de Cabo Verde e de Moçambique começou apenas em 1903 e em 1908, respectivamente.
Os forros e os angolares (os naturais de São Tomé) recusavam-se a aceitar o trabalho manual regular nas roças, que consideravam como trabalho escravo, indigno ao seu estatuto social de africanos livres.
Os contratados recebiam tratamento diferente dependendo da sua origem. Os de Angola e Moçambique, maioritariamente homens, chegavam sozinhos, eram analfabetos e não praticavam o catolicismo. Os cabo-verdianos vinham como casais, às vezes com filhos. Eram católicos e melhor instruídos. Por seu lado, como refere Eyzaguirre [Eyzaguirre, Pablo B. 1986. Small farmers and estates in São Tomé, West Africa. Yale University] os cabo-verdianos mantinham atitudes de superioridade em relação aos outros contratados e aos forros.
Em termos legais, os serviçais angolanos e moçambicanos eram classificados como indígenas, conforme a legislação discriminatória do Estatuto de Indigenato, em vigor de 1926 a 1961. Os crioulos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe nunca foram classificados como indígenas, mas também não excluídos explicitamente.
Depois da independência, em 1975, o Estado são-tomense concedeu a plena cidadania a todos os residentes do arquipélago. Oficialmente, toda a segregação e a discriminação entre as categorias populacionais desapareceram. Devido à saída de quase todos os portugueses durante a descolonização, os brancos – na administração, nas roças, no comércio e nos serviços – foram substituídos por forros. Muitos contratados angolanos e moçambicanos que permaneciam em São Tomé foram repatriados. A maior parte dos antigos trabalhadores das roças que ficou no arquipélago era cabo-verdiana. Em 1975, Cabo Verde não tinha condições para receber milhares de retornados, enquanto São Tomé precisava desta mão-de-obra para as plantações de cacau.
Nos anos de 1990, no âmbito de uma reforma agrária sugerida e financiada pelo Banco Mundial, o governo desmantelou as grandes roças, cujas terras foram partilhadas em pequenas parcelas e distribuídas a 8.735 antigos trabalhadores agrícolas em regime de usufruto. Esta reforma agrária não conseguiu parar o êxodo rural.
Os antigos contratados e os seus descendentes, maioritariamente cabo-verdianos, em 2012 representavam 8,5 % da população total de 187.000 (o novo censo está marcado para 2024). Hoje em dia, são os mais desfavorecidos socioeconomicamente.
EDUARDA
Eduarda já não se lembra da idade – “84, 85 anos”, diz. Olha para o filho à espera de confirmação, um aceno quase imperceptível dá a anuência aos números da anciã.
Divide a habitação minúscula com um filho doente – cerca de 10 metros quadrados com duas camas demarcadas por uns panos pendurados numa corda que garantem um mínimo de privacidade a cada um dos dois moradores.
É, como a própria diz, uma filha do Mindelo. Em criança perdeu a mãe. O pai arranjou outra mulher e Eduarda foi enviada para a casa de um familiar, que acabou por trazê-la para São Tomé. Já no arquipélago, é contratada para trabalhar na roça Dona Augusta.
Como era muito nova, não a deixavam fazer trabalho mais pesado. Varria, lavava pratos. Quando cresceu, passou a estar na administração. “Tinha até um criado para mim”.
Acaba o contrato, regressa a Cabo Verde, mas a falta de trabalho, no início dos anos 50, faz com que regresse a São Tomé. “Fiquei em Água Izé. Eu não sabia ler, mas sabia entrar e sabia sair, por isso nunca fui maltratada. O branco respeitava e eu dava-me ao respeito. Eu cumpri e soube cumprir e ainda estou a cumprir enquanto não morrer”.
De repente deixa de contar histórias da roça. Sentada na cama, pés nus a balançar no vazio, começa a entoar uma melodia de Cesária, tão descalça como a diva. “O meu pai e o pai de Cesária trabalhavam juntos com os ingleses. Ia muitas vezes dar recado ao namorado de Cesária”. Depois fica em silêncio.
Sodade, Eduarda? “De Cabo Verde? De más! De Mindelo? De más! Mas não tenho possibilidade de voltar”. Eduarda cruza os braços sobre o peito, fecha os olhos e, por momentos, regressa ao Mindelo da sua meninice. Começa a enumerar ruas e praças, a recordar corridas de criança caminhos acima e carreiros abaixo. Cala-se e avisa que não vai dizer mais aqueles nomes, as memórias tornam-se demasiado dolorosas para serem vocalizadas.
“Sabes”, diz finalmente, “quando eu morrer, vou ser enterrada aqui, mas a minha alma tem de voar até lá. A minha alma tem de ir até ao Mindelo”, e sorri. Confiante.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1131 de 2 de Agosto de 2023.